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- O preço da conectividade na COP30
Como conseguir investimentos movidos por moralidade, e não por lucro? Sobretudo, o que significa aceitar o dinheiro para a proteção ambiental de quem lucra com sua destruição? Escrito por Mirna Wabi-Sabi __ O primeiro dia da COP30 começou com discursos cuidadosamente calibrados para soar esperançoso. As palavras mais repetidas foram financiamento e inovação. Quase nada se falou sobre quem financia, com quais estipulações, e com que custos sociais e ambientais. As mesas giravam em torno de parcerias, mas os acordos soavam ocos, projetos verdes sustentados pelo mesmo capital que destrói. No Pavilhão dos Oceanos, a ex-primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, fez uma intervenção moral em meio à tecnocracia. “Precisamos começar a encarar o fato de que existem áreas onde precisamos desesperadamente de preservação e restauração. Onde pode não haver um imperativo financeiro, mas há um moral. E nossos oceanos são um exemplo disso.” Quando Ardern fala em “imperativo moral,” ela nos lembra que nem tudo pode ser precificado. Mas a pergunta que ficou suspensa no ar foi: como conseguir investimentos movidos por moralidade, e não por lucro? Sobretudo, o que significa aceitar o dinheiro para a proteção ambiental de quem lucra com sua destruição? Para Coral Pasisi, diretora de Mudanças Climáticas e Sustentabilidade na Comunidade do Pacífico, muitas iniciativas não têm o “luxo” de escolher de onde vem financiamento, concordar com estipulações de empresas onde há conflito de interesse nas operações nem é parte da conversa. A ativista Naira Santa Rita Wayand, presente em outra mesa sobre refugiados do clima, disse que cada um de nós está “mais perto de ser deslocado por causa das mudanças climáticas do que de se tornar um bilionário.” Os bilionários aparecem nas manchetes; os deslocados e o longo processo dos desastres climáticos, nem tanto. O colapso climático continua se acumulando em silêncio até que se torna irreversível. O evento segue dominado pela lógica do financiamento e das parcerias público-privadas, que frequentemente substitui o debate ético por métricas de eficiência e retorno, especificamente através do avanço tecnológico. Foto por Alice Hsieh A China e o novo eixo do discurso verde Entre as presenças mais comentadas na COP30, a China se destacou pela ambiguidade de seu papel; o maior emissor de gases do mundo, e líder da transição energética ao mesmo tempo. Sua atuação é descrita como “cooperação Sul-Sul” ( South-south cooperation ), um termo diplomático para a reconfiguração da influência global. A presença chinesa com delegações sobre energias limpas, Green Tech , e inteligência artificial para o clima também serviu para reforçar a ideia de que o futuro tecnológico pertence ao “Sul;” às nações historicamente colonizadas ou economicamente marginalizadas. Enquanto os chefes de Estado disputavam narrativas de protagonismo, longe das câmeras, outros painéis mostravam a face concreta dessa nova corrida verde de cidades conectadas, florestas monitoradas e corpos digitalizados. Foto por Alice Hsieh Amazônia digital O projeto Norte Conectado foi apresentado pelo assessor especial Jefferson Nacif, do Ministério das Comunicações como parte do programa Amazônia Integrada e Sustentável. Ele instala cabos de fibra óptica subfluviais ao longo de 12 mil quilômetros de rios amazônicos, prometendo levar internet a mais de 10 milhões de pessoas em 60 municípios. Em entrevista, Nacif explicou que “estar conectado é estar integrado na sociedade. Por isso temos que levar conectividade a todas as pessoas,” seja para o entretenimento ou para acessar serviços públicos. Hoje, mais de 4.500 serviços do governo são digitais, a cidadania digital se torna mais e mais inescapável. Segundo ele, a fibra é mais barata e sustentável que o satélite, e o impacto ambiental seria “zero,” já que os cabos “são deitados nos leitos dos rios” por barcos, sem a necessidade de cortar qualquer árvore. O discurso ecoou um otimismo tecnológico que enxerga a infraestrutura como sinônimo de inclusão. Por outro lado, como determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), consultar as comunidades locais é o que garante a inclusão. Uma consulta livre, prévia e informada a povos indígenas sobre qualquer projeto que afete seus territórios é um direito internacional. No caso do projeto Norte Conectado, essa digitalização avança, mas sem tal diálogo, pois ainda não houve pesquisa profunda com as comunidades sobre quais recursos eles requerem e como querem receber. A barqueata da Cúpula dos Povos, realizada dia 12 na Baía do Guajará, em Belém recebeu falas de lideranças que criticaram a apropriação dos rios por projetos de infraestrutura e a falta de escuta do governo em relação às populações tradicionais. “Projetos de infraestrutura” inclui cabos de fibra óptica instalados nos leitos dos rios amazônicos sem consulta prévia. A digitalização traz identidade (RG, carteira de motorista, prova de vida), saúde, e educação. E também traz vício, vigilância e precarização. A dupla face da tecnologia significa que levar internet a quem tem vivido desconectado do mundo digital pode resultar em inclusão, mas também pode ser uma nova fronteira do extrativismo digital se não abordado de forma cuidadosa, crítica e consciente. Foto por Alice Hsieh A IA “do mal” O acesso à internet também significa exposição a diversas novas tecnologias cujas repercussões ainda estão se revelando. A internet viabiliza o contato com a IA e isso reforça a necessidade de abordar inclusão digital cuidadosamente. O advogado Luã Cruz, do Instituto de Defesa do Consumidor (IDEC), lançou uma crítica direta ao otimismo tecnológico logo após a mesa do Instituto de IA para o Clima. Ele abordou os palestrantes, apontando que todos são homens brancos, para perguntar: O que vocês estão fazendo sobre as IAs do mal? Em entrevista posterior, ele explicou o que quis dizer. A primeira maldade é de onde surge a IA. “Ela não é artificial, está em algum lugar,” nos grandes data centers , armazéns gigantescos que consomem água, energia e território. “O problema começa aí.” Segundo Cruz, o mesmo sistema que promete inclusão digital consome os recursos naturais das comunidades que pretende “integrar.” No Ceará, ele citou o exemplo de um data center do TikTok construído ao lado de uma comunidade indígena que já vive com escassez hídrica. “Um data center precisa de muita água para ficar resfriado.” E para quê? “Memes, dancinhas.” Não é um data center para saúde, para educação. “É muita perda e pouco retorno.” Há ainda outros tipos de IA “do mal”: Deepfakes usados em golpes, propagandas falsas ou pornografia infantil; Reconhecimento facial aplicado em segurança pública, que erra mais com rostos negros ; Sistemas de crédito e seguros baseados em IA que discriminam contra pessoas pobres ; O novo “overview” do Google, que captura conteúdo jornalístico sem remunerar quem o produz. Entre outros, incluindo impactos indiretos como lixo eletrônico e mineração para confecção de chips provenientes da inserção da população mundial ao mundo digital. As inteligências artificiais herdaram os mesmos vieses, desigualdades e hierarquias do mundo que as criou. IA “não é nem inteligente nem artificial, né?” Ela se torna a automação das injustiças que já existem. A floresta precisa de Wi-Fi para continuar em pé? De acordo com Cruz, “mudar a vida dessas pessoas não vai só mudar o hábito delas, não vão só consumir mais coisas. Elas vão deixar os hábitos que deixam a floresta de pé. Eu acho que esse é um grande problema.” Foto por Alice Hsieh Uma nova fronteira de DPIs e dados O painel de IA e Digital Public Infrastructure (DPI) se apresentou como uma promessa de eficiência – integrar sistemas públicos, oferecer pagamentos instantâneos (como PIX), monitorar irrigação e “tornar visível o impacto ambiental.” Entre os apoiadores, a Fundação Bill & Melinda Gates, promotora do programa “ DPI for People and Planet ,” premiou 5 projetos no Desafio de inovação, incluindo o projeto brasileiro Trust Carbon, que afirma “dar visibilidade a pequenos agricultores” ao conectá-los à indústria de compensação de carbono. A tecnologia que promete dar visibilidade coleta dados biométricos, usa reconhecimento facial para verificação de checkpoints e alimenta bancos de dados globais de crédito de carbono. Trata-se de redefinir quem é visível, rastreável, e tem a oportunidade de entrar no mapa digital. Foto por Mirna Wabi-Sabi Soluções de código aberto baseadas em IA de Laos O projeto SAFIR ( Smart AI-based Farming & Irrigation for Resilience ), da Alisa Luangrath, foi vencedor do Prêmio IA para Ação Climática desse ano. Com sensores e aprendizado de máquina, a iniciativa usa IA para economizar água na irrigação em áreas de Laos vulneráveis à seca. O diferencial é que o projeto adota licenças abertas, publica seus códigos no GitHub, e compartilha os dados com painéis públicos e APIs (Interfaces de Programação de Aplicações). E ainda mais, fornece esses serviços tecnológicos na língua local para garantir acessibilidade a fazendeiros da região. Enquanto grandes corporações transformam dados ambientais em ativos financeiros, Luangrath oferece um exemplo de tecnologia de IA acessível e transparente. Quando se fala em inovação climática, o caso do SAFIR demonstra o real potencial da tecnologia para, no mínimo, mitigar os danos de eventos climáticos extremos e promover o uso eficiente de recursos. Na COP30, há diversas contradições. As próprias apresentações sobre tecnologia sofreram problemas tecnológicos com microfones, visualizações no telão, e ar-condicionado. O calor e a umidade testam a sanidade da delegação de qualquer nacionalidade, enquanto falamos de combater o aquecimento global com financiamento do setor privado. Ao mesmo tempo em que líderes discutem inteligência artificial para salvar o planeta, a conferência depende de patrocinadores com histórico ambiental problemático, como a Petrobras e a Vale, cujos acordos ainda carecem de transparência e cujas operações não são observadas. Enquanto isso, comunidades que vivem nas margens dos rios com cabos de fibra óptica continuam escanteadas. Talvez haja coisas que nenhum algoritmo pode consertar, como a distância entre discurso e realidade. __ Fontes: Entrevistas exclusivas de Mirna Wabi-Sabi com Jefferson Nacif (Ministério das Comunicações, 11 nov 2025) e Luã Cruz (IDEC, 11 nov 2025), gravações autorizadas. Citações de Jacinda Ardern e Naira Santa Rita Wayand, COP30, Belém do Pará. Informações adicionais de painéis “IA para Ação Climática” e “DPI for People and Planet.” __ Originalmente publicado na Le Monde Diplomatique Brasil , sem imagens.
- “Chega de chacina, polícia na favela, Israel na Palestina!”
