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- Nobel de Economia premia a comprovação de que quanto mais branco, mais rico o país
Três homens caucasianos-americanos receberam um milhão de dólares para um projeto de pesquisa que conclui que a riqueza está onde os europeus estão Por Mirna Wabi-Sabi, originalmente publicado na Le Monde . O Prêmio Nobel de Economia deste ano recompensou uma pesquisa que aborda a pobreza de países do ‘Sul Global’. Segundo o presidente da comissão do Prêmio, os homens galardoados contribuíram para a compreensão de que instituições europeias fortes e funcionais tornam nações colonizadas mais ricas. Como tal, a ausência ou fraqueza destas instituições, causada por um lapso na disposição da população de defender os valores europeus que erguem essas instituições, é o que leva à pobreza. Em conclusão, para que um país pobre se torne rico, a colonização europeia deve não só continuar, mas se aprofundar e eliminar de uma vez por todas qualquer reminiscência dos sistemas e epistemologias pré-colombianas. “As Origens Coloniais do Desenvolvimento Comparativo: Uma Investigação Empírica”, de Daron Acemoglu, Simon Johnson e James A. Robinson, foi publicado na American Economic Review em 2001. Sua premissa é que a alta mortalidade entre os colonizadores europeus resultou em “instituições extrativistas”, que persistem “até o presente”. A atual extração de recursos para ganhos a curto prazo é um legado colonial causado pelas taxas de mortalidade elevadas entre os colonos. E o fato de a região ter sido hostil aos europeus durante a colonização manteve essas nações num ciclo de “ baixo crescimento econômico ”. Ser menos hostil, ou mortal, para os europeus significou que mais deles sobreviveram, portanto, instituições democráticas puderam ser construídas e sustentadas. O crescimento econômico foi estimulado e, portanto, esses países são agora menos pobres. “De acordo com os laureados, (…) não ocorre nenhuma melhoria” em nações onde as instituições são autoritárias, em contraste a “inclusivas”. Há uma distinção interessante, ou desconcertante, feita entre abordagens “inclusivas” e “extrativistas” da colonização: “Em algumas colônias, o objetivo era explorar a população indígena e extrair recursos naturais para beneficiar os colonizadores. Em outros casos, os colonizadores construíram sistemas políticos e econômicos inclusivos para o benefício a longo prazo dos colonos europeus.” (“ Eles forneceram uma explicação de por que alguns países são ricos e outros pobres “) É desconcertante que as abordagens sejam descritas como crucialmente distintas, quando, na realidade, estão igualmente e exclusivamente preocupadas com o bem-estar dos colonos. “Beneficiar os colonizadores” é literalmente a mesma coisa que o “benefício a longo prazo dos colonos europeus”. Agora, como os “sistemas políticos e econômicos inclusivos” diferem da ‘exploração dos povos nativos e da extração de recursos naturais’? Estes “sistemas políticos e econômicos”, que eles chamam de “inclusivos”, legitimaram a exploração e a extração, uma vez que foram geridos por colonos que só tinham em mente o seu próprio bem-estar. A distinção não reside onde afirmam os responsáveis pela premiação dessa pesquisa – não se trata de como um é mais democrático e humanitário do que o outro, e de como a democracia leva a um PIB per capita mais elevado. A distinção, para aqueles de nós que vivem nesses chamados “pobres países colonizados”, é o que constitui a legitimação da exploração e da extração. A linha entre instituições legítimas e ilegítimas é traçada pelos europeus, neste caso em particular por homens caucasianos-americanos com um Prêmio Nobel. Segundo eles, os países colonizados onde “ os colonos tentaram replicar as instituições europeias ” são opostos extremos daqueles onde os colonos apenas extraíram recursos sem estabelecer instituições ocidentais. Um é o Congo ou o México, enquanto o outro são os Estados Unidos ou a Austrália. Um é rico, o outro não. Um tem um sistema de eleições livres , onde a propriedade privada é protegida e as crianças obtêm diplomas do ensino secundário, enquanto o outro é atormentado pelo crime organizado, os políticos são corruptos e o empreendedorismo não é viável. Os pesquisadores atribuem essas diferenças extremas ao fato de algumas regiões simplesmente não serem convenientes para o assentamento europeu. Eles chamaram essas regiões de “ambiente da doença”. A aniquilação das populações nativas pelos colonos nos países onde estes impuseram as suas próprias instituições “inclusivas” não foi abordada. No entanto, o perfil racial das categorias de nações utilizadas como exemplo é bastante evidente. Os EUA, a Austrália, o Canadá e Hong Kong são ricos, supostamente porque são democráticos. Enquanto o Brasil, o México, a Guatemala e o Congo são pobres porque os seus governos têm sido corruptos ou autoritários. Argumenta-se que se as instituições da Nigéria pudessem “melhorar” como as instituições do Chile conseguiram, “o rendimento da Nigéria” veria um “aumento de 7 vezes”. No entanto, será que a malária e a febre-amarela, na verdade, protegeram certos países de uma maior dominação, expropriação e genocídio às mãos dos europeus? Será que ambos os modelos institucionais, “extrativista” e “inclusivo”, são criações europeias concebidas para subjugar os não-europeus? Será que o conceito de riqueza e os sistemas para a medir são invenções europeias que não foram concebidas tendo em mente o melhor interesse dos países colonizados? Do meu ponto de vista, como brasileira no Brasil, as instituições democráticas e “inclusivas” deste país não fizeram quase nada para proteger as nossas florestas da exploração, e muito menos para proteger as populações nativas da expropriação, da pobreza, do abuso e da morte. Para os pesquisadores, o Brasil é um exemplo de um daqueles países que foram explorados através do extrativismo porque a escravidão só foi abolida institucionalmente duas décadas depois dos Estados Unidos. Se, por um lado, o Brasil teve os seus recursos extraídos, por outro, os Estados Unidos tiveram o seu território deliberadamente povoado por europeus, e esforço foi feito para tornar esta migração em massa atrativa através da instituição de estruturas políticas ocidentais. Essa narrativa não leva em conta que o Brasil fez todas essas coisas, e mais – houve extração, incentivo ao assentamento europeu e à miscigenação, estabelecimento de instituições “inclusivas”, e escravidão, e uma ditadura, e o Mercado Capitalista Livre. Temos até nossa própria Monarquia . E ainda somos “pobres”. Essa pesquisa não se preocupou em saber como tornar as instituições europeias mais eficazes na proteção das pessoas nativas e da natureza. Estão preocupados em apresentar o argumento previsível de que os comunistas são autoritários e pobres, enquanto os capitalistas são democráticos e ricos. Os primeiros exemplos usados no documento “complementar” da American Economic Review para ilustrar a importância das instituições são, nas suas próprias palavras, os “ óbvios ” da Coreia do Norte e do Sul, e da Alemanha Oriental e Ocidental. Três homens caucasianos-americanos receberam um milhão de dólares para um projeto de pesquisa que conclui que a riqueza está onde os europeus estão. Sem discutir o fato que o conceito de Riqueza, como o conhecemos hoje, foi criado por e para europeus, os pesquisadores defendem a democracia e atribuem a falta dela à falta de presença europeia numa região. As pessoas de direita que clamam por um governo pequeno e um capital grande também não estão convencidas por essa pesquisa, por motivos completamente diferentes dos colocados acima. Eles veem o endosso de regulamentações governamentais como uma ameaça à prosperidade da economia. No final, é o mesmo velho debate entre Republicanos e Democratas estadunidenses, não sobre como acabar com a pobreza, mas sobre como continuar a garantir o domínio global do Mercado Livre. Uma investigação como essa, vencedora do Prêmio Nobel, evidencia como a Economia não é uma ciência evolucionária , é apenas uma história lucrativa. _____ Mirna Wabi Sabi é escritora, editora, e fundadora da Plataforma9. É autora do livro Anarco-transcriação e produtora de diversos outros títulos da editora P9.
- Fernanda Young: O Feminismo Alimenta o Machismo?
Fernanda Young, em sua análise sobre o feminismo, ignorou variáveis que não a serviam em sua viajem pelo controverso de alto ibope. ]Este artigo foi publicado em fevereiro de 2020, no site da Inimiga da Rainha .] Fernanda Young foi uma escritora e roteirista da Globo com seu marido. Ano passado [2019], ela faleceu inesperadamente, deixando três filhas e um filho. Esse ano [2020], me deparei com o livro dela de dois anos atrás, “Pós-F: Para além do masculino e feminino,” na Livraria Cultura em São Paulo, e me surpreendi com sua falta de tato em relação ao feminismo. Sua morte, mesmo sendo trágica, não pode se tornar uma oportunidade para ignorar seu legado problemático na construção de um pensamento coletivo Brasileiro onde o feminismo é difamado. Fernanda Young foi uma Rainha que deturpou conceitos abordados por muitas Inimigas do sistema que vieram antes dela. No sistema patriarcal, o homem também sofre, e isso não quer dizer que vamos descartar o feminismo. Mulheres feministas negras abordam o tema dos homens sofrerem neste sistema há décadas. Porém, eu diria que ‘homens sofrem também’ é usado para descartar o feminismo da mesma forma que ‘brancos são pobres também’ é usado para descartar o racismo. A escrita de Young é gostosa, mas a linha de raciocínio é vergonhosa. Ainda bem que no prefácio ela admite: “Achava que deveria partilhar a minha liberdade, inclusive de falar merda — coisa para qual tenho uma técnica, e afeto.” Mas é muita merda mesmo. Começando com: “O feminismo alimenta o machismo.” O machismo existia antes do feminismo, e se alimentava como? Vamos falar de todas as outras coisas que de fato alimentam o machismo? Como, por exemplo, muitos programas de TV…? Se não, nos afundamos na lógica que leva muitos a serem contra a vacina porque já aconteceu [talvez] que causou autismo em alguém. Já aconteceu que uma mulher mentiu e levou alguém a rejeitar o feminismo? Provável. Mas isso explica o machismo? Não. Isso justifica ignorar e rejeitar todos os exemplos de como o feminismo já salvou muitas vidas? Também não. Outro absurdo no livro dela é a transfobia. Para Young só existiam dois gêneros, e querer “mudar de sexo” era uma “precipitação,” porque a sexualidade não precisa disso — basta explorar melhor o seu corpo. É muita ignorância; está claro que ela se preocupou em escrever sobre pessoas trans sem nunca se preocupar em conversar com uma. Conversar e ouvir. Que editor passou o olho naquele capítulo e não se lembrou de avisar que sexualidade e identidade de gênero são coisas diferentes? Talvez tentaram em vão, recebendo a resposta: ‘Censura, jamais!’ E continua… Fernanda diz que já teve namorada e teve amigos gays, então homofobia não é a questão — se precisa ser falado, amigas, já deu ruim. A nudez da mulher virou um tópico contorcido. Para Young, na arte ela deveria ser vista como empoderadora. Porque evidentemente a mulher é “mais bela e interessante” do que o homem. Não querer ser rotineiramente retratada de forma sexualizada não significa machismo internalizado e rejeição do feminino. Por outro lado, se você usa “biquíni enfiado na bunda” tem que esperar receber cantada, como se não fosse assédio, porque é mais vulgar do que a nudez. Essa conclusão vem da premissa de que a nudez é arte e biquininho é erótico, que nos traz a questão mal resolvida de classe. O corpo sofisticado merecedor de admiração, versus o corpo vulgar merecedor de erotização. Além de classismo, a branquitude do texto emana quando ela fala dos horrores de ter que participar de reuniões de condomínio e de sua revolta contra o trabalho doméstico. Além disso, ela fez questão de dedicar um capítulo inteiro ao dado de que mulheres a assediavam mais do que homens, chamado “tudo agora é assédio.” A experiência pessoal de Young diz muito mais sobre ela do que sobre o comportamento dos outros. Será que ela contestaria os dados indicando que homens cis estupram e matam consideravelmente mais do que mulheres? Será que precisamos dos dados para saber que isso é verdade? Estes questionamentos não cabem na linha reta de raciocínio em direção à deslegitimação do feminismo. Minha discordância não é uma agressão, mas uma defesa de uma luta que não é de uma minoria. Até concordo com as críticas ao #feminismo diluído no fluxo das redes sociais. Mas devemos estar atentos a conclusões baseadas em uma única premissa duvidosa. Fernanda Young, em sua análise sobre o feminismo, ignorou variáveis que não a serviam em sua viajem pelo controverso de alto ibope. ______ texto: Mirna Wabi-Sabi
- O Conceito de Capital Natural Está Nos Levando a Um Beco Sem Saída