Este era o grito no protesto no Rio de Janeiro, dia 31 de outubro. Fotos e vídeos de Fabio Teixeira, 31 de outubro de 2025, no Rio de Janeiro. Dia 28 de outubro de 2025, o Rio de Janeiro se transformou numa zona de guerra . Uma megaoperação das forças de segurança do estado do Rio, envolvendo cerca de 2.500 policiais, foi deflagrada contra a facção criminosa Comando Vermelho . Pelo menos 132 pessoas foram mortas, tornando a operação policial a mais letal da história da cidade. Na madrugada do dia 29, mais de cinquenta corpos foram carregados por moradores e dispostos em uma praça pública no Complexo da Penha, para que os familiares pudessem tentar identificá-los – sem qualquer apoio do Estado. Muitos dos mortos chegaram apenas de cueca, anônimos. O protesto No dia 31 de outubro, um protesto pela paz reuniu moradores das favelas, jovens, familiares das vítimas, ativistas e defensores dos direitos humanos. A energia era urgente e intensa – faixas pedindo o fim do massacre, a identificação das vítimas e justiça para as favelas tremulavam ao vento. Mães e pais se sentavam nas calçadas, chorando, em silêncio, com a cabeça baixa. O trauma coletivo era palpável. As pessoas no Rio e nas comunidades vizinhas falam de choque e luto, mas também de raiva e determinação. O protesto foi uma declaração de que o governo não sairá impune dessa brutalidade. Exigiremos nomes, identificação e apoio jurídico para as famílias. Porque sem isso, não há justiça, apenas apagamento. O massacre expôs a forma como o Estado trata os corpos (e as vidas) de homens, em sua maioria jovens, negros e de baixa renda, moradores das favelas. Após a operação, autoridades governamentais a declararam um sucesso, mas os moradores percebem que essa estratégia assassina de operações policiais, que já dura décadas e que claramente só aumenta o número de vítimas, ainda não apresentou resultados. E nunca apresentará resultados no combate ao crime organizado, porque não aborda a raiz do problema: a subjugação sistêmica dos moradores das favelas e o racismo institucionalizado. Tudo o que faz é satisfazer uma ideologia supremacista e sanguinária de limpeza étnica e extermínio de um contingente da população que não é útil para a manutenção do sistema capitalista. Essas pessoas mortas são seres humanos e merecem dignidade, humanidade e direitos. De acordo com direitos humanos internacionais, o Estado tem o dever de identificar as vítimas, notificar as famílias, fornecer apoio jurídico e psicossocial e, o mais importante, conduzir uma investigação independente. Essas obrigações não são opcionais e ainda não foram cumpridas. A ausência dessa resposta, a falha em identificar adequadamente os mortos e o tratamento vergonhoso da situação como "bandido bom é bandido morto" sinalizam violência institucional em níveis sem precedentes. Sejamos claros: mesmo que todas as pessoas mortas nesta operação fossem membros de gangues (o que ainda não foi comprovado), isso não isenta o Estado de sua responsabilidade. São jovens, em sua grande maioria negros e moradores de favelas. Foram atacados, encurralados, baleados, esfaqueados, decapitados, sem julgamento ou devido processo jurídico. Quando um segmento da população (definido por raça e classe) é tratado como um inimigo a ser exterminado, estamos entrando no âmbito do genocídio. A narrativa oferecida pelo Estado, de que 'um morador de favela merece morrer porque faz parte de um Estado paralelo inimigo,' espelha outras narrativas genocidas em todo o mundo. Diz-se que os palestinos merecem morrer por causa do Hamas; os moradores de favelas merecem morrer por causa do crime organizado e de gangues como o Comando Vermelho. Até mesmo as armas usadas no Rio incluem fuzis de fabricação israelense (como o IWI Arad fornecido à Polícia Militar do Rio). Em ambos os casos, as pessoas são desumanizadas, privadas de direitos, excluídas da ordem simbólica. Essa é a lógica do genocídio, quando a violência é normalizada contra um outro indesejado. O que Lula disse O presidente Lula gerou controvérsia ao afirmar que os traficantes de drogas também são vítimas dos usuários; há pessoas que vendem drogas porque há pessoas que compram, e pessoas que compram porque há pessoas que vendem. A oposição disse que isso equivalia a banalizar o crime de tráfico. No entanto, a declaração aponta para algo mais profundo: o reconhecimento de que aqueles que são forçados a entrar na economia das drogas são, eles próprios, vítimas de um sistema de subjugação, desigualdade e consumo por parte dos privilegiados. No contexto deste massacre mais recente, a implicação é clara. Jovens reduzidos a bucha de canhão, lutando uma guerra sobre a qual tiveram pouca escolha, parte de economias informais geradas pela falta de oportunidades, enquanto os consumidores da classe média e da elite permanecem protegidos do escrutínio e consequência. As palavras do presidente deveriam nos levar a enxergar além do rótulo de "criminoso" ou "bandido" e perguntar: Por que tantas vidas são consideradas descartáveis nas favelas? Por que essa operação fracassa A lógica da megaoperação é cruelmente simples: usar força esmagadora, apreender armas e declarar vitória. Mas décadas de operações semelhantes no Rio e no Brasil mostram que isso não quebra o ciclo de crimes violentos. Pesquisas demonstram que a polícia do Rio mata mais pessoas em operações a cada ano do que a polícia dos Estados Unidos inteiro. O trauma dessa violência se espalha, famílias são destruídas, crianças ficam órfãs, comunidades aterrorizadas e desconfiadas. O protesto pela paz no Rio não se resume a essa única operação; é um grito contra décadas de policiamento militarizado, violência racial e negligência estrutural. Um apelo por justiça e humanidade Após os acontecimentos de 28 e 29 de outubro, as exigências são claras: Todas as vítimas devem ser identificadas; as famílias informadas; e deve ser fornecido apoio jurídico, financeiro e psicossocial. Uma investigação completa e transparente sobre como e por que as pessoas foram mortas. O fim das declarações que criminalizam comunidades inteiras em vez de abordar as causas profundas da desigualdade, do racismo, da falta de oportunidades, da marginalização, do consumo de drogas por parte dos privilegiados e da corrupção em instituições governamentais que encobrem má conduta e uso excessivo da força. O policiamento deve ser substituído por investimento social e pela reconstrução do contrato social para desmantelar suas estruturas de racismo institucional. Se esperamos que o mundo condene a violência em outros lugares, que defenda os chamados países 'civilizados' que respeitam os direitos humanos, devemos primeiro olhar para nós mesmos. A supremacia branca e a violência patrocinada pelo Estado continuam sua lógica genocida no Brasil, em Gaza, em todos os lugares. Para aqueles de nós que não foram diretamente afetados, a luta não acabou. Devemos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para apoiar as comunidades afetadas, exigir justiça e desafiar as narrativas de extermínio. Esta não é apenas uma crise no Rio; é um espelho que reflete o globo. Veja mais fotos aqui. _____ Mirna Wabi-Sabi é escritora, editora da Sul Books e fundadora da Plataforma9 . Ela é autora do livro Anarco-transcriação e produtora de diversos outros títulos pela editora P9 .
- Guerra no Rio: a desigualdade de visibilidade e proteção legal entre mortos de uma operação policial
"Segundo normas internacionais de direitos humanos, às quais o Brasil está juridicamente vinculado , toda morte ocorrida em operações de segurança deve ser registrada, investigada e acompanhada de identificação completa das vítimas." No dia 28 de outubro de 2025, mais de 119 pessoas foram mortas no Rio de Janeiro, na operação policial mais letal da história do Estado. A facção retaliou com drones, explosivos e barricadas. O número de mortos, o ambiente em favelas densamente povoadas, e o fato de muitos mortos ainda sem identificação completa geram questionamentos sobre como, quem, e em que circunstâncias morreram. Entes perdidos foram negados a presença de familiares e a perícia, amarrados com cordas náuticas e transportados em caminhonetes para o hospital Getúlio Vargas, e de lá, para o Instituto Médico Legal. O fato de apenas os policiais serem nomeados evidencia desigualdade de visibilidade e proteção legal entre mortos de uma operação, influencia a narrativa midiática e levanta questões sérias sobre direitos humanos, justiça e ética jornalística. Ao serem nomeados oficialmente, os policiais mortos são imediatamente reconhecidos como vítimas pelo Estado, o que garante às suas famílias acesso rápido a pensões, indenizações e assistência jurídica — benefícios que são negados às famílias dos mortos não identificados. Os problemas éticos, legais e políticos de chamar mortos anônimos de 'bandidos' A presunção de culpa sem julgamento Quando uma pessoa é chamada de bandido após uma operação, está se atribuindo culpa sem processo legal. Mas no Estado de Direito, ninguém deve ser considerado culpado até se provar o contrário. Em muitas dessas operações, as mortes ocorrem sem que haja prisão, investigação ou julgamento — logo, é impossível afirmar quem eram de fato os mortos. O apagamento da humanidade dos mortos Reduzir dezenas de pessoas a bandidos é uma forma de desumanização. Os mortos deixam de ser reconhecidos como cidadãos, pais, filhos, irmãos ou moradores de comunidades, e passam a ser uma categoria abstrata e descartável. Isso facilita a aceitação social da violência policial e o silêncio sobre execuções sumárias. O reforço de desigualdades sociais e raciais Na prática, o termo “bandido” costuma recair sobre corpos negros e pobres das periferias. Essa generalização legitima a morte seletiva de certos grupos sociais. Ou seja, a palavra não é neutra, ela faz parte de uma estrutura de poder que naturaliza a violência do Estado sobre determinados territórios. A transparência e a responsabilização prejudicada Enquanto as autoridades chamam os mortos de “criminosos,” raramente há investigação independente. Isso bloqueia a busca por responsabilidade policial, impede a identificação das vítimas e infringe leis internacionais de direitos humanos. A opinião pública moldada A linguagem molda a percepção social. Quando a imprensa ou o Estado usa “bandidos” para descrever apenas um lado dos agentes de violência urbana, o público tende a aceitar massacres como operações legítimas, mesmo sem provas ou contexto. Isso cria uma narrativa de guerra, em que certos cidadãos são tratados como inimigos do povo. Segundo normas internacionais de direitos humanos, às quais o Brasil está juridicamente vinculado , toda morte ocorrida em operações de segurança deve ser registrada, investigada e acompanhada de identificação completa das vítimas. Essa obrigação consta no Protocolo de Minnesota da ONU (2016) , nos Princípios Básicos da ONU sobre Uso da Força (1990) e na Convenção Americana de Direitos Humanos (OEA) . Esses documentos determinam que, em qualquer operação estatal, é ilegal classificar pessoas mortas como “não identificadas” sem investigação formal e sem notificação às famílias. Para o direito internacional, cabe ao Estado garantir transparência. Até o fechamento desta nota, a operação no Rio não cumpre esses requisitos. Não há boletim público nominal das vítimas, nem relatório oficial de circunstâncias das mortes, o que pode se qualificar como descumprimento de tratados assinados e possível configuração de execução extrajudicial, caso não haja investigação independente. ____ Corpos na Praça Dia 29 de outubro de 2025 Moradores do Complexo da Penha resgataram pelo menos 50 corpos da Serra da Misericórdia na madrugada do dia 29 de outubro, e os colocaram na Praça São Lucas. Lá, familiares tentaram reconhecer seus entes antes do IML os recolher. Quando moradores são forçados a resgatar corpos por conta própria, os empilhar numa praça pública e improvisar uma espécie de identificação coletiva antes da chegada do Estado, há evidência de que o Estado produz morte para manter dominação. Ele não tem comprometimento com a vida da população que considera paralela e inimiga, agindo com brutalidade para 'reconquistar território.' O Estado busca 'reconquistar território' e negar direitos a quem vive nas margens não porque esses territórios sejam uma ameaça à sociedade, mas porque eles representam uma ameaça ao modelo de poder e controle sobre a sociedade. Guerra como método de disciplina social Cada operação cumpre uma função estratégica de: – Impedir a mobilização coletiva, reprimindo lideranças comunitárias e criminalizando qualquer organização autônoma; – Fragmentar redes de solidariedade, produzindo desconfiança e sabotando iniciativas coletivas; – Instalar trauma e medo, usando o terror como método para paralisar a ação política; – E legitimar a ocupação policial permanente, transformando as periferias em zonas de exceção onde direitos são suspensos e a presença militar é normalizada. Essa engrenagem mantém territórios pobres e racializados sob vigilância e submissão, inviabilizando resistência social e assegurando a continuidade do interesse econômico e político que depende dessa estrutura de opressão. As instituições governamentais criam condições para a extração econômica e o controle político dessas populações, ao neutralizar conflitos de classe e proteger a circulação do capital. O que aconteceu no Complexo da Penha nessa madrugada vai além de uma tragédia humanitária. É uma declaração do real interesse das instituições governamentais, que atuam não para proteger vidas, mas para administrar a morte e lucrar ao negar direitos a quem vive nas margens. ____ Escrito por Mirna Wabi-Sabi Fotografado por Fabio Teixeira ____ [Nota editorial: Número de vítimas atualizado.]
- Guerra e abuso contra populações vulneráveis
As Forças Armadas em guerra contra o povo. AS FORÇAS ARMADAS A guerra não é a mesma que era no século passado. Ela evoluiu para formas híbridas , e encontrou novas maneiras de silenciar a má conduta, e fatos em geral. Podemos não ver as armas ou os soldados, mas todos os aspectos de nossas vidas são afetados pela função que essas pessoas exercem. Toda vez que viajamos ou compramos comida importada; na verdade, sempre que nos identificamos como tendo uma nacionalidade, é por causa deles. Instituições militares de defesa são a razão pela qual Estados e Governos existem , porque as fronteiras importam, porque falamos uma certa língua, e porque não podemos simplesmente botar uma barraca na praia. Mesmo assim, a presença militar pode se tornar ainda mais proeminente no cotidiano e durante tempos supostamente pacíficos. A possibilidade de um regime militar no Brasil tem flutuado em conversas desde antes da presidência de Bolsonaro. Ele notoriamente defende o regime militar, foi um oficial durante a ditadura, e disse que não aceitaria o resultado da eleição presidencial se não vencesse – Recentemente admitindo em entrevista que cogitou intervenção militar em 2022. Em seus 27 anos de congresso, o Rio de Janeiro foi alvo de 36 operações das Forças Armadas (FA). A primeira no Rio, em 92, também foi a primeira do país. Os casos em que as FA são usadas para controlar a população brasileira são chamadas de GLO’s, “Garantia da Lei e da Ordem.” Do total direcionado à 'violência urbana,' 43% aconteceram no Rio. Enquanto a maioria dos outros estados tiveram 0, sete estados tiveram 1, e três tiveram 2 – O Rio teve 10 (sem contar 1 operação que teve 15 fases). Agora que ele foi presidente, ficamos atentos com a hiper militarização do Rio se espalhando pelo Brasil. A presença militar no âmbito civil traz algumas implicações previsíveis para a segurança pública e a "lei e ordem." Os militares são empregados como forças policiais, a percepção pública sobre o crime sofre uma mudança drástica, e a privatização dos presídios torna tudo extremamente lucrativo. MISOGINIA As mulheres foram introduzidas nas FA apenas recentemente . Houve pressão para que isso acontecesse durante a presidência de Dilma, já que ainda não havia mulheres de alto escalão na área. Quando Dilma sofreu impeachment, em 2016, a esposa do homem que a substituiu foi elogiada por ser “ bela, recatada e do lar. ” Esses são métodos midiáticos passivos-agressivos de manter as mulheres no âmbito doméstico (e, neste caso, fora do 'mais alto cargo' do país), mas também existem métodos mais agressivos, visíveis nas figuras consistentemente alarmantes de crimes de ódio contra mulheres e pessoas LGBTQIA+ . Incluir mulheres nas Forças Armadas pode não resolver o problema do sexismo, mas pode provocar mudanças rápidas e significativas na vida de mulheres marginalizadas que inevitavelmente interagem com as FA, além de impactar a cultura interna da instituição. A desmilitarização da assistência humanitária e dos recursos de saúde deve ser o próximo passo. Para assegurar os efeitos duradouros dos esforços de saúde pública, é essencial acabar com a situação de desabrigo, garantindo moradia estável e acesso a água encanada para todos. A primeira solução é apenas mais rápida porque já foi discutida por algumas décadas, e a mudança mesmo assim acontece lentamente. Enquanto as outras soluções infelizmente não são comumente consideradas no discurso público. Em 2011, foi publicado um estudo sobre a inserção de mulheres na Marinha. Esta é a opinião de um oficial sobre como esta mudança tem sido: – Relato na página 90 de um artigo de 2011 chamado “ Políticas Públicas de Gênero: A inclusão das mulheres na Marinha do Brasil como militares. ” Foi difícil escolher uma citação para analisar; este artigo está repleto de comentários machistas velados como não-sexistas porque são apresentados como elogios ou como simples fatos. Por exemplo, as mulheres trouxeram “uma maior importância a arrumação e a limpeza” para o ambiente de trabalho (p. 91), como se uma grande coisa que as elas tivessem a oferecer fosse sua inclinação para o cuidado doméstico. Essa atitude ignora completamente a conjuntura sócio-política que levou as mulheres a verem as tarefas domésticas como sua responsabilidade (muitas vezes não remunerada), enquanto o homem sai para fazer o trabalho real (pago e relevante). Elas fazem tudo com mais “docilidade” e “carinho” (p. 89), são mais estudiosas e caprichadas, não podem ouvir palavrão, e homens devem evitar ter conversas de “muito baixo calão” perto delas. Além de acharem a presença de mulheres de maiô “constrangedora” durante a educação física. Mulheres oficiais e praças são especificadas como “mulheres,” enquanto “homem” é omitido e implícito. Isso grifa o masculinismo como se fosse tradicional. Ele especifica a masculinidade apenas quando descreve o sexo como algo que os 'homens' procuram. Dessa forma, tratando o sexo como algo que os homens querem das mulheres, simbólico da cultura do estupro. “Extraconjugal” e “lá fora” são termos alarmantes que exigem uma pesquisa urgente e detalhada sobre como esses homens tratam as mulheres locais nas regiões onde se instalam para trabalhar. Se a cultura do estupro emana de uma linguagem que é considerada tradicional, não podemos ignorar como ela revela uma atitude que pode se materializar a qualquer momento. Infelizmente, não há figuras ou dados referentes a má conduta sexual por parte de soldados e oficiais, apenas incontáveis histórias de maridos traindo suas esposas. FALTA DE DADOS Há falta de dados sobre agressão sexual, assédio e outros ataques morais de gênero cometidos por membros das FA. Em um relatório de uma reunião da Comissão de Gênero do Ministério da Defesa ( CGMD ) em abril de 2015, uma representante da Secretaria de Pessoal, Ensino, Saúde e Desporto afirma que não há registro formal de casos de agressão porque o “'sistema' tende a abafar fatos ocorridos.” Logo em seguida, um representante da Secretaria de Organização Institucional expressa preocupação com o objetivo dessa pesquisa de dados. Ele afirma já ter feito a pesquisa, encontrando um número insignificante de casos, alguns dos quais incluem homens como vítimas. Portanto, sua preocupação é com a tendência ao “denuncismo,” simplesmente ignorando comentários de mais de uma pessoa dizendo que não há figuras sobre o tópico (e nenhuma outra explicação clara do motivo para isso). Este ano, uma advogada naval me explicou que esses números não existem porque são considerados informações pessoais processadas pelos tribunais; dentro das FA, apenas o pessoal de Inteligência tem esses relatórios. Em outras palavras, relatórios e números existem, mas em sigilo . Nesse tópico, o diálogo público é formal, estéril e falso, especialmente quando admite que essas reuniões são uma resposta à pressão diplomática para alcançar padrões internacionais de igualdade de gênero. O comunicado de encerramento de um ministro descreveu a Suécia negando acordos diplomáticos com a Arábia Saudita e a Liga Árabe por causa dessa questão. Ou seja, não se deve prejudicar as relações diplomáticas com países ocidentais por atrasos nessa questão, e a islamofobia é um véu conveniente para o machismo. A mesma reunião gerou um debate sobre o uso da palavra “equidade,” já que alguns temiam que isso pudesse ser interpretado literalmente; como a expectativa de 50/50 na participação de homens e mulheres nas FA. Isso seria tão ruim? Para eles, sim, porque isso significaria substituir a meritocracia por algum tipo de cota. Como se as mulheres tivessem a opção de entrar nas FA, já que não há concursos o suficiente disponíveis. E quando tem, como se elas tivessem a motivação pessoal de serem moldadas a um ambiente violentamente masculino, onde nem mesmo as instalações são projetadas para acomodá-las . A CGMD ainda garante que os espaços femininos sejam concedidos apenas dentro de um sistema meritocrático ( 2017 ). O que isso significa não é que as mulheres possam entrar quando são qualificadas e valiosas, mas sim quando elas efetivamente alcançam os padrões já existentes (masculinos) que foram estabelecidos pelas instituições militares há 200 anos. A meritocracia nada mais é do que uma desculpa para marginalizar, nesse caso, mulheres. Nos registros de reuniões de 2014 já se revelam confrontos entre “conversas sobre mulheres” versus “conversas com mulheres.” Um coronel anunciou o workshop Proteção das Mulheres nas Operações de Manutenção da Paz da ONU , sobre como proteger uma população feminina local durante missões de “paz.” No entanto, não havia mais vagas disponíveis para membros da CGMD, o que levou uma mulher, membro da Escola Superior de Guerra a estabelecer a porcentagem embaraçosamente baixa de mulheres na instituição educacional (18%). Geralmente, esses baixos percentuais são atribuídos ao fato de que as mulheres só se inscrevem para o Exército voluntariamente, enquanto para os homens brasileiros, a inscrição é obrigatória. Todas as carreiras do Exército são voluntárias; os homens não têm obrigação de servir mais do que 1 ano, e esses 9-12 meses serem obrigatórios para os homens apenas garante a predominância masculina na área. COLONIALISMO “As mulheres ribeirinhas são oportunistas, e vão atrás da pensão. Então use camisinha e não a deixe em qualquer lugar – dê descarga.” Um oficial da Marinha me relatou este conselho dado aos recém-chegados nos 9º, 6º e 4º distritos navais – Sobre descartar evidências de má conduta sexual enquanto a trabalho no norte do país. Esse oficial também me disse que viu colegas de trabalho gastarem mais de 20 mil reais em um fim de semana “fazendo festa” com mulheres locais. Alguns vivem