Embora essa linguagem (Capital Natural) possa ter sido desenvolvida com o intuito de comunicar o custo dos danos ambientais de forma que a indústria possa entender as perdas financeiras em não preservá-las, o resultado acaba sendo a utilização de tempo e recursos para nos levar a um beco sem saída. Durante décadas, a comoditização da natureza e da agricultura em detrimento do planeta e da população – seja de humanos, animais ou plantas – tem sido criticada pela comunidade científica. O desmatamento desenfreado ameaça toda a vida na Terra, e a maioria dos danos causados aos ecossistemas no Brasil, a região de maior biodiversidade do mundo, é devido a indústrias que não satisfazem as necessidades humanas imediatas, como comida e água potável. Em vez disso, elas são direcionadas para combustível, ração para gado, óleos e assim por diante – todos os quais dependem intensamente de pesticidas. A agricultura certamente pode ser vista como um processo natural, mas a industrialização dela, principalmente através do uso de pesticidas perigosos, é bem mais difícil de descrever como tal. A pesquisadora Larissa Bombardi argumenta que a conversão da produção de alimentos em ‘commodities’ é feita por meio do “uso massivo de agrotóxicos” (2017). Enquanto isso, “ o Brasil é o maior consumidor mundial de agrotóxicos desde 2008”; seu “consumo aumentou 190% na última década”. Em uma das suas publicações mais importantes, a pesquisa Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia, o Atlas do Agrotóxico, Bombardi mostrou que os “30 milhões de hectares utilizados – ou desmatados – para o cultivo de soja no Brasil são o destino de mais da metade (52%) dos agrotóxicos vendidos no país. Ao considerar que essa soja é em sua esmagadora maioria (95,5%) transgênica e seu principal papel na indústria alimentícia é ser transformada em matéria-prima para a pecuária, podemos, sem dúvida, categorizá-la como uma commodity . Portanto, à medida que mais dados sobre os perigos dos pesticidas e do desmatamento são acumulados, um país megadiverso como o Brasil não apenas fracassa em desacelerar o processo de mercantilização de recursos naturais, mas o acelera. Os dados que descrevem os danos ambientais e suas repercussões são bem conhecidos por acadêmicos e jornalistas, mas não foram suficientes para provocar mudanças significativas. Possíveis soluções para esse uso insustentável da terra pelo agronegócio foram debatidas em cúpulas de líderes mundiais; tratados foram forjados, assinados e promovidos. Mas ainda nos vemos avançando cada vez mais rápido em direção à obliteração de ecossistemas naturais pelo planeta. Em seu artigo de 2021 , “Geografia da Assimetria: o ciclo vicioso dos agrotóxicos e do colonialismo na relação comercial entre o Mercosul e a União Europeia”, Larissa Bombardi destaca quantos agrotóxicos são fabricados na Europa, depois usados para produzir ‘commodities’ no Brasil, que são então vendidos de volta aos europeus. Os Países Baixos, por exemplo, consomem bilhões de euros em sucos de frutas do Brasil, cuja produção depende de substâncias não apenas mortais e proibidas na União Europeia, mas também fabricadas e vendidas por seus membros. “ Nos últimos dez anos, 56 mil pessoas foram intoxicadas por agrotóxicos usados na agricultura brasileira. O país registra uma média de 5.687 casos desse tipo de intoxicação por ano, o que equivale a 15 pessoas intoxicadas por agrotóxicos todos os dias”, afirma ela. Nesse cenário, agricultores brasileiros são os que mais sofrem com esse ciclo desequilibrado de distribuição de recursos, lidando com problemas de saúde que vão de intoxicação a câncer e ideação suicida. Em seu Atlas de 2017, Bombardi argumenta que os números de intoxicações por pesticidas em todo o país são subnotificados a uma taxa de 1 a 50 – para cada 1 caso relatado, uma média de 50 possivelmente não são (página 54). Quase metade dos casos notificados foram suicídios (40%, página 55). Foi demonstrado que os pesticidas desempenham um papel em “Transtornos Psiquiátricos Menores”, como depressão, e diz-se que as dificuldades financeiras entre os agricultores exacerbam esses sintomas. Como uma possível solução para esta crise, grandes organizações internacionais, como as Nações Unidas (Sistema de Contabilidade Econômica Ambiental), investiram na ideia de “Capital Natural” – uma ferramenta no campo da economia para levar em consideração práticas comerciais ambientalmente insustentáveis em suas avaliações de risco. Ela oferece um sistema, um algoritmo, para chegar a um número ou preço. Este sistema leva em consideração o potencial de destruição ambiental de um negócio ou comércio, e o número calculado simboliza a correlação entre o dano à biodiversidade e o dano à margem de lucro desse negócio. O documento intitulado “Exposição ao risco de Capital Natural” , financiado por um ministério alemão de “desenvolvimento” econômico, composto principalmente de jargão para potenciais investidores do setor agrícola, revela quanto do obstáculo para chegar a uma solução está nas atitudes de pessoas poderosas e não na evidência do problema. Em outras palavras, mais esclarecedor do que os dados do relatório é a cultura que permite que esses dados persistam numa direção apocalíptica. Na página 79, sob o subtítulo Poluentes da Água, podemos ler que: “Para valorar os impactos sobre a biodiversidade, um estudo deve definir a biodiversidade, quantificar as perdas de biodiversidade por emissões de substâncias tóxicas por meio de modelos de dispersão e deposição e, em seguida, atribuir um valor monetário a essas perdas”. Esse estudo resulta em, por exemplo, uma fórmula que estima “o custo monetário por quilograma de substâncias tóxicas depositadas em ambientes de água doce”. A primeira variável é “disposição a pagar para restaurar”, baseada na “riqueza de espécies” da área. Portanto, o “grau” de biodiversidade de uma área influenciará o preço associado à sua potencial destruição. Não é tanto uma questão de saber se o dano está sendo causado e o seu escopo, para que possamos minimizá-lo. É uma questão de quanto estamos dispostos a pagar para continuar destruindo. Capital natural é beco sem saída? Quantificar e colocar um valor monetário no contexto da perda de biodiversidade e da saúde humana é bastante revelador das atitudes em relação ao assunto em questão. Embora essa linguagem possa ter sido desenvolvida com o intuito de comunicar o custo dos danos ambientais de forma que a indústria possa entender as perdas financeiras em não preservá-las, o resultado acaba sendo a utilização de tempo e recursos para nos levar a um beco sem saída. Como conceito, o 'Capital' Natural é contrário ao que ambientalistas vêm tentando alcançar há décadas, e é, também, contrário à natureza do capital. Se não bastassem os intermináveis debates entre líderes mundiais e acordos globais fracassados, uma quantificação do custo de vidas está acontecendo por trás de pilhas de papéis e transações financeiras. O valor dessas vidas, tanto humanas quanto mais que humanas, é transformado em variáveis num algoritmo projetado para estimar seu custo para indústrias de bilhões de euros. Na prática, os dados evidenciam que o ‘Capital Natural’ não funciona para minimizar os danos causados ao planeta e à saúde humana. ‘Comoditizar’ um problema causado pela comoditização é como tentar despoluir a água com substâncias tóxicas. Infelizmente, isso não é uma metáfora, realmente acontece. A Agência Pública revelou que mais de 700 cidades brasileiras possuem águas com níveis de toxicidade acima dos limites legais, que são consideravelmente superiores aos limites europeus. Mais da metade desses contaminantes, que incluem substâncias radioativas, pesticidas, matéria orgânica e inorgânica, são subprodutos do tratamento de água. Para aqueles que optam por legumes e frutas orgânicas ou veem o valor deles para a saúde, o tratamento da água está além do escopo de influência individual. Lavar uma maçã antes de mordê-la pode piorar o problema. A fiscalização da qualidade da água por instituições governamentais é fraca e, se os testes forem feitos, os resultados muitas vezes são ocultados do público. Assim, a população é negada não só água limpa, mas também informações sobre essa água. Ao mesmo tempo, ter acesso a essas informações está longe de ser suficiente para induzir mudanças. Quando e se pessoas influentes no setor agrícola optarem por implementar algoritmos de “Capital Natural” para atribuir um preço ao seu potencial de destruição ambiental, talvez elas estejam dispostas a aceitar o risco porque sabem que são os agricultores que pagam o maior preço. Aqueles que estão adoecendo e morrendo agora não são os que analisam os relatórios de avaliação de risco e aprovam esses projetos. Nem todos nós temos o poder de direcionar as agroindústrias multinacionais para uma direção mais sustentável, mas todos nós estamos pagando pelos danos que elas causam em algum nível. O que podemos fazer é não perder tempo e energia tentando adotar a linguagem de quem entende muito bem a nossa, mas opta por não ouvir. Texto por Mirna Wabi Sabi Imagens por Luana Fernandes
- Vírus E Colonização: Nossa Relação Com Os Mosquitos
Parece que vivemos em tempos sem precedentes e, de fato, ninguém vivo já testemunhou uma pandemia viral dessa magnitude. Esta não é, no entanto, a 1ª pandemia viral da história, razão pela qual os comentaristas políticos internacionais traçaram paralelos com outras como SARS, Ebola, Influenza etc. Porém, com base em onde moro — Niterói — o paralelo que se destaca é com infecções transmitidas por mosquitos; Dengue, Chikungunya, Febre Amarela e assim por diante. As campanhas de saúde pública sobre a prevenção da Dengue no Brasil foram constantes ao longo da minha vida, e nunca me ocorreu ou a ninguém ao meu redor questionar sua mensagem — mosquitos transmitem a doença, e água limpa estagnada é o que eles precisam para proliferar. Portanto, todos devem fazer o possível para minimizar esses vetores de doenças, já que o mosquito nascido em sua casa não respeita limites de propriedade e se alimenta de qualquer pessoa. Isso nunca se tornou uma questão partidária, a ciência por trás disso não foi questionada e a negligência com os requisitos de saúde pública é desaprovada. Apesar de não ter aprendido a distinguir entre larvas de mosquito e de outros animais, e de suspeitar da autoridade governamental, nunca me ocorreu questionar a ciência por trás do ciclo de vida de um mosquito transmissor de doenças. Sou uma mulher que mora sozinha, e o fiscal da Dengue é o único homem desconhecido que bate na minha porta e permito que entre na minha casa. Cada pequeno corpo de água artificial que vejo vem com um sinal de perigo, e desenvolvi memória muscular ao virar recipientes que coletam água. Em 2008, a National Public Radio dos EUA publicou um artigo descrevendo os mosquitos como “Viet Congs da natureza”; defensores “das samambaias, borboletas, besouros e formigas da humanidade”. Na época, achei que fazia sentido. As cidades crescem, substituem a floresta, e os mosquitos são o incômodo que resta. Mas após uma reflexão mais aprofundada, especialmente no contexto do COVID, a analogia parece inepta. Desde quando os vietcongues não fazem parte da humanidade e a humanidade não faz parte da natureza? Mais importante ainda, não já havia humanos vivendo na floresta antes dos mosquitos começarem a tentar repelir a humanidade da “natureza”? Como os povos indígenas lidavam com os mosquitos infestados de vírus? A resposta é: não lidavam. Não havia Dengue antes da colonização. É amplamente reconhecido que infecções virais foram usadas como armas contra civilizações nativas por colonos, o cobertor de catapora como o exemplo mais notório. O Aedes aegypti, o mosquito que transmite a Dengue, Chikungunya, Zika, Febre Amarela e outros vírus, veio como ovos na água trazida em navios da África no século 16. No século 18, houve surtos de infecções em 3 ou mais continentes ao mesmo tempo. Bem, estamos aqui, agora, ainda lutando para manter esse vírus sob controle. A abordagem tem sido tornar nosso ambiente urbano pouco acolhedor para essas criaturas. Significando: sem excesso de plantas que lhes dão sombra e bloqueiam a brisa que os arrastam; sem matéria orgânica porque contêm açúcares vegetais dos quais os mosquitos se alimentam; sem superfícies irregulares e sujas que possam reter o líquido onde eles depositam ovos. Infelizmente, isso também leva à expulsão de qualquer outro ser vivo além dos humanos. Sem plantas também significa sem borboletas; nenhuma matéria orgânica também significa ausência de minhocas e fertilidade para as plantas; sem água também significa sem sapos e libélulas. O paradoxo é a necessidade de mais água, plantas e matéria orgânica para atrair mais animais que são predadores naturais de mosquitos e suas larvas. A biodiversidade tem um efeito cascata positivo, onde a água atrai mosquitos, que atraem sapos que comem mosquitos. Se adicionarmos à mistura besouros, pássaros, aranhas, lagartos, caracóis, formigas, borboletas, libélulas, minhocas, aranhas d'água, etc., podemos ver que os mosquitos vêm sozinhos quando há um pneu aleatório tomando chuva na beira da estrada. De certa forma, é como o princípio de uma vacina — não evite o problema, exponha-se com segurança a ele e encontre um equilíbrio orgânico saudável para combatê-lo. O equilíbrio não é algo simples de se alcançar, muito menos na escala de um planeta inteiro. Talvez a mudança em direção ao equilíbrio que podemos alcançar esteja no âmbito de nossas vidas pessoais e numa mudança de perspectiva. Isso já é muito trabalho, mas é onde toda grande ideia começa. Questionar a autoridade e suas instituições pouco confiáveis não vem à custa do aprendizado de biologia. Na verdade, o questionar depende desse conhecimento biológico — de que outra forma reconheceremos as falácias do sistema e reuniremos as ferramentas para falar a verdade e demandar a coerência? _________ MIRNA WABI-SABI é editora-chefe da Plataforma9P9, autora do livro Anarco-Transcriação, e comentarista política através da escrita, edição, ensino e tradução.