vidas extravagantes em áreas carentes e gostam de chamar atenção por ter dinheiro. Esses distritos incluem a população mais vulnerável do país e também com o maior número de pessoas indígenas; inclui os estados Amazonas e Pará, onde o rio Amazonas se encontra com o oceano. Lá, as populações Ribeirinhas são consideradas indígenas ou quilombolas. Principais quartéis-generais e bases da Marinha do Brasil (Wiki-Commons Rússia) A Marinha, como uma instituição criada em um período explicitamente colonial, ainda hoje legitima que homens explorem sexualmente mulheres 'não-brancas,' indígenas e da diáspora africana. Mesmo se uma agressão sexual fosse denunciada, o que é raro, nem o agressor nem as autoridades responsáveis conseguem interpretá-la de uma perspectiva que não fosse tradicionalmente patriarcal e colonial. “É um conselho que mostra a normalização do abuso sexual, muitas vezes no uso do poder sobre as mais vulneráveis. A desumanização dessas mulheres em descrevê-las como oportunistas desconsidera como suas condições de vida foram profundamente moldadas pela exploração contínua.” – Jördis Spengler, socióloga. O workshop “Proteção das Mulheres em Operações de Paz da ONU” de 2014 parece não ter sido frutífero até agora. Essas reuniões, grupos ou siglas institucionais fizeram avanços significativos no bem-estar das mulheres neste século, ou elas existem apenas como uma fachada das Relações Internacionais exibida para o Ocidente? PREPOTÊNCIA A Cartilha Maria da Penha descreve um aspecto relevante de um agressor como “prepotência.” Membros das FA tendem a ser atraídos pelo cargo exatamente pelo poder e influência que ele oferece. Isso se dá não apenas devido à artilharia pesada intimidadora, mas também no sentido de reputação, dinheiro, e acesso a espaços exclusivos e imponentes. No Brasil, as FA não garantem apenas a soberania do Estado, elas são usadas para controlar a mesma população que se propõe proteger. Uma parte significativa da polícia já é militarizada, mas também contamos com as Forças Armadas para fazer o trabalho em ocasiões especiais, as GLO’s. Em muitos casos, essas operações visam prevenir a população de acessar terras e recursos; de ocupar certos espaços. GLO’s são usadas contra a população nas favelas, comunidades indígenas, quilombos e protestos. A soberania da favela e sua população; O acesso dos povos indígenas e quilombolas a florestas, manguezais, rios e outras fontes de sustento espiritual, cultural e prático; A manifestação de opiniões e frustrações por meio de protestos urbanos; Esses são conceitos considerados ameaças ao Estado e justifica declarar guerra contra brasileiros(as). O artigo 331 do código penal garante o direito dessas autoridades de criminalizar o desacato. Como o desacato é um conceito abstrato, é fácil para policiais e soldados prenderem quem os antagoniza de alguma forma. Não obedecer às ordens significa um ataque contra o “funcionamento” do Estado, resultando em até 2 anos de detenção. A não ser que o caso tenha motivações políticas, o que pode ser classificado como terrorismo. São eles que detêm o maior poder e influência — a própria definição de prepotência. Apesar de isso não constituir prova de um crime, revela a urgente necessidade de conscientização de gênero para os integrantes das instituições de defesa. Além disso, reflete uma cultura presente nas Forças Armadas, e alterar essa norma é um desafio considerável em meio a tanta rigidez. O Centro de Estudos Estratégicos de Defesa (CEED), uma iniciativa multinacional um tanto independente, começou a realizar uma pesquisa sobre mulheres no setor de defesa na América Latina por volta de 2015. Hoje ainda não está claro qual foi o resultado e a disposição do Ministério da Defesa do Brasil de participar. Talvez as questões da pesquisa já implorassem por significantes mudanças. A seção 5 do formulário, dedicada ao Ambiente de Trabalho, pergunta sobre a existência de um escritório dedicado ao bem-estar das mulheres, apoio a vítimas de violência doméstica, registro de casos de assédio e programas de educação sexual. Dos oficiais que conheci, nenhum está ciente da existência desses programas, desta pesquisa, ou se quer foram expostos ao tópico em geral. Nos últimos 6 anos , o site do CEED deixou de existir. DESPEJO O que acontece depois do despejo de uma comunidade favelada? O entorno da comunidade Sem Terra do Parque União no complexo da Maré lida com instabilidade e despejos desde os anos 80. Apesar da área ter sido aterrada e loteada com o intuito de fornecer moradia acessível para comunidades vulneráveis, a vulnerabilidade persiste. Os despejos e demolições de construções irregulares tem qual objetivo? E o que acontece depois que famílias são despejadas? Para o despejo mais recente, de 2024, o motivo dado pelas autoridades e reproduzido pela mídia é que os prédios auxiliavam o tráfico de drogas na lavagem de dinheiro, e eram de “luxo” apesar de serem irregulares no papel. Ou seja, quem estava morando ali, nas estruturas inacabadas, não eram pessoas vulneráveis, pois tinham acesso a uma piscina – portanto, supostamente pessoas coniventes com ou do tráfico. Essa narrativa é criada para justificar a utilização do Exército Brasileiro contra a própria população do país, já que, para eles, trata-se de Crime Organizado e não de cidadãos brasileiros vulneráveis que merecem direitos básicos como moradia e saúde. Meio ano depois, muitas das 40 famílias desabrigadas continuam sem ter para onde ir, nas ruas da própria comunidade. Afundados em indignidade e obviamente sem acesso aos luxos supostamente disponibilizados pelo Crime Organizado, as brigas irrompem entre si, enfraquecendo o potencial para um movimento de resistência organizado. É impossível se organizar contra a narrativa construída pelas autoridades para justificar a marginalização quando essa marginalização é tanta que nem a sobrevivência no dia a dia é garantida. Poucos metros da comunidade Sem Terra, o Núcleo de Apoio as Operações Especiais , uma base militar, se instalou para dar suporte a operações de segurança, monitoramento e combate ao tráfico de drogas na região. A presença da base militar, com a promessa de proteção e ordem, acaba sendo mais uma fonte de tensão para os moradores da área. Muitas vezes, a violência policial se intensifica, com operações que resultam em ações indiscriminadas e a violência estrutural que perpetua a marginalização dos residentes. A narrativa de segurança pública, associada ao combate ao tráfico de drogas, se sobrepõe à realidade de uma população que está buscando apenas um meio de vida digno, longe da criminalização e da violência. A falta de políticas públicas efetivas de moradia e saúde para a população mais pobre cria um ciclo vicioso, onde o despejo e a violência se tornam o cotidiano. E quando as pessoas são forçadas a sair de suas casas, muitas vezes, sem qualquer tipo de suporte, elas se veem em uma luta constante pela sobrevivência. Com a desagregação das comunidades e a falta de uma rede de apoio, a resistência se torna cada vez mais difícil. O Estado, ao invés de atuar como um facilitador da inclusão social, se posiciona como um agente de controle e repressão, intensificando a desigualdade já existente. O despejo da comunidade Sem Terra do Parque União não é um caso isolado. Ele faz parte de um ciclo contínuo de remoções forçadas, que acabam por destruir as bases de solidariedade que, muitas vezes, são a única forma de resistência que os moradores possuem. O movimento de resistência, em vez de crescer, se fragmenta em meio ao caos social imposto pela ausência de políticas públicas efetivas. Diante disso, é necessário que a sociedade olhe para essas questões de forma crítica, reconhecendo que a verdadeira segurança e inclusão não se encontram na repressão, mas em ações concretas de acesso à moradia digna e saúde. Só assim, comunidades poderão se reorganizar e lutar por seus direitos de maneira efetiva, sem serem constantemente despojadas de tudo o que têm, inclusive da integridade de seus próprios corpos. CONCLUSÃO Não podemos aguardar um consenso unânime sobre o Patriarcado e o Estado serem problemáticos antes de começarmos a aplicar soluções. Sempre houve e continuará a haver uma resistência significativa à mudança. O enfraquecimento das estruturas hegemônicas parece assustador para aqueles que não conseguem conceber suas vidas ou o mundo sem elas. Isso se resume a uma completa falta de criatividade e a um privilégio suficiente para que uma série de desculpas nos mantenha em um caminho destrutivo. Perder a crença na meritocracia pode transformar a sociedade em uma onde a palavra “marginalizado(a)” não carregue um significado negativo. A perda do direito dos homens de perpetuar linguagem e comportamento misóginos resulta das mulheres conquistando espaço . Isso pode se refletir em mudanças significativas na atitude militar em relação às mulheres em áreas vulneráveis. Eu sinceramente não pensava em chegar a outra conclusão além de fortalecer minha oposição à ideia de alguém ingressar nas Forças Armadas . No entanto, será que as mulheres precisam de mais pessoas ditando o que elas devem ou não devem fazer? Talvez esta seja uma situação parecida com a do casamento gay; primeiro, precisamos legalizá-lo para a comunidade LGBTQIA+ antes de podermos questionar a instituição como um todo. O direito deles de serem ofensivos e “tradicionalmente masculinos” não é mais importante do que o nosso direito de ser independente, de não ser assediada, humilhada, assassinada, estuprada, comprada, e tudo que não queremos ser. Apenas a partir daí, podemos começar a nos tornar tudo o que queremos ser. __________________ texto: Mirna Wabi-Sabi Baseado em uma pesquisa publicada originalmente em 2019.
- Por que o clássico 'A Revolução de uma Palha' do Fukuoka nunca foi publicado no Brasil? Até agora...
Durante décadas, A Revolução de uma Palha (1975), um livro do microbiologista e agricultor japonês Masanobu Fukuoka , circulou no Brasil de forma extraoficial. A edição de Portugal, de uma editora que não existe mais chamada Via Óptima, se tornou a principal referência entre agroecologistas, permacultores, agricultores familiares, estudantes e leitores interessados em ecologia. Porém, a agência literária que representa a família de Fukuoka não reconhece essa edição portuguesa como legítima ou oficial. Em 2026 , isso finalmente muda. Estamos preparando a primeira edição brasileira do livro que volta às raízes filosóficas e ao sentido que Fukuoka deu à ideia de agricultura natural . Quando “Natural” Virou “Selvagem” A edição portuguesa, que circula no Brasil em PDF até hoje, foi traduzida da edição francesa dos anos 80, publicada por Guy Trédaniel. Essa versão traduziu 自然農法, termo criado por Fukuoka, como agriculture sauvage (agricultura selvagem). E a edição portuguesa seguiu essa escolha. Fukuoka talvez rejeitasse essa perspectiva, às vezes descrevendo seu método como ‘semi-selvagem,’ mas sempre afirmando que o processo depende do entendimento do que é a natureza sem domesticação , para podermos saber quais ações devem ou não ser tomadas . Ele aprendeu isso cedo, dizendo que: “O problema, veja bem, era que eu não estava praticando agricultura natural, mas sim o que se poderia chamar de agricultura preguiçosa! (...) Aquelas árvores jovens tinham sido domesticadas, plantadas, podadas e cuidadas por seres humanos. As árvores tinham sido escravizadas pelos humanos, então não conseguiram sobreviver quando o suporte artificial fornecido pelos agricultores foi repentinamente removido.” (A Revolução de uma Palha) “O verdadeiro caminho para a agricultura natural exige que a pessoa saiba o que é a natureza inalterada, para que ela possa entender instintivamente o que precisa ser feito — e o que não deve ser feito — para trabalhar em harmonia com seus processos.” ( Entrevista com o menino do arado: Masanobu Fukuoka ) Ou seja, para Fukuoka, ‘natural’ era diferente de ‘sem cuidados.’ A harmonia não é alcançada com negligência. Qual é o problema com “Selvagem”? A palavra 自然 ( shizen ) em japonês traz um sentido filosófico ligado ao zen e ao taoismo. O fluxo autêntico da vida em equilíbrio decorre de enxergar a negociação entre Natureza e Sociedade não como um paradoxo ou contradição, mas como “ um estado de espírito mais elevado . (…) As duas categorias são definidas como opostas, mas são necessárias uma à outra.” Já sauvage /selvagem carrega um legado colonial baseado na oposição entre civilizado e primitivo — um imaginário historicamente usado para julgar povos e culturas fora da Europa. Embora selvagem e primitivo possam ser ressignificados, a filosofia de Fukuoka não propõe uma agricultura que simplesmente nasce, cresce e vive sem cuidados especiais, nem rejeita os aprendizados da ciência moderna. Assim, traduzir shizen como “selvagem” revela a perspectiva cultural e epistemológica de seus tradutores, uma visão de mundo europeia que tem dificuldade em perceber os processos Naturais atravessando e integrando o processo Humano. Essa Nova Edição Nossa edição brasileira tem alguns compromissos fundamentais: Português brasileiro . Tradução baseada no inglês de Larry Korn , discípulo e tradutor oficial de Fukuoka. Reconhecimento da agência japonesa que representa a família do autor. Essa nova edição é uma responsabilidade ética com a obra de um dos pensadores ecológicos mais importantes do século XX. Por que Publicar Isso Agora? Porque Fukuoka é urgente. Enquanto o mundo discute transição ecológica, soberania alimentar, colapso climático e tecnologias rurais dependentes de petróleo, Fukuoka permanece um farol que nos lembra: Não existe agricultura saudável sem humildade diante da natureza. Não existe regeneração sem simplicidade. Não existe futuro sem solo vivo. 💡 Nos próximos meses, vamos compartilhar: Trechos inéditos da nova tradução. Traduções de entrevistas com Fukuoka. Novidades sobre a publicação e seu lançamento. Se você quer acompanhar esse processo e apoiar o projeto: inscreva-se no boletim e compartilhe. Vamos devolver Fukuoka ao Brasil com o respeito que ele merece. ________________ Mirna Wabi-Sabi, Diretora da Plataforma9.
- ABBA Voyage: entenda a disputa silenciosa entre arte e algoritmo
Fotos por Johan Persson Originalmente publicado na Billboard Brasil . Desde 2022, o espetáculo ABBA Voyage está em cartaz cinco dias por semana em uma arena construída especialmente para ele no leste de Londres — uma experiência imersiva que tem atraído multidões. A ideia nasceu dos próprios integrantes da banda: a ideia é voltar aos palcos sem precisar estar fisicamente neles. Historicamente, o que essa tecnologia oferece às novas gerações é a chance de reviver um fenômeno musical impossível de recriar de outra forma. Não se trata apenas de assistir um show como se fosse 1979, mas de presenciar o que esse show poderia ser se os integrantes do ABBA tivessem vinte e poucos anos hoje. Rejuvenescimento A tecnologia de rejuvenescimento foi desenvolvida pela Industrial Light & Magic (ILM), empresa fundada pelo George Lucas, e combina captura de movimento, modelagem digital e efeitos visuais cinemáticos. Representantes tanto do espetáculo quanto da ILM negam o uso de inteligência artificial, aprendizado de máquina ou reconhecimento facial. Já a NVIDIA — atualmente a empresa mais valiosa do mundo, avaliada em 4 trilhões de dólares e líder em hardware e programação de IA — apresenta outra versão. Segundo a companhia, o “rejuvenescimento digital” empregado pela ILM em filmes como “O Irlandês” (2019) utiliza aprendizado de máquina para analisar filmagens antigas de atores, recriando feições e gestos deles na juventude. “A equipe desenvolveu um software chamado ILM FaceFinder, que usou IA para analisar milhares de imagens de performances anteriores dos atores,” afirmou Rick Champagne no blog de Mídia e Entretenimento na NVIDIA. A ILM , porém, rejeita a associação. Em entrevista por email, um representante declarou “Não há ‘IA’ na criação do ABBA Voyage […] Rejeitaremos respeitosamente qualquer solicitação de pauta sobre IA/ML [Artificial Intelligence/Machine Learning]. Também não participaremos de nenhuma pauta sobre inteligência artificial. […] O ILM não está usando “Software de Reconhecimento Facial”. […] Não sabemos o que é ‘FaceFinder’, mas não é uma ferramenta que usamos.” Essa divergência reflete interesses distintos. A NVIDIA não cria filmes nem shows, mas vende GPUs e plataformas de IA. Para ela, quanto mais se falar em inteligência artificial, maior o prestígio e valorização para ela no mercado. Já a ILM vende serviços criativos e artísticos; reconhecer o uso de IA levantaria questões sensíveis sobre direitos de imagem, ética e autenticidade. Ao negar vínculos com IA, ela pode buscar proteger o espetáculo de ser percebido como menos artístico ou excessivamente artificial. Memória Cultural É difícil imaginar o motivo de rejeitar o uso dessa tecnologia nesse contexto, em que os artistas estão vivos e envolvidos no projeto. A ferramenta tecnológica ajuda a resolver um dilema fundamental da memória cultural: a impossibilidade de recriar integralmente um evento artístico. Nenhum registro dos anos 70 pode transmitir a atmosfera de estar diante do ABBA jovem em seu auge criativo. Mas a tecnologia atual, ao emular esse momento com fidelidade e imaginação, cria uma experiência histórica imersiva que não substitui o passado, mas dialoga com ele e o expande, concretizando a visão artística-musical da própria banda quatro décadas após seu apogeu. No ABBA Voyage, caminha-se pelos ecos de um tempo afetivo. A música que marcou gerações aparece em cena de forma honesta, não como ilusão ou engano, mas como jogo consciente entre passado e presente. Os próprios integrantes brincam “no palco” sobre a troca de figurinos e comentam sobre a natureza surreal desse presente futurista. A opacidade não está tanto no uso da tecnologia, mas na estratégia publicitária. A IA está sendo cada vez mais utilizada no processo de Computação Gráfica (CGI) em geral, possibilitando novas estratégias de eficiência e criatividade, e não as substituindo. Na prática, ela está cada vez mais presente em quase tudo. Ser hoje a empresa mais valiosa do mundo graças à IA indica que os mercados enxergam nela o principal motor de crescimento econômico. Ao controlar tanto hardware quanto software, a NVIDIA pode adquirir um poder sistêmico ainda maior do que o que a Microsoft já exerceu. Suas diversas patentes em reconhecimento facial e visão computacional ampliam esse alcance, moldando silenciosamente como dados, imagens e identidades são processados no universo digital. Arte ou inteligência artificial? O público raramente encontra a marca NVIDIA em seu cotidiano, ao contrário de marcas como a Apple. Isso ocorre porque grande parte dos negócios da empresa está no fornecimento de componentes para outras companhias e desenvolvedores, sobretudo em centros de dados de IA. Embora o consumidor reconheça marcas como Dell ou HP, é a NVIDIA que está nos bastidores, operando como infraestrutura invisível que sustenta grande parte do ecossistema digital contemporâneo, inclusive na indústria do entretenimento. Acordos de confidencialidade nos impedem de saber exatamente o que acontece nos bastidores. Mas as patentes registradas e os valores recordes de capitalização de mercado demonstram como a dominância de ecossistemas de hardware e software de IA é indisputável. O debate em torno do ABBA Voyage gira menos em torno do uso técnico da inteligência artificial e mais em torno de quem define o significado cultural dessas ferramentas — os artistas no palco ou as empresas que projetam os chips que processam sua imagem digital. O espetáculo nos lembra que a tecnologia nunca é neutra; ela não apenas reimagina o passado para novos públicos, mas também esboça os contornos de um futuro em que a própria cultura depende de sistemas controlados por um punhado de corporações. *Não são permitidas fotos durante a apresentação. As imagens desta matéria foram fornecidas pela assessoria de imprensa do ABBA Voyage.