- O Que Laguinhos Podem Nos Ensinar
Pessoas em geral sabem muito pouco sobre a natureza e seus ecossistemas locais. Laguinhos têm muito a nos ensinar sobre tudo isso. Hoje em dia, ficou mais fácil imaginar um mosquito geneticamente modificado para ser estéril do que aprender quais animais em nossa área são seus predadores naturais. Isso provavelmente ocorre porque é mais fácil votar num político que possa endossar pesquisas e implementar políticas contra a dengue do que observar e estudar o comportamento da vida selvagem local. A maioria de nós não tem tempo e recursos para este tipo de pesquisa, mas, o mais importante, falta-nos interesse ou motivação (quem sabe o que veio primeiro). Não precisamos olhar de perto, no entanto, para ver que as políticas governamentais e políticos são falhos e equivocados, especialmente no que diz respeito a práticas ambientalmente sustentáveis. Uma alternativa a continuar contando com eles poderia ser tomar certas medidas nós mesmos, mesmo que no microcosmo de nossas próprias vidas. Felizmente, passei a pandemia socialmente isolada numa casa com um jardim, numa área do Brasil conhecida pela vegetação rochosa de Mata Atlântica, e pude trabalhar remotamente. Tempo e recursos estavam disponíveis para mim, e eu aproveitei isso para começar a fazer todas aquelas coisas que pensamos em fazer, mas nunca temos tempo. Uma horta, compostagem, pão, tomar sol, exercícios, e assim por diante. Mas a saga do laguinho começou mais tarde e me consumiu de uma forma inesperada. Rapidamente, ficou claro para mim que construir um mini lago é uma lição de biologia difícil e valiosa. Quanto mais você aprende, mais percebe o quão pouco sabe. Tudo começou com as visitas noturnas de um sapo à tigela de água dos cachorros. Depois da primeira vez em que o vi, todas as noites na mesma hora, sua presença era certa. E toda vez que o via, agora batizado de Danny DeFrog (em homenagem a Danny DeVito), pensava em como minha vizinhança é hostil à vida selvagem — riachos são poluídos, árvores são cortadas para dar espaço para estruturas de concreto e o crescimento espontâneo de plantas é considerado “sujeira”. Depois de algumas semanas, decidi fazer um mini lago para o Danny, o que me levou ladeira abaixo. Como posso fazer um lago sem criar um ponto de proliferação de mosquitos? Como posso fazer isso sem arrastar uma extensão pelo quintal para ligar um filtro elétrico? As perguntas nunca pararam desde então. Deixe-me contar um pouco do que aprendi — o que está longe de ser tudo o que há para se saber. As lojas de aquários são meio deprimentes. Os peixes são muito baratos, tratados como descartáveis, e os sistemas são entregues como ambientes higiênicos controlados, onde o ser humano pode ter o maior controle possível sobre as variáveis. Na natureza, porém, existem infinitas variáveis a serem consideradas, todas imprevisíveis e diversas. Basicamente, vários tipos de peixes comem larvas de mosquitos, nem todos esses peixes existem na natureza. Muitos são raças domesticadas, como cães e gatos. Portanto, criar um biótopo de peixinho dourado é um oximoro. No entanto, eles precisam de um sistema de filtragem e a maioria precisa de aeração de água. Na natureza, não há bombas e filtros fazendo isso para os peixes, mas recriar este ambiente natural é incrivelmente difícil e uma lição poderosa sobre a natureza. Resumindo — o peixe faz cocô na água, as bactérias decompõem esses resíduos, transformando-os em nutrientes. Esses nutrientes, por sua vez, são consumidos por plantas aquáticas e algas. Quanto mais as plantas consomem esses nutrientes, menos nutrientes sobram para as algas se alimentarem, mantendo-as sob controle e a água clara. Algumas plantas aquáticas, principalmente as que estão totalmente submersas, também oxigenam a água. Este é o princípio básico. O truque é encontrar um equilíbrio entre esses elementos. Tomar consciência desses elementos, intensamente presentes em nosso dia a dia, é esclarecedor. Percebemos a qualidade da água e do ar, com que frequência chove, com que frequência e onde o sol brilha e com quais seres vivos compartilhamos este espaço. Por exemplo, seixos, rochas e superfícies ásperas debaixo d'água são boas para hospedar muitas bactérias, mas seixos muito pequenos podem ser comidos por peixes maiores, e algumas rochas podem liberar nutrientes na água que alteram seu pH. Níveis e mudanças drásticas de pH estressam os peixes (às vezes causando a morte), e é possível identificar mudanças em seu comportamento. A água da torneira mata os peixes; há muitos produtos químicos. Há todo um processo de espera pela evaporação dos produtos químicos ou de tratamento da água de diferentes maneiras. Até a água da chuva pode ser contaminada pela poluição do ar. À medida que a água evapora com o calor e o sol, a água do lago fica mais dura, mais densa de nutrientes e o pH é alterado com o tempo. Por outro lado, as plantas aquáticas precisam do sol, e você pode ver quando elas tiveram muito sol; as folhas ficam amarelas. Trocas parciais de água a cada poucas semanas são ótimas para manter o lago claro e limpo, assim que você garanta de que não está descartando ovos, ninfas e outros pequenos animais que criaram um lar neste lago. E por parcial quero dizer: nunca substituir mais de 40% do conteúdo total de água de uma vez, para não perturbar o ecossistema muito rápido. Água de peixes rica em nutrientes pode ser usada para regar plantas em vasos, e água tratada limpa pode ser usada para encher o lago de novo. Tornar-se consciente do equilíbrio entre o brilho do sol e a chuva no que se refere a outros seres além de você é muito enriquecedor. E, acredite em mim, muitos outros seres aparecerão num lago natural. No primeiro mês, eu estava vendo ovos e minhocas, tirei fotos e tentei identificar o que eram. Os peixes comeram as minhocas e os ovos viraram caracóis. Os caracóis comem todos os tipos de restos de matéria orgânica e ajudam a limpar o lago (assim como os camarões), e alguns até oxigenam a água. Mas se eles morrem, fica um cheiro ruim, e eles podem se reproduzir fora de controle. As carpas gostam de comer esses pequenos caramujos, com a concha mais macia. Mas os peixes menores não. As sanguessugas, no entanto, vão manter a população de caramujos sob controle, sugando-os até secar e deixando apenas a concha. Você pode distinguir uma sanguessuga de uma minhoca pela maneira como ela se move e sua forma — elas têm cabeças pequenas e extremidades traseiras mais largas, movendo-se como acordeões. Se um grudar na sua pele, não se preocupe, a maioria não é prejudicial para humanos e peixes. Essas sanguessugas aparecem do nada e podem se tornar ainda mais populosas do que os caracóis. Nesse caso, você pode usar folhas secas de amendoeira para manter sua população sob controle. Debaixo d'água, essas folhas liberam nutrientes que controlam a qualidade da água. O ser mais empolgante que testemunhei fazer um lar no lago foi uma libélula. Um dia, notei uma voando, mergulhando a cauda na superfície da água repetidamente. Aparentemente, ela estava botando seus ovos ali. Havia tanta coisa que eu não sabia sobre o ciclo de vida de uma libélula e pude testemunhar de perto. Acontece que as libélulas passam a maior parte de suas vidas debaixo d'água, como ninfas. As ninfas da libélula comem sanguessugas, larvas, girinos e até peixes pequenos. Começam como ninfas minúsculas, transparentes ou verdes, com patas, cabeça e cauda. Ela eventualmente se transforma em uma coisa de seis pernas, com aparência de uma barata debaixo d'água. Eventualmente (no meu caso, quase um ano depois) ela sai de sua pele como uma cobra, e voa para acasalar e colocar ovos em outro lago (se elas não forem comidas por pássaros primeiro, claro). Além disso, é um animal tão antigo que coexistiu com dinossauros. Seus ancestrais são de mais de 200 milhões de anos atrás! Às vezes, você tenta resolver um problema e cria outro. Um dos meus peixes morreu por causa do que parecia ser uma infecção fúngica. Havia manchas brancas como algodão no lago e no peixe. Embora uma pequena quantidade de sal marinho puro na água possa ajudar a combater a erupção de bactérias e fungos (mesmo em lagos de água doce), esse tratamento com sal matou minhas plantas aquáticas. Várias coisas podem matar as plantas. Peixes mordiscam as raízes, lagartas e vermes se alimentam das folhas, falta de sol, etc. Claro, eu quero que as borboletas sobrevivam; o truque é ter plantas suficientes, então você pode sacrificar uma ou duas para elas. Na verdade, as plantas aquáticas não são fáceis de encontrar e costumam ser mais caras do que os peixes. Transportá-las por longas distâncias é complicado e, quando você encontra algo, geralmente é o mesmo tipo de espécie (útil, embora invasiva). Existem vários tipos. Algumas flutuam; algumas enraízam-se apenas em água com folhas secas; algumas enraízam em substrato no fundo do laguinho ou em vasos submersos; algumas precisam ser completamente submersas e são impedidas de flutuar por rochas, seixos ou substrato. O substrato é complicado porque pode facilmente afetar a água, seu pH, sua clareza, etc. Então, você tem que encontrar uma maneira de cobrir o solo rico em nutrientes com areia e pedras, para que não faça bagunça na água. A variedade é valiosa porque cada planta tem suas características e comportamento, e pode desempenhar papéis diferentes e importantes. A batata-doce, por exemplo, é ótima para remover nitratos da água. Um terço dela fica submersa e o resto acima da água. Rapidamente, as raízes crescem, e os caules e folhas sobem. Mas depois de 2 meses é melhor remover, pois, se apodrecerem, os peixes podem morrer. Nesse momento, pode-se destacar os caules e colocá-los de volta na água, descartando o restante na compostagem. Novas raízes vão crescer e o processo pode ser repetido a cada 2 meses. Existem também várias plantas domésticas que crescem em vasos que podem crescer facilmente apenas em água, como a planta Aranha, Filodendros, Lírio Flamingo, Caladium bicolor, Syngonium podophyllum, Bambu da sorte, a família de plantas Cyperus e assim por diante. Sem falar em musgo. Existem tantos tipos e são difíceis de cultivar, mas são fantásticos para a qualidade do ar em torno do seu lago, o que é importante para os peixes, uma vez que precisam de oxigenação também. Um japonês chamado Shinya , que cria biótopos e mossários com Medakas, foi meu primeiro ídolo de minilagos. Os tipos de plantas e peixes, sem falar na localização, são literalmente do lado oposto do mundo do meu. Mas, embora fosse impossível imitar seu processo, foi incrivelmente útil e inspirador ver o trabalho dele. As informações que compartilho aqui são baseadas na minha experiência pessoal, num contexto geográfico e social específico, portanto, não podem ser reproduzidas de forma idêntica em nenhum outro lugar. Mas esse é o problema de sair do paradigma da industrialização — a natureza não é uma linha de montagem. Não pode ser