- A ascensão e queda da influência econômica dos EUA sobre o Brasil
"Aqui no Hemisfério Ocidental, estamos comprometidos em manter nossa independência frente à invasão de potências estrangeiras expansionistas. Desde o governo do presidente Monroe, é uma política formal de nosso país rejeitar a interferência de nações estrangeiras neste hemisfério e em nossos próprios assuntos." (Declaração do presidente Donald Trump em 2018) Manifestação contra a Tarifação de Trump, 01/08/2025. Em frente ao Consulado dos EUA, área central do Rio de Janeiro. O início da relação entre o Brasil e os Estados Unidos foi moldada por uma combinação de oportunismo diplomático, alinhamento ideológico e interesse econômico. Um instrumento-chave dessa relação foi a Doutrina Monroe , anunciada em 1823, que declarava que as Américas não estavam mais abertas à colonização ou intervenção europeia. Embora essa política tivesse como objetivo impedir as monarquias europeias de interferirem nas recém-independentes repúblicas da América Latina, ela carregava uma estratégia de longo prazo: a substituição gradual da influência europeia na América Latina pela dos Estados Unidos. No caso do Brasil, mesmo que sua independência de Portugal tenha ocorrido na forma de uma monarquia constitucional em vez de uma revolução republicana, os Estados Unidos foram o primeiro país a reconhecer a independência brasileira, em 1824, sinalizando o desejo de incluir o Brasil em sua esfera de influência. No século XIX, o Brasil permaneceu economicamente ligado ao Império Britânico, que financiava infraestrutura como ferrovias e dominava o comércio de commodities como café e açúcar. Os Estados Unidos, por sua vez, eram uma potência em ascensão, buscando expandir seu alcance comercial. A Doutrina Monroe ofereceu um arcabouço retórico e ideológico para essa expansão, posicionando os Estados Unidos como o guardião da liberdade e da independência no Hemisfério Ocidental. No entanto, na prática, isso significava abrir caminho para a influência econômica dos EUA. Com o tempo, Brasil e Estados Unidos passaram a se alinhar mais de perto, não apenas politicamente (como visto durante a Segunda Guerra Mundial, quando o Brasil enviou tropas para lutar ao lado dos Aliados ), mas também economicamente. Empresas estadunidenses passaram a atuar nos setores brasileiros de energia, agricultura e extração de recursos a partir da metade do século XX. Embora a Doutrina Monroe tenha funcionado inicialmente como um alerta à Europa, ela evoluiu para uma justificativa da dominação regional dos Estados Unidos. Especialmente durante a Guerra Fria, a doutrina deu suporte a golpes de Estado, imposição de políticas econômicas e assistência militar, tudo com o objetivo de manter os países latino-americanos dentro da órbita dos Estados Unidos. O golpe militar de 1964 no Brasil contou com apoio dos EUA e levou a décadas de ditadura sob um regime que acolheu capital e comércio estadunidense , especialmente nos setores de energia e mineração. Esse período marcou a consolidação de um modelo econômico dependente dos EUA, centrado na exportação de bens primários, mão de obra de baixo custo e investimento estrangeiro direto (IED) , muitas vezes à custa da soberania econômica. Fusão de Mercados e Integração de Recursos A partir da década de 1990, sob a globalização neoliberal, a economia brasileira tornou-se cada vez mais integrada à dos Estados Unidos. Isso foi reforçado por políticas que incentivaram a privatização, a desregulamentação e a liberalização comercial. O agronegócio brasileiro prosperou com o investimento e as exportações voltadas aos EUA, enquanto grandes multinacionais expandiram sua presença, especialmente nos setores de petróleo (como a Chevron ), energia e bens de consumo. A influência dos EUA substituiu, de forma eficaz, a dominação europeia nas relações externas do Brasil, em consonância com o longo alcance da Doutrina Monroe. O resultado foi uma dependência estrutural – o Brasil permaneceu como uma economia exportadora de commodities , dependente de preços internacionais voláteis e de capital externo, particularmente dos EUA e da China. Com controle limitado sobre desenvolvimento tecnológico ou política industrial, o Brasil se vê inserido em um paradigma neocolonial mais baseado em economia do que em exércitos. Manifestação Pró-Bolsonaro, 03/08/2025. Praia de Copacabana, zona sul do Rio de Janeiro. A Era Trump: Reafirmação ou Reversão da Doutrina Monroe? Com a eleição de Donald Trump, ocorreu uma mudança. Sua administração, sob o lema de " America First ", começou a se afastar de alguns dos princípios centrais da política econômica externa dos Estados Unidos. Trump impôs tarifas sobre o aço e o alumínio brasileiros , citando soberania nacional e proteção de empregos. Ele também reduziu o apoio a acordos comerciais multilaterais, retirou-se de compromissos ambientais globais e promoveu um nacionalismo econômico que, implicitamente, contradiz a globalização de livre mercado defendida por administrações dos EUA anteriores. Isso marcou uma reversão parcial da lógica econômica da Doutrina Monroe. Em vez de expandir os mercados estadunidenses no exterior e integrar as Américas sob liderança dos EUA, Trump buscou proteger as indústrias dos Estados Unidos da concorrência, mesmo de países aliados como o Brasil. Foi um esforço para reduzir a dependência americana de recursos estrangeiros – um contraste marcante com a estratégia centenária de extração desses recursos via comércio com a América Latina. Em parte, essa reversão foi impulsionada por pressões políticas internas. A desindustrialização nos EUA , especialmente no chamado "Cinturão da Ferrugem", levou a um ressentimento em relação ao livre comércio. A base de apoio de Trump vê a globalização econômica como prejudicial aos trabalhadores americanos, enquanto beneficiava elites e potências estrangeiras. Romper laços com parceiros comerciais tradicionais, mesmo ao custo de boa vontade internacional, foi apresentado como um caminho para restaurar a força dos Estados Unidos. Por um lado, as tarifas de Trump e o recuo do livre comércio enfraqueceram os canais de exportação do Brasil, especialmente para produtos industrializados. O setor agrícola também enfrentou novas vulnerabilidades, embora a China tenha absorvido parte desse comércio. Por outro lado, as políticas de Trump forçam o Brasil a reconsiderar sua dependência estrutural dos EUA. Isso pode representar uma oportunidade para o Brasil desenvolver mais autonomia e investir em autossuficiência. Romper com a dependência não é fácil, especialmente quando a China se torna a nova força dominante nas relações comerciais do Brasil, principalmente em soja, minério de ferro e petróleo. A questão deixa de ser se o Brasil depende dos Estados Unidos, e passa a ser se está apenas trocando uma potência hegemônica por outra. Muitos brasileiros pró-EUA, particularmente à direita ou em círculos empresariais, paradoxalmente apoiaram Trump, apesar de suas medidas protecionistas. Esse apoio é frequentemente ideológico, vindo da admiração pelo estilo autoritário de Trump, sua postura anti-China ou seus valores sociais conservadores. Também há a crença, entre algumas elites, de que se alinhar aos Estados Unidos, independentemente das contradições políticas, garante estabilidade geopolítica e econômica. Esses setores podem ver Trump como um modelo de rompimento com restrições “globalistas” ou de fortalecimento da identidade nacional – mesmo que isso signifique aceitar danos econômicos de curto prazo. Em contraste, brasileiros anti-EUA, frequentemente à esquerda, se opõem às políticas de Trump não porque rompem com a dependência do Brasil, mas porque fazem isso nos termos estadunidenses, de forma unilateral e sem oferecer alternativas. Esses críticos temem que o nacionalismo econômico estadunidense desestabilize os setores exportadores do Brasil, enfraqueça o frágil equilíbrio capitalista e reduza qualquer alavancagem que o Brasil ainda tenha nos mercados globais. Ironicamente, essa oposição pode levar à defesa das estruturas de comércio globalizado, que também reproduzem a posição de dependência do Brasil. Embora a Doutrina Monroe tenha nascido como um escudo retórico contra o colonialismo europeu, ela se tornou uma ferramenta da expansão americana. O Brasil, como uma potência imperial relativamente autônoma no século XIX, acabou sendo incorporado à ordem econômica liderada pelos Estados Unidos. Ao longo de dois séculos, a política dos EUA moldou o papel do Brasil na economia global como fornecedor de recursos e destino de investimentos, frequentemente às custas do desenvolvimento nacional. O nacionalismo econômico de Trump interrompeu essa trajetória – não ao empoderar o Brasil, mas ao retirar a mão americana. Para o Brasil, isso cria tanto riscos quanto oportunidades. O colapso dos padrões anteriores pode abrir espaço para uma maior soberania econômica, mas apenas se brasileiros tiverem visão e coordenação para agir. Caso contrário, o vácuo deixado pelos EUA poderá ser simplesmente preenchido por outra potência, repetindo o mesmo ciclo sob uma nova bandeira. Escrito por Mirna Wabi-Sabi Escritora e editora. Autora dos livros Anarcho-Transcreation e Seeds and Tales. Fotografado por Fabio Teixeira Fotojornalista vencedor do Prêmio Rei da Espanha de Jornalismo Internacional.