entregue, só pode ser descoberta, e a jornada é nossa. Podemos ser incapazes de controlar diretamente os níveis de poluição do ar de nossas cidades, mas conhecer e aplicar os fundamentos disso ao nosso reino pessoal e comunitário é um primeiro passo valioso. No mínimo, pode mudar a forma como nos sentimos e nos apresentar a novos conhecimentos que são imediatamente usados e colocados em prática. Mais importante ainda, essas microiniciativas podem nos ajudar a nos conectar com nosso ambiente natural de uma forma mais saudável e sustentável, e podem expandir e melhorar nossa perspectiva do lugar onde vivemos. ÍNDICE AGUAPÉ Esta planta aquática flutuante é considerada invasora. Na natureza, ela pode se espalhar e cobrir toda a superfície de um corpo d'água. Seu excesso costuma ser usado como adubo verde. Por outro lado, sua incrível capacidade de filtrar a água a torna útil no tratamento de esgoto. Ela também tem belas flores, embora de curta duração. ALFACE D'ÁGUA Esta planta aquática flutuante reproduz-se incrivelmente rápido e tem a capacidade de oxigenar a água e também de filtrar. Precisa de sol, e depois de dias chuvosos, elas podem precisar que se apare as mudinhas. BATATAS DOCES 1/3 na água, 2/3 acima da superfície. As raízes vão crescer, removendo nitratos da água, enquanto as folhas se espalham como vinhas. Remova após 2 meses para evitar o apodrecimento. Retire os caules e coloque-os de volta na água, descartando o restante no composto. Novas raízes vão crescer e o processo pode ser repetido a cada 2 meses. FOLHAS DE AMENDOEIRA SECAS Lave as folhas secas suavemente com uma esponja e água corrente, para minimizar a contaminação de coisas desconhecidas na sujeira. Deixe secar, guarde em potes, e uma vez por mês coloque uma folha inteira para cada 40 litros de água no lago. À medida que se dissolve e se degrada, ela ajuda o sistema imunológico dos peixes, reduz o estresse, previne doenças, tem propriedades antifúngicas e antibacterianas e reduz naturalmente o pH. CARAMUJOS Os caramujos são bons em comer o excesso de matéria orgânica e sobras de ração para peixes e ajudam a manter o tanque limpo. Eles também oxigenam um pouco a água, a menos que morram e apodreçam no fundo do lago, deixando o local fedido também. Alguns tipos se reproduzem muito rápido. A carpa gosta de comer os pequeninos com a casca ainda mole, o que mantém a população sob controle. No entanto, peixes menores como guppy's e platy's não os comem. SANGUESSUGAS Sanguessugas comem caramujos. Elas se parecem com minhocas, mas com cabeças pequenas e costas mais largas, movendo-se como acordeões em vez de chacoalharem que nem minhocas. Carpas e Koi também adoram comer isso, comem quase tudo. Mas, novamente, com os peixes pequenos, temos que ficar de olho no quão equilibrada está a população de caramujos / sanguessugas. Se houver muitos caramujos e apenas algumas sanguessugas, deixe para lá e as sanguessugas vão fazer seu trabalho aos poucos. Se os caracóis começarem a desaparecer e muitas sanguessugas, maiores, começarem a dominar a área — experimente colocar novas folhas amendoeira secas. LIBÉLULAS As ninfas da libélula comem sanguessugas, larvas, girinos e até peixes pequenos. Se você vir uma libélula voando e mergulhando sua bunda na superfície da água, ela está deixando cair ovos. Eventualmente, você verá uma ninfa pequena, transparente ou verde, com pernas, cabeça e cauda. Ela eventualmente se transforma em uma coisa de seis pernas, com aparência de uma barata debaixo d'água. Eventualmente, ela sai de sua pele como uma cobra e voa, para acasalar e colocar ovos em outro lago. Ela passa a maior parte de sua vida debaixo d'água e é um animal tão antigo que coexistiu com dinossauros. SAPOS Eles vêm, bagunçam as plantas, fazem cocô na água, mas são ótimos — comem mosquitos. Eles podem botar ovos e os girinos saem, mas nem sempre sobrevivem, pois, pode haver predadores, como os besouros subaquáticos e as ninfas libélulas. Por Mirna Wabi-Sabi Read the original in English at Abeautifulresistance.org
- Ioga como atitude decolonial do corpo humano
Por Mirna-Wabi-Sabi “Perdemos a ioga para o oeste, tudo bem. Ioga era uma atividade chata e passiva que as pessoas faziam de pijama. E aí os americanos se envolveram. E se tornou um esporte brutal.” (Zarna Garg) É verdade, parte da minha prática de ioga é abordar minha tendência de transformá-la num desafio radical ou numa competição acirrada contra mim mesma. Como ela disse, porém, está tudo bem. Os indianos sabem que não é do interesse de ninguém guardar a ioga ao ponto de ninguém no exterior poder praticá-la. Eles sabem que o ioga tem valor para a humanidade. Não é a única coisa de valor. Mas tem um imenso potencial para nutrir corpos e mentes. Me fascina como a ioga pode alcançar até as pessoas menos espirituais. Ainda estou para conhecer alguém que pense que ioga e meditação são uma farsa. Ou que tratar a mente e o corpo dessa forma é errado. No entanto, ela foi proibida em vários lugares (como no Alabama), mas suspeito que isso seja um sinal da sua eficácia, e não do contrário. Para quem não sabe, provavelmente não será uma surpresa descobrir que no período colonial britânico na Índia a ioga foi proibida. No primeiro encontro com os iogues, os europeus sentiram bastante repulsa pelo que não entendiam – como os iogues eram vistos pelos habitantes locais como iluminados, enquanto para eles parecia que essa condição era o resultado de algum tipo de ilusão. Não os comparar com os bruxos europeus da época foi, contudo, um sinal de respeito. (Página 36 de “Yoga Body” de Singleton, 2010.) Para os britânicos, cuja forma de exercício era trabalhar, cavar buracos, brincar com armas e assim por diante, a Índia deve ter sido um espetáculo e tanto. Um cara nu, de cabelos compridos, coberto de cinzas, meditando com os braços erguidos debaixo de uma árvore. Outro em parada de mão por horas a fio, e alguns carregando correntes. Todos sendo elogiados pelos colegas. Chocante foi o quão doloroso deve ter sido ficar fixado naquelas posições nada naturais. Era uma forma de loucura, certamente. “[O faquir-iogue] assume posições totalmente contrárias à atitude natural do corpo humano” (38). De acordo com a tradição supremacista europeia, presumia-se que os iogues eram tudo menos “seres racionais” (37). Nenhuma distinção foi feita entre as diferentes “ordens mendicantes” (37), pois, aos olhos do britânico, todas eram vegetativas, vagabundas, preguiçosas ou mesmo vaidosas. Como tal, para os cristãos, as posturas de ioga tornaram-se símbolos de quão absurda era a espiritualidade indiana. À medida que a perspectiva ocidental era insidiosamente injetada na sociedade indiana, os iogues eram marginalizados e muitas vezes forçados a fazer de si próprios um espetáculo para a sua subsistência, o que consolidou ainda mais o estigma. Mas nem todos foram subjugados por essa artimanha dos protestantes. “Bandos altamente organizados de iogues militarizados” tornaram-se uma ameaça espetacular à ordem colonial, causando danos financeiros significativos à Companhia das Índias Orientais. “A antipatia europeia pelos iogues não se devia apenas a sensibilidades morais ofendidas: os iogues também eram pessoas difíceis de pôr em ordem.” (39) E foi então que a lei foi usada para acelerar a mudança cultural ocidentalizante que os britânicos precisavam para continuar a lucrar na região. A ioga foi proibida. Além de andar nu e portar uma arma, o que, segundo o autor de Yoga Body, era a estética desses soldados iogues. (40) Apesar da marginalização e das proibições, durante os dois milênios e meio que os humanos praticam ioga (pelo menos), a prática continua a espalhar-se e a prosperar, compreensivelmente. Há uma ciência antiga nisso, que a ciência ocidental ainda está tentando compreender ou sistematizar. Quando uma conexão entre ioga e medicina começou a ser feita no campo médico, possivelmente em 1850 pela publicação A Treatise on the Yoga Philosophy, irrompeu uma resistência desenfreada a ela, com queima de livros e tudo (52). De alguma forma, foi considerado ofensivo sugerir que a filosofia da ioga realmente correspondia à realidade da anatomia humana. No entanto, a colonização deu origem a um estudo da ioga a partir de uma perspectiva miscigenada, literal e figurativamente, e já no primeiro encontro. Os anglo-indianos e os britânicos “indianizados” serviram de ponte entre a Índia e o Ocidente, e a influência fluiu em ambos os sentidos. Poucos povos colonizados podem dizer isso sobre sua experiência com seu principal colonizador. A influência que o Brasil teve sobre Portugal, por exemplo, é incalculavelmente pequena em comparação com a influência deles sobre nós. Embora eu saiba que os poderes constituídos na Índia provavelmente adotaram algumas das piores características do modus operandi europeu, nomeadamente a intolerância étnica e religiosa, não posso deixar de observar com admiração a resistência da civilização indiana. Apesar de ter uma prática espiritual distinta, tomo medidas para expressar meu respeito aos porta-vozes indianos do legado do ioga. Porque, sem eles, eu não estaria aqui colhendo os enormes benefícios desse conhecimento. É um pouco como citar suas fontes, em vez de plagiar. A simbiose entre corpo e mente é destacada pelo ioga de uma forma que revela muito sobre quem somos, e também sobre o que estamos passando nesse momento – é filosófico porque é físico, e vice-versa. Aqui estão alguns insights do dia a dia que a ioga me deu nas últimas semanas: Aceitação. De si, dos outros e do mundo. Mesmo que as pessoas e as situações possam nos irritar, ainda precisamos aceitar o que está acontecendo para lidar com isso de forma eficaz. Poder. É uma questão de disciplina e força. Não vamos tirar o poder de alguém ou de alguma coisa, vamos construí-lo para nós mesmos. Paciência. Apenas seja paciente. Algumas coisas levam tempo e melhoram com o tempo. Outras só precisam ser feitas, e a impaciência não ajudará a realizá-las. Combata a hiperestimulação. O tédio não é seu problema. Nessa era digital, somos constantemente bombardeados com conteúdo. A verdadeira ameaça à nossa satisfação não é o tédio. A necessidade de se entreter constantemente com conteúdo aleatório é a ameaça. Você pode ser honesto sem ser cruel. É o que é. Qual a diferença entre “é o que é” e aceitação? Aceitação é abraçar situações, pessoas, onde você está e com quem. “É o que é” é uma aceitação da Verdade, num sentido amplo. Aceite o fato de que a Verdade será e deve ser revelada. O amor é mais importante que a independência. Ser financeiramente independente é um ótimo objetivo. Mas não à custa da formação de laços de amor, onde é natural confiar e contar um com o outro. Não busque a perfeição. Se esforce para melhorar. Não há problema em cometer erros. Então, também não há problema em cometer erros em público. Não leve para o lado pessoal. Mesmo que seja pessoal. Nada existe no vácuo e nada é para sempre.
- Eco-barreiras e o resgate do equilíbrio entre as espécies no planeta
Acesse o 'Levantamento de resíduos sólidos na Eco-barreira João Mendes' aqui. A poluição dos oceanos ameaça a sobrevivência de todos os animais marinhos, e a nossa também. É difícil compreender a magnitude do impacto que o lixo tem nas nossas vidas quando não vemos para onde ele está indo, e como o caminho que leva à extinção de tantas espécies aquáticas afeta a vida humana. Civilizações nativas que uma vez sobreviviam em simbiose com a fauna e a flora de suas regiões, agora não enxergam a mesma diversidade de vida e mutualismo entre as sobrevivências. O mundo não é o mesmo. A questão é como seguir em frente nesse paradigma. Uma ferramenta para entender qual lixo percorre qual caminho em direção ao oceano viabiliza a identificação da fonte e do percurso do problema de poluição de lixo – a eco-barreira. Esse entendimento nos ajuda a atuar na fonte e no sintoma do problema causado por resíduos sólidos flutuantes descartados pela população urbana. Eco-barreiras são barreiras na foz, ou ponto de desaguamento, de rios em megacidades. Um estudo de 2011 por Marcos Freitas aponta que o crescimento acelerado de centros urbanos, aumento de consumo, sistemas de gerenciamento de água municipais e coleta de lixo inadequados contribuem para uma quantidade exorbitante de lixo descartado em rios. No contexto do Rio de Janeiro, apenas 3 eco-barreiras em 2008 coletaram mais de 100 toneladas de plástico, metal, madeira e papelão (M. Freitas 2011). Dados como esses são esperados, mas o interessante dessa pesquisa foi que identificou a fonte do problema como não sendo tanto “o aumento da geração de resíduos sólidos domiciliares” e sim o aumento do Produto Interno Bruto municipal. Ou seja, aumento de consumo de indivíduos não causa poluição nos rios tanto quanto o aumento de importação e exportação, gastos governamentais e investimentos empresariais. Instituições governamentais e empresas são mais ambientalmente irresponsáveis do que consumidores individuais, e isso desde 2011 só se tornou mais evidente. Hoje, há uma eco-barreira na foz do rio João Mendes, na região oceânica de Niterói, mantida por um grupo de indivíduos voluntários. Ela foi financiada pela ecoponte, uma companhia que gerencia a ponte Rio-Niterói, e tem interesse em ações de compensação de sua pegada de carbono. E a barreira é gerenciada por membros da organização AmaDarcy, cujo objetivo é proteger o meio ambiente natural e urbano através da preservação de áreas ecologicamente importantes na região da Serra da Tiririca. De acordo com um relatório gerado pelo grupo em fevereiro de 2023, “O João Mendes (JM) é um rio poluído, apesar de nascer cristalino dentro do Parque Estadual da Serra da Tiririca (PESET). Embora uma parte significativa dos esgotos da bacia hidrográfica do JM seja coletada e encaminhada à Estação de Tratamento de Esgotos de Itaipu (ETE Itaipu), que opera com uma vazão nominal de 164 litros por segundo, existe uma expressiva quantidade de esgotos que ainda não é direcionada para a ETE Itaipu e deságua de forma direta ou indireta no rio João Mendes e, consequentemente, na laguna de Itaipu (Reserva Extrativista Marinha de Itaipu-RESEX Itaipu), gerando a poluição do mesmo.” “A quantidade de resíduos sólidos (lixo) que vem sendo lançada no rio João Mendes semanalmente (cerca de 250 Kg) também contribui de forma significativa para poluição do rio João Mendes, evidenciando condições ainda precárias de saneamento. Desde setembro de 2022, a ONG AmaDarcy vem coletando lixo semanalmente na eco-barreira implantada no rio João Mendes, localizada próximo à desembocadura deste rio na laguna de Itaipu. A quantidade total de lixo coletado e ensacado pela AmaDarcy entre setembro de 2022 e janeiro de 2023 foi superior a 6 toneladas (mais de uma e meia tonelada por mês), evitando assim seu despejo na laguna de Itaipu e no mar (RESEX Itaipu). O lixo é em seguida retirado e levado pela Companhia de Limpeza de Niterói (CLIN) para uma destinação final adequada.” A relação entre poluição de esgoto e de lixo é evidente quando consideramos o crescimento urbano desenfreado, sem infraestrutura e instituições eficazes o suficiente para lidar com esse crescimento. Como voluntários, o foco do grupo em lixo flutuante faz sentido quando consideramos a distância que esse lixo viaja, e a dificuldade de controle desse fluxo sem essas barreiras – que não impedem o fluxo do rio, mas fixam resíduos da superfície até que uma equipe possa coletar. Essa coleta acontece semanalmente, e, quando possível, os resíduos são separados por material e pesados, apesar da poluição de esgoto na área apresentar uma ameaça aos voluntários e gerar a necessidade de cuidados vigorosos. Os dados registrados incluem não só tipo e peso do lixo, mas também as marcas dos produtos descartados, a altura do rio, e a quantidade de chuva no dia anterior e na semana da coleta. Volume ou Índice Pluviométrico é medido por milimetro de chuva por metro quadrado num certo local e período. Fonte: (A627, do INMET) Os materiais encontrados são plástico, vidro, metal, tecido, entre outros. Microlixo é registrado como uma categoria à parte, e significa um misto de pequenos resíduos como bituca de cigarro, microtubos de narcóticos, isopor fragmentado, outros plásticos e partes vegetais que ficam emaranhadas por esses resíduos. Tetra pak também é registrado à parte, pois são aquelas embalagens de composição mista entre metal, papel e plástico, muitas vezes usadas para produtos como leite, suco e molho de tomate. Há outros materiais identificados, porém não categorizados individualmente, como os ocasionais brinquedos, resíduos eletrônicos, lâmpadas, pneus, colchões, etc. Enquanto os resíduos não identificados são os sacos fechados encontrados na barreira que não são abertos por poderem conter materiais que causam riscos à saúde dos voluntários – como seringa, prestobarba, fralda, camisinha, papel higiênico usado, etc. Esses dados nos ajudam a identificar a fonte da poluição das águas, e nos conscientiza sobre nosso próprio consumo e descarte de resíduos. De acordo com a pesquisa de 2011 de Marcos Freitas, há uma correlação entre o aumento da renda familiar e o amento do lixo público, enquanto o lixo doméstico permanece na mesma faixa. Isso pode significar que o aumento do Produto Interno Bruto (e talvez contextos climáticos) leva a "maior consumo em áreas públicas". O que isso significa para nós e nossas práticas de consumo em áreas públicas? O que sabemos sobre as práticas de descarte lixo de empreendimentos que frequentamos e de coleta de lixo por conta de nossos municípios? O problema do descarte de lixo e da poluição dos oceanos tem muitas facetas. Há uma questão de administração institucional, que reflete nas decisões políticas de um município. A expansão urbana se torna nociva por conta do fracasso dessa administração política e interesses financeiros muito maiores do que o lar de cada família. Por isso, o Produto Interno Bruto municipal gera mais problemas ambientais do que o acúmulo de consumos individuais. Por outro lado, a conscientização da comunidade e o acesso à informação sobre a situação ambiental de suas vizinhanças pode não só melhorar práticas pessoais de consumo e descarte de resíduos, como pode também incentivar a população a demandar mais responsabilidade da administração pública e ações mais eficazes com a verba pública. No meio tempo, prevenir que toneladas de lixo acabem no oceano ajuda a começar um resgate da biodiversidade e do equilíbrio entre as espécies nesse planeta. _____ Por Mirna Wabi-Sabi
- O DNA da poluição na baia de Guanabara
Texto por Mirna Wabi-Sabi e fotografia por Fabio Teixeira Publicado dia 2 de agosto de 2023. Rio de Janeiro, baia de Guanabara, dia 1 de julho de 2023. O Painel Saneamento Brasil afirma que mais de 30% da população do Rio de Janeiro não tem coleta de esgoto (2021). Hoje, 18 mil litros de esgoto por segundo são despejados na baia de Guanabara, sendo que investimento estatal quadruplicou nos últimos 3 anos, chegando a quase 1 bilhão de reais. Os gastos são monumentais, enquanto os resultados são abismais, e esse fiasco seria fácil de explicar da perspectiva de corrupção e incompetência na gestão de recursos públicos. Porém, uma análise cultural e histórica explicaria o que causa esses sintomas nos processos administrativos da cidade. Os dados de gastos e níveis de poluição estão evidentes, assim como os perigos dessa poluição à saúde pública. Há pelo menos 20 anos se sabe, por exemplo, dos números alarmantes de Hepatite A em crianças em regiões de baixa renda do Rio de Janeiro. Mas esses números não levam a soluções por detentores de poder governamental. O problema não é falta de dinheiro ou ciência da seriedade da situação, e sim o legado do modelo Higienista. O movimento Higienista nasceu no Brasil no fim de 1800 e da Revolução Industrial. Com a formação de centros urbano-industriais durante a Revolução, houve um aumento massivo da população do Rio de Janeiro, e com ele o do caos, da pobreza, da poluição e da destruição ambiental. Esse movimento visava mitigar os sintomas metropolitanos com a implementação de modelos urbanos europeus, que essencialmente manufaturavam guetos. Ao usar como norte teorias médicas de cientistas da Europa, iniciativas foram promovidas por higienistas que segregavam a pobreza e destruíam o meio ambiente através do 'embelezamento' das cidades. Pois, o modelo ideológico europeu já era, e continuou sendo por centenas de anos, escravagista e extrativista. A cultura extrativista europeia lida com o meio ambiente não-europeu como fonte de recursos para seres humanos, sejam eles práticos ou estéticos. Isso nunca promove o equilíbrio dos ecossistemas locais, apenas promove lucro e altos padrões de vida para quem lucra. Por isso, a manufaturação do gueto garante a 'Higiene', como definida pelo movimento em termos de educação e saúde, de forma insular. O modelo Higienista é a manifestação da expressão 'varrer para debaixo do tapete'. Desde que a insalubridade urbana não fosse vista por elites nos centros, seria como se ela não existisse. Em outras palavras, é um sistema tão maduro quanto o jogo de peekaboo. Desde que cidades vieram a existir, a insalubridade urbana é uma questão de classe com repercussões ambientais e humanas desastrosas. No artigo "Movimento Higienista" na história da vida privada no Brasil, Edivaldo Góis diz que muitos dos higienistas enxergavam "a falta de saúde e educação do povo [como] responsável por nosso atraso em relação à Europa." Sendo que inúmeras doenças, costumes, e modelos de gestão vindos da Europa eram responsáveis por essa impropriedade. Um povo que promove a divisão de classe não comporta a realidade natural de que o ecossistema não respeita a segregação social. Mais cedo ou mais tarde, a poluição de uma porção do oceano ou de um corpo de água urbano se torna poluição nas praias nobres, e 18 mil litros de esgoto por segundo na baia de Guanabara é um problema de todo o mundo. Nos anos 90, 1 bilhão de dólares americanos foram gastos no programa de Despoluição da baia de Guanabara (PDBG) após evidências alarmantes de casos de Hepatite A em crianças em Duque de Caxias. Mesmo com financiamento massivo, de fonte global, os resultados foram horrorizantes. Centros