- A militarização que agride a gestão educacional no RJ
Fotos por Fabio Teixeira. Rio de Janeiro, 03/12/2024. "Policia militar do batalhão do choque agride professores que se concentravam em frente a câmara de vereadores, na Cinelândia, área central da cidade. A polícia militar lançou bomba de gás lacrimogêneo, bala de borracha e spray de pimenta nos educadores que estavam fazendo um protesto." Militares ocupam cargos estratégicos na gestão educacional do Estado do Rio de Janeiro, e instalam uma cultura de controle e disciplina hierárquica nas escolas públicas. Há uma ocupação significativa de cargos administrativos na Secretaria de Estado de Educação (SEEDUC‑RJ) por oficiais militares da reserva da Polícia Militar e das Forças Armadas, e isso é mais evidente no modelo de escola pública de ensino Cívico-Militar . Esse modelo faz gestão compartilhada entre civis e militares, e adota princípios de disciplina, hierarquia e ordem inspirados na lógica militar. Nesse contexto, docentes relatam restrições à liberdade acadêmica e à abordagem de temas como política, sexualidade e direitos humanos. Essa presença militar não se restringe ao ambiente escolar, oficiais também participam das comissões responsáveis por sindicâncias e processos disciplinares, expandindo a lógica típica das corporações militares à gestão educacional. A Corregedoria Interna da SEEDUC‑RJ, também conhecida como Corregedoria Interna da Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro, é o órgão responsável por investigar, apurar e julgar infrações disciplinares cometidas por servidores da rede estadual de ensino. No momento, o senhor Johnny Lauro Brito de Barros é o chefe deste órgão, oficial da Polícia Militar, tendo como especialidade Direito Penal e Processual Penal Militar. Sindicatos de educadores enxergam a criminalização liderada por essa chefia como resultante da falta de experiência dessa liderança com o ambiente escolar. De acordo com um Relatório do Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do Rio de Janeiro (SEPE-RJ), entre janeiro de 2020 e maio de 2024, a SEEDUC abriu 1.320 sindicâncias contra educadores – uma média de uma por dia. Os depoimentos de dezenas de professores(as) que enfrentam processos administrativos revelam que os motivos são: participação em debates pedagógicos ou políticos; denúncias de racismo em sala de aula; projetos escolares com temas sociais; e questionamentos ao Novo Ensino Médio. Esses processos muitas vezes elevam o nível de estresse dos educadores e exauram sua capacidade laboral, afetando negativamente as escolas. Entre novembro e dezembro de 2024, o Rio de Janeiro foi palco de intensos protestos de profissionais da educação contra um projeto de lei complementar que alterava benefícios e direitos dos professores da rede estadual. As manifestações, organizadas pelo SEPE-RJ, com apoio de movimentos estudantis, reuniram milhares de pessoas nas ruas do centro da cidade, especialmente na Avenida Presidente Vargas, Câmara Municipal e Cinelândia. Em diversas ocasiões, os atos foram duramente reprimidos pela polícia, resultando em uso de gás lacrimogêneo, confrontos, lesões e prisões, enquanto os educadores denunciavam sindicâncias abusivas e a militarização da estrutura escolar. A militarização da gestão educacional no Estado do Rio de Janeiro representa uma distorção do papel da escola pública. Ao adotar práticas autoritárias, controle disciplinar e cerceamento da autonomia docente, a Secretaria de Educação se distancia de princípios pedagógicos, até mesmo quando reage às reivindicações dos professores e professoras quando as levam para as ruas. A presença de oficiais militares em cargos administrativos, o uso sistemático de sindicâncias e punições contra professores críticos, e a repressão nas manifestações onde demandas são expressas pela população expõem uma tentativa de silenciamento e subjugação. Essa postura substitui o diálogo por coerção, e a educação por adestramento. Escrito por Mirna Wabi-Sabi Fotografado por Fabio Teixeira
- A determinação silenciosa das tartarugas
Texto por Mirna Wabi-Sabi, fotos por Fabio Teixeira Tartarugas são criaturas majestosas. Por diversos motivos, elas se tornaram ícones da longevidade. Primeiramente, elas sobreviveram o evento que causou a extinção em massa dos dinossauros. Hoje, elas podem viver por mais de um século. Podem viver, não – deveriam poder viver. A civilização humana está essencialmente por trás de tudo que as ameaça. Poluição de diversos tipos, empreendimentos imobiliários, tráfego marítimo, pesca industrial, elevação do nível do mar e eventos climáticos extremos causados pelo aquecimento global, perda de habitat, erosão de solos praianos e o dano inimaginável dos vazamentos de petróleo nos oceanos parecem ser mais avassaladores do que um cometa ou asteroide gigantesco atirado contra a Terra. Durante milhares de anos, civilizações humanas em todos os continentes têm adorado a figura da tartaruga. Mais de 35 mil anos atrás ela já era venerada no cerne da Ásia Ocidental (o Levante), sendo considerada o símbolo religioso mais antigo em uma das sociedades mais antigas da nossa história. E até mero meio século atrás, a América do Norte era conhecida como a Ilha da Tartaruga por povos indígenas locais. A deterioração da mitologia, lenda e folclore centrados em entidades da natureza é recente, mas perdem espaço ferozmente para os que centram as grandes indústrias e empreendimentos globais. O paradigma cultural que surge com a industrialização não parece se preocupar com a longevidade humana ou mais-que-humana, e isso não pode permanecer realidade. Na praia de Itaipu, em Niterói–RJ, o projeto Aruanã há 15 anos monitora tartarugas marinhas no entorno da Baía de Guanabara. Para as biólogas, colaboradores, voluntários e apoiadores deste projeto, está claro que a prosperidade das tartarugas é inseparável da prosperidade humana. Esse animal exerce um papel amplo no equilíbrio do ecossistema natural desse planeta, do qual nós fazemos parte e dependemos para sobreviver. Ou seja, o declínio da tartaruga como espécie desencadeia uma sequência de danos nos ecossistemas marinhos, que por sua vez prejudicam a nossa subsistência. Diversas coisas podem ser feitas para proteger as tartarugas além de denunciar e demandar que grandes indústrias parem de poluir e destruir o habitat delas. Para indivíduos como nós, sem posições de total poder de decisão em multinacionais e corporações, é possível reduzir o consumo de plástico, e quando há consumo dele, reciclar, para garantir que esse resíduo não acabe nos oceanos. A sede do projeto Aruanã em Itaipu recebe embalagens descartáveis limpas de plástico reciclável e esponjas usadas para garantir que o destino desses resíduos não cause danos futuros nos oceanos. Uma iniciativa ainda mais simples e acessível para a população geral é o que o Aruanã chama de “Ciência Cidadã.” Ao observar uma tartaruga em algum lugar, viva ou morta, você pode tirar uma foto e enviar para eles com local, data e horário. Com esses dados, a equipe da organização monitora o ciclo de vida dessas criaturas, assim identificando desafios e obstáculos que elas enfrentam para completar esse ciclo. Esse ano, o Aruanã renovou seu contrato de financiamento com o Programa Petrobras Socioambiental, e poderá dar início a um novo projeto – o de rastreamento de tartarugas marinhas por satélite (Telemetria Satelital). Com essa tecnologia, será possível acompanhar os padrões migratórios de diversas tartarugas com precisão e eficácia. Para as biólogas do projeto, é sempre emocionante quando uma tartaruga é encontrada novamente, anos depois, numa região distante de onde ela foi primeiramente registrada. Não só porque as chances são pequenas de as encontrar nos vastos oceanos, mas também porque é gratificante ver e registrar evidência de sua prosperidade. Hoje, a identificação de tartarugas pode ser feita pelo número em suas tags , ou pelo desenho das escamas em suas cabeças, que exercem a função de impressões digitais. Com Telemetria Satelital, dados preciosos podem ser coletados sobre locais e temperaturas preferidas das tartarugas, e como essas regiões interagem com o comportamento humano. Para a tartaruga-verde, por exemplo, que conforme o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade “é a única espécie que se reproduz nas ilhas oceânicas brasileiras,” evidências científicas irrefutáveis podem ser registradas sobre elas. Essas evidências podem, por sua vez, ser usadas para “ facilitar o estabelecimento de acordos multinacionais para a conservação.” Sabemos que alcançar acordos, como os que serão discutidos na COP30 em Belém, e garantir que eles sejam cumpridos no nível institucional e global são desafios esmagadores, por isso cumprir acordos entre nós mesmos e nossas comunidades é um primeiro passo alcançável. Os oceanos não se submetem ao desejo das indústrias, ou das restrições de fronteiras estatais. O que acontece neles é responsabilidade de toda a humanidade. Como membros dessa humanidade, temos o poder ajudar a forjá-la. Enfrentar ameaças antropogênicas aos locais cruciais no ciclo de vida de animais como a tartaruga não só é salubre para a humanidade, é também fundamental para não desencadearmos nosso próprio evento de extinção em massa. O projeto Aruanã faz um trabalho detalhado de coleta e sistematização de dados, desenvolvimento de pesquisas acadêmicas na área de biologia marinha e sustentabilidade, e também de engajar a população local no que eles chamam de “preocupação ambiental relacionada ao ambiente marinho.” Se ‘preocupar’ nada mais é do que fomentar uma narrativa coletiva, comunitária, que visa estimular a prosperidade da flora e fauna no nosso canto do planeta, também porque somos parte dessa fauna. Os avanços tecnológicos e econômicos que testemunhamos nesse último século não precisam se tornar apenas uma fonte de aniquilação ambiental, onde o consumo e descarte só aumentam infinitamente, sem visão de impactos no longo termo. Se a tartaruga nos ensina algo, é que a longevidade é alcançada em pequenos passos decisivos. E todos os dias fazemos escolhas impactantes. Os “Objetivos do Desenvolvimento Sustentável” (ODS) da ONU, especialmente o ODS 14 – “Vida na Água” –, reforçam a urgência de conservarmos e engajarmos com os oceanos de forma sustentável ao longo termo. A proteção das tartarugas marinhas se insere nesse esforço global, nos lembrando que não há futuro possível para os humanos sem o bem-estar ecológico. Projetos como o Aruanã demonstram que, mesmo diante de desafios globais avassaladores, ações locais e cotidianas são fundamentais e eficazes. A tartaruga simboliza a necessidade de desacelerar o consumo, refletir e agir com responsabilidade, sem perder de vista que a mudança é feita, sobretudo, por aqueles que insistem em trilhar o caminho da preservação da natureza. Ao proteger as tartarugas, estamos, na verdade, defendendo a possibilidade de um futuro saudável para todos, onde a natureza possa existir em equilíbrio. Que a humanidade se inspire a seguir a mesma determinação silenciosa das tartarugas, rumo a um planeta mais saudável e digno. Fotos tiradas dia 20 de maio, 2025, na praia de Itaipu, Niterói-RJ, por Fabio Teixeira, do Projeto Aruanã . Fotos tiradas dia 15 de maio, 2025, na Praia da Ilha do Governador, por Fabio Teixeira, do grupo Orla Sem Lixo . Fotos tiradas dia 21 de abril, 2025, na Praia da Ilha do Governador, por Fabio Teixeira, da ecobarreira no canal do cunha .