de tratamento de esgoto foram construídos mas não eram funcionais, prestação de contas e pagamentos atrasados apontavam por péssima administração financeira do estado, centenas de milhões de dólares americanos foram desperdiçados em juros, e esse fracasso não pode ser atribuído apenas à burrice institucional. Agora estão sendo gastos, novamente, bilhões de reais em obras que já estão atrasadas para resolver esse problema de poluição persistente dos últimos séculos. Rio de Janeiro, entre 2015 e 2019. Saneamento em regiões de baixa renda é um desafio hoje em dia porque por mais de cem anos, a divisão de classe promovida pelo legado do movimento Higienista desincorporou esses espaços geográficos da "atividade de vigilância epidemiológica", assim como de fornecimento individual de recursos de saneamento. A ideia de que o que é privado existe em simbiose com o público, ao invés de resultar em investimento de recursos públicos em melhorias de ambientes privados de indivíduos com renda baixa, resultou em justificativas reacionárias para o eugenismo. Por isso que ao invés de investir em melhorias das estruturas dos lares familiares e individuais em regiões pobres, se investe num "cinturão" de captação de esgoto no entorno da baia. Isso significa que, o esgoto que sai dessas áreas é captado e impedido de afetar áreas nobres, mas o contexto individual dos moradores continua o mesmo. De acordo com um "estudo conceitual" sobre o cinturão, o obstáculo para a "universalização do esgotamento sanitário" é o custo. A estimativa no relatório é de 1900 reais por habitante, totalizando em mais de 33 bilhões de reais no RJ. Já que o financiamento de 1 bilhão de dólares nos anos 90 equivalia apenas a pouco mais de 5 bilhões de reais, o preço "supera em muito o aporte de recursos para o setor". Porém, 33 bilhões se refere ao custo para a população do estado, e o financiamento de 1 bilhão de dólares era voltado especificamente para a despoluição da baia de Guanabara. Os rios que mais poluem a baia de Guanabara permeiam a geografia de Duque de Caxias, chamados Sarapuí e Iguaçu. Se 1900 reais por habitante é uma estimativa confiável, com menos de 1 bilhão e meio de reais teria sido possível levar saneamento para toda a população de Duque de Caxias, que entre 1991 e 94 era menor do que 700 mil habitantes. Mas ao invés de propor estratégias certeiras, com foco no contexto e necessidades locais, o relatório logo faz comparações com os sistemas europeus e estadunidenses. Ao fazer isso, ele se revela descendente do movimento Higienista. A organização responsável pelo relatório, FGV CERI, explicitamente se posiciona como interessada num desenvolvimento infraestrutural centrado no crescimento econômico. Para eles, a regulação de infraestrutura no país, mesmo quando envolve o meio ambiente e a saúde pública, orbita um e somente um objetivo: "a atração de investimentos". Assim, a sustentabilidade fomenta a nação quando é econômico-financeira. Quantificar um problema socio-ambiental como o de poluição da baia de Guanabara nem sempre é fácil. Quantos litros de esgoto estão sendo despejados de forma irregular? Quanto o saneamento básico custa por pessoa? Quantas crianças já adoeceram por conta da poluição nos corpos de água em suas áreas? Neste caso, os números estão evidentes e a realidade é inescapável. O que falta é a análise do contexto histórico e cultural, ou genético, que leva a esses resultados alarmantes e persistentes. Desde a criação do movimento Higienista no Rio de Janeiro, hoje somos no mínimo a quinta geração a testemunhar o desenvolvimento desastroso da metrópole que se debruça na baia. É preciso conhecer o que nos foi herdado do DNA dessa cidade, batizada pelo magnífico e inusitado corpo de água – Guanabara. _ Texto por Mirna Wabi-Sabi Fotografia por Fabio Teixeira
- A Magia da Água na Tailândia e a Religião da Prosperidade
A Tailândia é um país único e orgulhoso. As suas línguas e espiritualidade decorrem de uma intersecção particular entre o Pali, a língua sagrada do Budismo Theravada, e o Sânscrito, a língua sagrada do Hinduísmo. A monarquia tailandesa é proeminente e o foco na riqueza emana não apenas da cultura como um todo, mas especificamente da devoção espiritual da população. Qualquer indivíduo turista na Tailândia está propenso a ficar “templotado”; esgotado de tantos templos, de todos os tamanhos e em todos os lados. Esses templos, que muitas vezes são recém-construídos e cuidadosamente mantidos com tinta branca e folhas de ouro, de forma alguma são feitos para o observar da pessoa estrangeira. Na verdade, pessoas não-praticantes podem se sentir intrusas, cercadas pela população local adorando apaixonadamente. Esse paradigma tailandês desconstrói a percepção dominante no Ocidente de que as riquezas espirituais e materiais estão em conflito umas com as outras, que toda a riqueza (ou o desejo por ela) é um avanço do capitalismo, e não da alma. A comunidade de imigrantes na Tailândia é composta, em grande parte, por homens brancos que se casaram com mulheres tailandesas. A questão do turismo sexual, em combinação com uma nova lei que descriminaliza a maconha, dá a alguns pontos de Bangkok uma energia de luz vermelha de Amsterdã. E embora exista um conservadorismo religioso generalizado que enxerga esse consumo de drogas e entretenimento sexual como tabu, a visão de riqueza e prosperidade material, de alguma forma, supera outros aspectos da moralidade religiosa. A riqueza e a prosperidade são partes significativas da devoção tailandesa e não estão necessariamente em conflito com outras práticas e crenças espirituais. Os templos têm cofres, ouro não falta, e tanto o dinheiro quanto as folhas de ouro são ritualizados. Isso, por si só, está longe de ser incomum para quem cresceu testemunhando a devoção católica e a configuração ornamentada das catedrais. Mas o que mais me chamou a atenção, devido ao meu fascínio por mini-lagos, é a quantidade de elementos aquáticos em espaços públicos. “A água desempenha um papel importante em muitas religiões” (página 5), e a ideia de água benta é bastante familiar para pessoas cristãs. Mas na Tailândia, os laguinhos parecem ir além do domínio do templo religioso; eles têm uma função pessoal e são implementados em todas as oportunidades. Lagos em vasos de cerâmica com nenúfares lindos (e caros), bombas de água para fontes, espelhos d'água, etc., estão por toda parte. Sem falar nos festivais que acontecem em toda a cidade, que consistem em jogar água em tudo e todos nas ruas. A tradição tailandesa claramente observa a água de forma particular. Ao perguntar por que tantas entradas de estabelecimentos têm elementos aquáticos, pequenos, mas luxuosos, pessoas apresentam diversas explicações. Imigrantes dirão que é simplesmente bonito ou que vem do Feng Shui. Alguns moradores dirão que, tradicionalmente, era comum ter água disponível para as pessoas beberem durante a época de seca, ou para as pessoas lavarem os pés antes de entrar em casa. E alguns dirão francamente – é algo que atrai riqueza. Um artigo de 2022 da Universidade de Naresuan, denominado “Água” no Regime de Tradições e Rituais Tailandeses, descreve essa observância da água como decorrente de tradições “grandes” e “pequenas” – “grandes” como nas escrituras budistas e hindus, e “pequenas”, como na agricultura local e na ancestralidade. Obviamente, a agricultura requer água, mas o cultivo do arroz, em particular, requer inundação. O arroz não precisa de terras inundadas para prosperar, mas ele prospera nelas, enquanto outras plantas não. Assim, historicamente, esse alimento básico da dieta tailandesa informou a cultura tailandesa e como ela aborda os altos e baixos das estações de seca e chuva; as idas e vindas da água como uma abordagem prática para a prosperidade e a abundância. Diz-se que o povo Isan do norte da Tailândia, por exemplo, consagra a água num ritual para o cultivo do arroz (página 116). A água, na tradição tailandesa, ao observar as escrituras budistas e hindus, simboliza “o meio para conectar este mundo ao mundo sagrado”. A água é uma deusa chamada Phra Mae Thorani, retratada nos logotipos das empresas de distribuição de água em toda a Tailândia e do partido político mais antigo do país. A água também é onde vivem os Nagas (página 30), seres míticos que protegem tesouros, entre outras coisas. Segundo a antiga lenda tailandesa, as cobras, como representação animista dessas divindades, não devem ser temidas, mas sim admiradas. Embora possam representar perigo quando provocados, eles também podem realizar desejos de riqueza e prosperidade. Essa é talvez a representação mais adequada de uma bifurcação moral na procura pela riqueza – capacidade de agir e prosperar, ou ganância exploradora. Os Nagas podem te trazer chuva, e isso irá regar suas plantações ou inundar a sua casa; um lembrete para sempre nutrir um coração justo ao visar riqueza. Como a água e a sua fauna, a flora parece ter um enorme significado espiritual no folclore tailandês. Flores aquáticas como o lótus (Nelumbo nucifera) e o nenúfar (Nymphaea) também são simbólicas tanto no budismo quanto no hinduísmo, e têm o mesmo nome em tailandês (ดอกบัว). Os nenúfares, em particular, podem ser vistos nos lagos em vasos de cerâmica ao redor de templos, santuários, edifícios da realeza e até mesmo em fachadas de lojas nas principais cidades da Tailândia, geralmente acompanhados por pequenos peixes betta, que são nativos do país. Nenhuma dessas fontes de água, com ou sem peixes, apresentam larvas de mosquitos; às vezes têm girinos, caracóis ou insetos barqueiros (quando não são tratados quimicamente ou são um chafariz). Um cultivar rosa de Nymphaea, nativa da Tailândia, leva o nome de Nang Kwak, a deusa da fortuna. Essa “Dama Acenando tem sido usada há muito tempo por comerciantes e vendedores de baixo nível, e é o único amuleto cujo significado inicial está no mercado” (página 365 do artigo A Geografia Sagrada dos Mercados de Bangkok). Nessa pesquisa, a autora descreve a “espiritualidade mercantil” como nada de novo, embora a sua popularidade tenha aumentado nas últimas décadas. Uma “religião da prosperidade” moderna mostra que, à luz de uma paisagem capitalista em rápida expansão, a espiritualidade, o folclore e a tradição não estão em conflito com a modernidade. A cultura tailandesa mostra como o animismo e o politeísmo são práticas espirituais contemporâneas por definição. No Ocidente, onde as religiões monoteístas se estabeleceram brutalmente como norma, o paganismo é muitas vezes enquadrado como algo do passado e os seus praticantes são reduzidos a reencenadores históricos. Mas enquadrar o Budismo como um substituto do paganismo, por exemplo, é completamente irrelevante e inadequado quando se observa a religião cívica da Tailândia. A fusão do folclore tailandês, do budismo e do hinduísmo está tudo menos enfraquecida diante a metropolização desenfreada. Não há nada de intrinsecamente contraditório em trazer essas tradições e crenças espirituais para o domínio das sociedades capitalistas contemporâneas; na verdade, elas podem ser uma tábua de salvação ao lidar com a falta de alma nas cidades grandes. Mirna Wabi-Sabi Mirna Wabi-Sabi é escritora, editora e fundadora da Plataforma9. É autora do livro Anarco-transcriação e produtora de diversos outros títulos da editora P9.
- Os Desabrigados da Humanidade
Escrito por Mirna Wabi-Sabi Fotografado por Fabio Teixeira Série fotográfica: "Pessoas em situação de rua trabalham com o lixo reciclável e estão doentes", por Fabio Teixeira. 17 de maio, 2024. Zona Norte, Rio de Janeiro. Um filósofo escocês uma vez escreveu: “Uma corrente não é mais forte do que o seu elo mais fraco”. Antes disso, os bascos provavelmente já haviam cunhado o provérbio “geralmente o fio quebra onde é mais fino”. Esse sentimento continua bem vivo hoje e perdura durante séculos por uma razão simples: a humanidade tem fraquezas. Nesse alvorecer do terceiro milênio, após centenas de milhares de anos que seres humanos têm percorrido por esse belo planeta, é difícil olhar em volta e acreditar que temos utilizado as nossas habilidades para fortalecer os laços entre povos ou para engrossar o fio da nossa humanidade. Para percorrer as ruas do Rio de Janeiro, considerada por muitos uma das cidades mais bonitas do mundo, qualquer pessoa com um coração deve desviar muitas vezes o olhar de coisas que o encherão de desespero. Poucas coisas refletem mais o repetido fracasso da humanidade em evoluir do que a falta de moradia. Numa época em que a riqueza e a tecnologia disparam, nunca foi tão claro que a pobreza extrema não se deve à falta de recursos disponíveis. A população em situação de rua no Brasil tem crescido consistentemente nas últimas décadas, aproximando-se de 300 mil . No Rio, diz-se que há cerca de 8 mil pessoas vivendo nas ruas. Sempre aparecem manchetes com números impressionantes, “População em situação de rua cresce 211% na última década”, “Censo identifica 7.865 pessoas em situação de rua na cidade”, ‘ Novo programa do governo dá assistência para pessoas em situação de rua’. Mas pesquisar além das manchetes e envolver-se pessoalmente com os assuntos revela uma história diferente. Em primeiro lugar, nem metade dos municípios brasileiros contabiliza o número de pessoas que estão desabrigadas em suas comunidades. Isso significa que os números são alarmantemente imprecisos. Mesmo os órgãos dedicados a prestar serviços às populações desabrigadas do Rio de Janeiro, governamentais ou independentes, que estão localizados em áreas da cidade conhecidas por terem grandes concentrações delas trabalhando ou se estabelecendo, não têm ideia significativa dos números, localizações ou doenças de pessoas que eles se propuseram a servir. No entorno da Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, é sabido que grupos de pessoas desabrigadas se reúnem, muitas vezes para separar resíduos domésticos e industriais. O fotojornalista Fabio Teixeira documentou alguns dos trabalhos que essas pessoas, que preferem permanecer anônimas, têm feito, bem como alguns dos não surpreendentes problemas de saúde que decorrem desse paradigma. Especificamente, observou-se que iniciativas informais de reciclagem, realizadas por pessoas sem acesso consistente à privacidade, água corrente e saneamento básico, geram a uma epidemia de infecções nos olhos. Ao perceberem que estão perdendo a visão, elas ajudam umas as outras com os recursos disponíveis. Os abrigos financiados pelo município não estão autorizados a falar diretamente com a imprensa. Toda comunicação deve passar pela assessoria de imprensa da prefeitura ou pela assessoria de imprensa do ministério da saúde. Esse escritório tem respostas prontas com números sobre o alcance do mais novo programa governamental voltado para a “ressocialização da população em situação de rua”. Esses programas envolvem o envio de profissionais de enfermagem, psicologia e assistência social para as “ruas”. Essa é a abordagem onde se acredita que, se a mente e o corpo dessas pessoas forem tratados, naturalmente, elas conseguirão se reinserir na sociedade, conseguindo emprego e moradia. A realidade, porém, mostrou que estar na rua é o que causa a grande maioria das doenças psicológicas e físicas na comunidade, e não o contrário. Portanto, a única forma de resolver com sucesso estes problemas de saúde é, em primeiro lugar, fornecer habitação. “As principais questões de saúde diagnosticadas pelas equipes de Consultório na Rua são as infecções sexualmente transmissíveis como sífilis, HIV, hepatites virais, questões relacionadas ao sofrimento em saúde mental e ao uso de drogas, hipertensão arterial, tuberculose, feridas crônicas, entre outras. E as principais situações que interferem diretamente nas condições de saúde dessas pessoas são a insegurança alimentar, dificuldade de acesso a água potável, privação do sono, exposição ao calor, ao frio ou a chuva.” (Ascom) Por “interferem diretamente” eles querem dizer “causam”. O fato de não ter casa é a principal causa desses problemas de saúde, no entanto, a solução permanece: tratar os sintomas à medida que eles são encontrados nas ruas. As iniciativas financiadas de forma independente, as ONGs, estão ainda menos equipadas para abordar a raiz do problema. Uma organização dedicada à “reinserção social de pessoas em situação de rua” no centro da cidade do Rio descreveu sua maior conquista como: existir há 8 anos e uma vez ter ganhado um prêmio. Dizem que o seu maior obstáculo é a “captação de recursos”, em vez do que eles precisam de dinheiro para alcançar. Esses desastres de comunicação podem ser indicativos de uma verdade horrível, não sobre as pessoas desabrigadas, mas sobre os abrigados. Nossas cidades têm seres humanos que estão desprotegidos pela humanidade. A Secretaria de Assistência Social do Rio de Janeiro precisa especificar que ela não está legalmente autorizada a se envolver na “remoção” de uma pessoa sem-teto, e isso diz muito sobre os tipos de solicitações que ela recebe do público em geral. Enquanto grande parte da população alojada aborde a falta de moradia como se fosse uma questão de gestão de lixo, aqueles que trabalham na área de serviço social demonstram uma compreensão superficial da realidade que tantos brasileiros em extrema pobreza enfrentam. Abordar o atendimento a pessoas desabrigadas como um projeto de “ressocialização” implica que o que elas precisam é aprender certos comportamentos para se reinserirem à sociedade. Na realidade, os desabrigados nunca se retiraram da sociedade, eles são o elo mais vulnerável dela. As populações desabrigadas e abrigadas não apenas compartilham espaços nas cidades, mas estão intrinsecamente ligadas através da forma como a nossa sociedade tem funcionado. A inacessibilidade da habitação está diretamente ligada ao setor imobiliário e a todos os que com ela se envolvem para se alojar. Quanto mais a nossa sociedade encarar lares como uma oportunidade de investimento financeiro, em oposição a uma necessidade humana básica nos dias de hoje, mais crescerá a população sem habitação. A única razão pela qual isso não é suficiente para provocar uma mudança nesse sistema é porque nós, a população abrigada, nos convencemos de que os desabrigados são um problema causado por eles mesmos e pelos seus comportamentos e escolhas de vida. Após uma autoinspeção mais aprofundada, grande parte da população alojada perceberia quantos momentos das nossas vidas são passados a trabalhar ou a pensar em trabalhar para manter um teto sobre as nossas cabeças, com exceção daqueles que nasceram numa riqueza notável. Embora nós como indivíduos possamos não ser capazes de resolver sozinhos a questão da habitação nas nossas comunidades, a nossa sociedade como um todo, os seus valores e os seus recursos, certamente é capaz de o fazer. Isso exigirá uma mudança de perspectiva de longo prazo e em grande escala. Entretanto, o mínimo que podemos fazer como indivíduos hoje é separar resíduos orgânicos para compostagem e lavar os nossos resíduos domésticos inorgânicos para prevenir infecções nas pessoas que nos prestam o serviço informal de reciclagem. Os elos mais fracos nessa cadeia de povos da humanidade são talvez os valores meritocráticos e individualistas das populações abrigadas no capitalismo tardio – um elo que lava as mãos de quaisquer laços humanos com a população desabrigada. Da próxima vez que nos perguntarmos, a população em situação de rua “ é responsabilidade de quem? ” A resposta é: de todo mundo. Só então o fio tênue da nossa humanidade se engrossará.
- Comerciante de petróleo, Gunvor, se declara culpado de uma década de corrupção na Região Amazônica
Há dinheiro e tecnologia suficientes para alcançar os objetivos climáticos dos nossos sonhos com dignidade. Por Mirna Wabi-Sabi A Gunvor, um dos maiores comerciantes de petróleo bruto do mundo, pagará mais de 600 milhões de dólares em multas pelo suborno de funcionários do governo no Equador. Foram utilizadas empresas de fachada e intermediários para pagar esses funcionários, que por sua vez garantiram contratos de compra de petróleo. De acordo com o Grupo de Pesquisa Stand.earth, tais esquemas são responsáveis por derramamentos de petróleo devastadores que destroem áreas povoadas e ecologicamente frágeis da Floresta Amazônica, e por manter países latino-americanos dependentes de combustíveis fósseis e reféns de dívidas monumentais. Os graves derramamentos de petróleo causados por rupturas em oleodutos malconservados têm efeitos mortais a longo prazo para as comunidades indígenas próximas, bem como para a fauna e a flora locais. Segundo a Public Eye, uma organização dedicada a denunciar o impacto que as empresas e instituições suíças têm “em países mais pobres”, a “taxa de câncer nessas regiões petrolíferas foi a mais alta do mundo” nos anos em que Gunvor subornou funcionários públicos. A exploração petrolífera da região começou anos antes com a Chevron, cujos locais poluídos foram denunciados por Roger Waters enquanto fazia campanha contra Bolsonaro e a sua abordagem catastrófica ao extrativismo na Floresta Amazônica. Após a transferência das operações da Chevron para a Petroecuador, a nacionalização não proporcionou qualquer proteção à região contra novas catástrofes nas mãos da Gunvor. O Equador, que já estava financeiramente vulnerável após a exploração implacável por empresas estrangeiras e uma tentativa falhada de fazer a Chevron pagar pelos danos que tinha causado, viu-se mais uma vez subjugado pelo capital ocidental. O que os comerciantes petrolíferos multinacionais fizeram foi utilizar a sua própria linha de crédito para emprestar dinheiro à empresa petrolífera nacionalizada do Equador, a taxas de juros predatórias, e, ainda por cima, subornar funcionários para que esses contratos fossem assinados. Essas dívidas de bilhões de dólares com taxas de juros desfavoráveis incluem a necessidade de fornecer petróleo bruto ao comerciante. Ou seja, não só a instituição equatoriana é mantida refém da própria dívida, como também fica dependente da extração de petróleo e da exploração de seus recursos naturais por anos. Em contradição com a ideologia capitalista que justifica essas abordagens extrativistas de recursos naturais em favor do lucro e da estabilização da economia global, não houve competição entre os comerciantes. Juntos, eles “monopolizaram o mercado do petróleo bruto amazônico”. Como tal, em 2009, a Gunvor comprou um dos seus comerciantes irmãos, Castor Petroleum, cujo vice-presidente acabou sendo localizado pelo FBI e implicado no processo judicial que levou à multa de 662 milhões de dólares. A Public Eye descreveu apropriadamente esse desastre como um “círculo vicioso que impacta negativamente as necessidades da população e do meio ambiente” em favor da ruína financeira perpétua, da aniquilação da natureza, e da subjugação dos sul-americanos às instituições ocidentais e aos seus lucros. Essa não é a primeira vez que a Gunvor é acusada de atividade criminosa. Em 2019, ela pagou quase 100 milhões em um caso de suborno de funcionários do governo na Costa do Marfim e no Congo – um caso que a Transparency International usa como exemplo de crimes corporativos ocidentais em “países aparentemente livres de corrupção”. Em 2017, a Gunvor foi acusada de contrabandear petróleo russo através da Bielorrússia para evitar impostos. E em 2010, telegramas da Embaixada dos EUA do WikiLeaks a colocaram como uma das “fontes de riqueza não declaradas de Putin”. Agora que houve maior repercussão, meros 662 milhões para uma empresa que lucra mais de 1 bilhão por ano, com uma receita superior a 100 bilhões, e que continuará a operar normalmente – para onde irá esse dinheiro da multa? Será investido na reparação dos danos causados à Amazônia e à sua população? Logo após o escândalo de suborno ter vindo à tona, em 2021, o CEO da Gunvor, Torbjörn Törnqvist, disse à Reuters que planeava “expandir” as suas operações para a Rússia. Isso foi pouco antes da invasão da Ucrânia, mas não deve ter sido uma surpresa, uma vez que Törnqvist já tinha comprado a parte da empresa do seu parceiro russo em 2014 para evitar sanções devido à anexação da Crimeia pela Rússia. Hoje, ele afirma estar numa “jornada de sustentabilidade”, a partir de 2023 rastreando as “emissões da cadeia de abastecimento” da Gunvor com a ajuda de uma empresa terceirizada dedicada a alcançar os objetivos de desenvolvimento sustentável da ONU para bancos e comerciantes multinacionais. Não é de surpreender que em nenhum lugar dessa jornada de sustentabilidade haja reparação de qualquer dano real causado à Floresta Amazônica e aos seus povos. Existe apenas uma declaração corporativa sobre a coleção vaga de dados sobre as emissões de CO2, admitindo que ainda não se recolhem dados sobre emissões de metano ou qualquer outro gás de efeito estufa. Empresas que continuam a expandir mesmo depois de denunciadas como criminosas, como a Gunvor, alcançam a impunidade ao se estabelecerem como indispensáveis. No entanto, eles são dispensáveis. Há dinheiro e tecnologia suficientes para alcançar os objetivos climáticos dos nossos sonhos com dignidade. O Grupo Gunvor agora anuncia que, pela primeira vez, está investindo na geração de energia como uma alternativa à dependência dos combustíveis fósseis que eles endossaram criminalmente e da qual lucraram durante décadas. Essa é uma decisão orientada para o lucro, liderada por mudanças inevitáveis no mercado, mudanças que eles passaram décadas tentando impedir ou atrasar a todo o custo. Essa “jornada” é melhor do que nada? Quais garantias existem de que essas declarações corporativas não sejam apenas mais um esquema que prolongará a vida de um empreendimento destrutivo e ilegítimo? _____ Mirna Wabi-Sabi é editora chefe da Plataforma9.
- Edição de textos com sinais de Fala Pressionada
Fala Pressionada (ou discurso pressionado) é um termo usado na psiquiatria para descrever um sintoma de um episódio maníaco de Transtorno Bipolar, Autismo, TDAH, TPB e mais. É quando uma pessoa fala com senso de urgência, sem pausas e muitas vezes de forma incoerente. Muitas pessoas já testemunharam ou experienciaram isso, mas não sabem que possui um termo clínico. E o que torna mais difícil a identificação é que esse fenômeno não é exclusivo de pessoas diagnosticadas com uma dessas condições psiquiátricas. Qualquer pessoa sob uma mistura de estímulos estressantes pode apresentar esse sintoma, portanto não é necessariamente uma indicação de bipolaridade ou autismo. Estar sob os holofotes, por exemplo, pode provocar alteração de tom na maioria das pessoas, muitas vezes lembrando uma fala pressionada. Saber, no entanto, que essa pode ser uma condição médica informa positivamente as nossas reações a ela. Como editora, muitas vezes vejo sinais de discurso pressionado na escrita das pessoas. Há um certo nível de desespero para transmitir um ponto de vista, mas o ponto tem muitas camadas e os conceitos são empilhados uns sobre os outros, sem conexões claras entre eles. Os sinais clássicos são frases longas com esses imensos conceitos listados um após o outro. Os parágrafos são intermináveis e não está claro onde a história começou e para onde vai. Todas as pessoas escritoras são suscetíveis a isso, mas o sintoma que se destaca como psiquiatricamente maníaco é a urgência que emana do texto – como se o texto que está sendo escrito e lido devesse, por si só, mudar significativamente principais aspectos do mundo. A urgência por trás da necessidade de que algo mude, ou de que algo seja interrompido, é naturalmente expressa através da fala e, claro, através da escrita como forma de fala. Como podemos distinguir entre um estilo de escrita e um sintoma clínico? Essa distinção é útil para aqueles cujo trabalho é ajudar um escritor a tornar o seu texto mais eficaz – pessoas editoras. Mas também é útil para qualquer um que deseje aprimorar suas habilidades de comunicação. Se o leitor não consegue entender o que está sendo dito em um texto, não é uma escrita eficaz. Como tal, a primeira preocupação é compreender o público. Pessoas com autismo notoriamente encontram dificuldade nisso, mas todas as pessoas devem desenvolver essa habilidade, de uma forma ou de outra, para se comunicarem. Nos episódios maníacos, a comunicação é particularmente prejudicada, em grande parte devido à incapacidade de ler a audiência, mas também devido a “delírios de grandeza”, onde a audiência é vista como inadequada. Há uma linha tênue entre acreditar em você mesmo, ou que seu trabalho como escritora faz uma diferença real no mundo, e um senso patológico de autoestima. Há uma linha tênue entre saber que você pode apresentar novas ideias ao seu leitor, e acreditar que ele é ignorante. Independentemente de onde essa linha seja traçada, responder com reasseguramento e gentileza é crucial ao abordar pessoas que lidam com uma condição psiquiátrica. Isso não significa ceder ou ignorar os problemas. Significa tentar captar a mensagem que estão tentando transmitir e ajudá-los a criar uma estrutura eficaz para apresentar essa mensagem. No processo de estruturação do pensamento, a pessoa editora tem a oportunidade de ajudar alguém que está passando por um episódio maníaco a compreender e se apropriar de seus sentimentos, antes de divulgá-los publicamente. Afinal, é um sentimento que provoca a necessidade urgente de escrever sobre um assunto. Mas, às vezes, o sentimento é tão forte que corremos e cortamos atalhos na narrativa, tornando a estória ininteligível. E quando isso acontece, um texto torna-se ineficaz, causando frustração ou uma bola de neve de emoções negativas. O primeiro passo para garantir uma estrutura narrativa eficaz é um começo, meio e fim. O começo: Onde estamos? O que estamos fazendo? Por que o leitor deveria se importar? No início, situamos o público no o quê. O que está acontecendo no mundo agora que justifica a escrita e a leitura de centenas de palavras? Talvez haja guerra na Ásia Ocidental e a islamofobia seja descarada na cobertura noticiosa tradicional. Alguma estrela pop começou a namorar alguém que traiu a ex-namorada. Uma espécie rara de ave foi observada em um habitat incomum. O artigo pode ser sobre qualquer coisa, então é melhor dizer logo de cara qual é a coisa. Começar um artigo introduzindo um 'o quê' que é muito vago ou amplo como conceito é ineficaz porque os leitores não saberão a resposta para "e daí?", e não saberão por que deveriam se preocupar com o que estão prestes a ler. Pessoas leitoras online têm períodos curtos de atenção. Elas precisam ser lembradas de por que deveriam se importar com frequência. Nesse sentido, escrever sobre a vida, a humanidade, o mundo em geral em um post de blog é escrever sobre nada, na verdade. No que você vai focar sobre a vida, a humanidade ou o mundo, nesse caso específico, é o que deveria ser dito no início. O meio: Evite dizer às pessoas o que é ou não é. Mostre as evidências e deixe-as falar por si. O meio é onde listamos os argumentos e evidências sobre o quê e por que devemos nos importar. É também uma oportunidade para definir termos e, por vezes, conceitos amplos podem ser empregados com o objetivo final de servir como argumento de apoio ao ponto principal do texto. Por exemplo, defina o termo islamofobia e mostre evidências disso na mídia, junto às fontes. Mostre e analise as evidências sobre a vida amorosa da estrela pop. Descreva o habitat em que a ave rara foi encontrada, explique o que significa a sua presença ali e de acordo com quem. Ou seja, o meio é onde você mostra os recibos, mesmo que todos sejam baseados na sua experiência pessoal. Encontrar ou elaborar evidências para o ponto principal que estamos tentando defender é o maior desafio da escrita de não-ficção. Seguido pelo desafio de tecer um fio ligando todas essas evidências em direção a um propósito final. Uma narrativa não-ficcional é essencialmente isso – um conjunto coerente de evidências que leva à afirmação de uma tese. O fim: E agora? Suponha que todas as evidências que apoiam o ponto estejam apresentadas e que a tese tenha sido afirmada. Ao concluir, a pessoa escritora pode apresentar ao público o que espera que o leitor faça com todas as informações que acabou de ler. Tudo o que a audiência obtém ao ler um texto não pode ser previsto, mas um senso de propósito acessível por parte do escritor ainda pode ser compartilhado. Porque se não conseguimos verbalizar qual foi o motivo de escrever o texto, qual foi o motivo de lê-lo? Às vezes, no processo de criação da estrutura, percebemos que estamos fazendo suposições das quais não temos evidências. Ou estamos fazendo suposições sobre o nosso público, como esperar que ele se identifique instintivamente com algo com o qual ele não necessariamente se identifica. Algumas coisas não são óbvias, e é por isso que sentimos necessidade de falar e escrever em primeiro lugar. Pessoas editoras não são psiquiatras ou terapeutas. Como com qualquer outro indivíduo, só podemos fazer o que está ao nosso alcance. E valorizar vozes neurodivergentes está ao nosso alcance. Se não nos esforçarmos para perceber esse valor, estaremos contribuindo para o silenciamento sistemático de grande parte da população. Diz-se que uma em cada oito pessoas lida com uma condição psicológica prejudicial, sendo a fala pressionada não apenas um sintoma identificável, mas também um sintoma de transtornos de humor com alto risco de suicídio. É possível ser honesto e construtivo com feedback sem alienar ainda mais as pessoas neurodivergentes. Ao fazer isso, novas e inesperadas ideias sobre como aprimorar a comunicação podem se tornar um recurso valioso para todas as pessoas que pretendem comunicar ideias através da escrita. ___ Mirna Wabi-Sabi