- Bolsonaristas não apoiam Israel por respeito aos judeus e sim por desprezo aos árabes
Há anos vemos Bolsonaro e seus apoiadores abanando bandeiras israelenses e estadunidenses, clamando pela vitória deles na aniquilação que continuam a incendiar na Palestina. Esse fenômeno já foi explicado teologicamente por muitos, com base nos ensinamentos bíblicos evangélicos. Mas essa explicação é insuficiente. Acreditar numa revelação sobre o retorno de Jesus, o julgamento das nações, e a chegada do “fim” não é nada em frente ao desdém emitido em direção ao mundo árabe pelo ocidente cristão. Ato bolsonarista em Copacabana - 21 de abril 2024 - Fotos por Fabio Teixeira Não custa muito lembrar que o desprezo que o mundo cristão tem ao ‘outro’ não é apenas direcionado ao árabe. Há desprezo ao africano, chines, indiano, árabe… e ao povo judeu também. Será coerente acreditar que a criação de Israel como nação foi mesmo uma vontade de Deus? Ou um fruto desse ódio, da supremacia racial enraizada em nossa sociedade cristã? Sim, é uma questão de raça, mais do que de religião. Apoiar um povo que exibe comportamentos culturais e valores supostamente mais ‘alinhados’ com os nossos, o que na Europa chamam de propensão à ‘integração,’ é código para apoiar uma sociedade ‘superior’ em detrimento de outra, que é ‘inferior.’ Na realidade, a pressuposição dessa inferioridade, ou atraso evolucionário de certos povos, é um dos traços mais tóxicos de nossas sociedades cristãs. E esse traço é muito mais latente do que qualquer conhecimento ou entendimento teológico ou histórico das pessoas sobre qualquer coisa. Não importa que nem todos os árabes sejam muçulmanos, não importa se sabemos em qual ano estamos no calendário islâmico, não importa que tanto muçulmanos quanto judeus traçam sua linhagem de Abraão, ou que a maior nação muçulmana do mundo nem árabe é. O que importa para esse eleitorado é o avanço da dominação Europeia no mundo, porque se acredita que os europeus (e descendentes deles) são os humanos mais evoluídos. Assim vemos nos Estados Unidos, onde o ‘americano’ de verdade é o descendente europeu. No Brasil, onde o brasileiro de verdade é o de alguma descendência europeia visível. E, assim, judeus tem sido usados por eles como linha de frente na guerra de dominação Europeia em seu avanço para o oriente. Na leitura teológica sobre o apoio cristão ao estabelecimento da nação judaica em Israel, o avanço de dominação Europeia no oriente significa acelerar o retorno de Jesus e o início do fim do mundo. Nesse ponto, o povo judeu será salvo baseado em sua disposição de… deixar de ser judeu. Será que as pessoas que acreditam que o sionismo, e o que está sendo feito com a Palestina, são vontades de Deus também acreditam que a Alemanha nazista apoiou a vontade de Deus, pelo simples fato de (também) ter influenciado decisivamente o estabelecimento do estado judeu? Fobia ao islã e racismo contra os árabes são motivações praticamente unânimes em meio de diversas divergências religiosas, de interpretação de passagens bíblicas, dentro do cristianismo. É possível olhar a situação em que estamos agora e enxergar uma evolução da humanidade, em comparação com milhares de anos de história religiosa? Será que os brancos, europeus não são capazes de barbarismo? Ato bolsonarista em Copacabana - 16 de março 2025 - Fotos por Fabio Teixeira Estamos presenciando a barbárie, um legado cultural, geopolítico, e religioso de milhares de anos, sim. Mas estamos, acima de tudo, testemunhando um paradigma de desintegração de valores espirituais que deram vida a todas essas religiões em primeiro lugar. É Ramadã. Pelo mundo inteiro, muçulmanos estão observando seus valores humanos e religiosos, praticando, na medida do possível, caridade, disciplina, e honrando esse presente divino que é estar vivo graças a Allah, Alhamdulillah . Enquanto isso, a barbárie continua, se exacerba, e os bolsonaristas levantam bandeiras em completo declínio espiritual e obliteração de valores humanos. Nós de nações cristãs, que de um lado afirmamos defender valores de liberdade, justiça, penitência e perdão, testemunhamos membros de nossas comunidades se deleitando na brutalidade da chacina. Em face dessa desgraça, eu, pessoalmente, boto fé no mundo árabe, em sua integridade humana e disciplina religiosa para forjar seu caminho de resistência. وَقَـٰتِلُوهُمْ حَتَّىٰ لَا تَكُونَ فِتْنَةٌۭ وَيَكُونَ ٱلدِّينُ لِلَّهِ ۖ فَإِنِ ٱنتَهَوْا۟ فَلَا عُدْوَٰنَ إِلَّا عَلَى ٱلظَّـٰلِمِينَ ١٩٣ “E combatê-los até que não haja mais perseguição e a religião seja para Allah. Mas se eles cessarem, que então não haja agressão, exceto contra os malfeitores.193” (2:193 Alcorão) _ Mirna Wabi-Sabi, Plataforma9.
- O problema com o termo “pré-colombiano”
A era pré-colombiana significa, essencialmente, tudo o que veio antes da chegada de Cristóvão Colombo, portanto, uma experiência humana nas Américas livre da influência europeia. Originalmente publicado 20 de setembro de 2023, na Le Monde Diplomatique . Ruínas Mayas em Tulum, antiga cidade portuária maia, no México (Aaron Huber/Unsplash) Pesquisadores frequentemente se referem às antigas civilizações das Américas, ou aos povos indígenas em geral, como “pré-colombianas”. A era pré-colombiana significa, essencialmente, tudo o que veio antes da chegada de Cristóvão Colombo, portanto, uma experiência humana nas Américas livre da influência europeia. O termo é usado para evocar uma abordagem científica e prática do tempo em vários campos de estudo: história, biologia, botânica, geografia, antropologia, política e a lista continua. Mas por que enquadrar o tempo dessa maneira? Qualquer experiência humana antes de 1492 corresponde a um período de pelo menos 15 mil anos, em 2 continentes. Do tempo total coberto pelo “pré” e “pós” colombiano na existência humana, o “pós-colombiano” equivale a no máximo 3% do total. Como tal, esse sistema parece ainda mais arbitrário do que “antes” e “depois” de Cristo. Nenhum desses homens está objetivamente no centro de qualquer medida de tempo. Tecnicamente, o termo “ pré-colombiano ” não está incorreto. Também não é incorreto descrever a Ditadura como “Pré-Mídia Social”, mas por que fazer isso se não estamos falando sobre Mídia Social? A única razão para definir algo como “não europeu” é centrar a Europa na conversa, e isso não contribui no alcance de precisão nas análises de eras. Também não contribui no alcance de precisão nas análises de experiências indígenas, porque é vago demais para ser útil. Pelo menos útil para qualquer produção intelectual que vise a objetividade e o respeito aos seus sujeitos. Se o tema da investigação são os Incas, por exemplo, categorizá-los genericamente como “existentes antes da chegada dos europeus” não demonstra respeito. Por essa medida, os maias e astecas também eram pré-colombianos, mas de regiões e épocas bastante diferentes. Incontáveis civilizações, povos, etnias e línguas existiam nas Américas antes da chegada dos europeus, e a ampla categoria “pré-colombiana” é uma das características menos notáveis de cada uma delas. Apenas os europeus rotulariam a existência de um povo indígena como “antes de os conquistarmos”. No campo acadêmico da História Humana, que deu origem a esse termo, foram tidos em consideração apenas relatos históricos europeus. Mesmo quando isso começou a ser questionado, em meados do século XIX, por ‘exploradores’ como John Lloyd Stephens, esses povos nativos, e as suas construções ou artefatos, ainda eram descritos como “descobertas”. Essa é talvez a única razão objetiva para usar o termo “pré-colombiano”, para apontar que algo aconteceu ou foi feito antes da descoberta europeia. John Lloyd Stephens é frequentemente creditado como o descobridor de ruínas maias , mas ele dependeu de “ boca a boca ” para chegar até elas, o que significa que alguém lhe disse onde elas estavam. Stephens e a sua equipe não foram descobridores, foram documentaristas que analisaram os documentos históricos reunidos e chegaram à conclusão nada surpreendente de que foram realmente os maias que construíram os monumentos. Ao pensar no legado da civilização maia e no que essas ruínas simbolizam, descrevê-las como “pré-colombianas” é tão informativo quanto dizer “isso não foi construído por nós”. Já foi argumentado que o termo “pré-colombiano” é um esforço de combate ao eurocentrismo , uma vez que diminui a ênfase do papel dele no período. Contudo, mesmo como negação, Colombo, um homem, é colocado no centro. Como pode ser que um homem, ao pisar numa ilha, instantaneamente, e sozinho, ponha fim a uma era de dezenas de milhares de anos? Monumentos magníficos, pirâmides, arquitetura, florestas criadas, tecnologias agrícolas e medicinais, possivelmente 100 milhões de pessoas espalhadas por cerca de 40 milhões de quilômetros quadrados de terra, estão todos colocados à sombra de um só homem. Isso é irreal demais para ser científico. “Embora os dados devam ser puros e diretos, a ciência é feita por pessoas, que nunca são nenhum dos dois.” (Adam Rutherford, em Uma Nova História dos Povos Originários nas Américas ) Platypodium elegans, fotografado por Riccardo Riccio, para o projeto Seeds and Tales. Na botânica, várias espécies de plantas são atribuídas como descritas pela primeira vez pelos europeus. Isso porque o processo de “descrição de espécies”, tal como o conhecemos hoje, é uma invenção europeia – não tem nada a ver com o fato de uma pessoa ter encontrado a espécie pela primeira vez. O Platypodium elegans , por exemplo, nativo do Brasil, está associado a um botânico alemão do século XIX chamado Vogel. Porém, o povo indígena Xavante, considerado uma das “ populações fundadoras das Américas ”, já se referia a essa planta como ‘wede itsaipro’ , ou “árvore com espuma”. A descrição da espécie trata da primeira pessoa que encontra o espécime, que também atua no âmbito da publicação de artigos científicos. Isso significa que várias pessoas, comunidades ou culturas podem muito bem ter tido contato íntimo com as espécies vegetais descritas, durante anos, séculos ou milênios, mas não com publicações científicas em instituições acadêmicas europeias. O conceito de ‘primeira descrição’ de novas plantas trata da construção de um banco de dados que segue um padrão estabelecido em 1735, na Holanda, por um botânico sueco chamado Carl Linnaeus. Ou seja, não se trata de descoberta, mas de consenso para seguir um padrão específico, criado em um local específico por uma pessoa específica. Essa norma pode a qualquer momento ser questionada e o consenso revogado. Na época em que Linnaeus publicou Systema Naturae , ele acreditava que o mundo não abrigaria mais de 10 mil espécies de plantas . Embora o seu método seja interessante e útil, não estava exatamente equipado para sustentar a escala moderna de computação de dados, por isso teve de ser adaptado. Essa adaptação pode, e deve, ser levada mais longe para honrar não só a precisão nas descrições das espécies de plantas, mas também as civilizações que detêm um vasto conhecimento sobre essas plantas, há milénios. Esses povos originários desempenharam um papel no desenvolvimento genético de muitas plantas através de antigas tecnologias agrícolas e da domesticação de culturas, e informações valiosas sobre as propriedades medicinais, dietéticas e culturais dessas plantas não serão mais negligenciadas. Xavante, entre outros, é um nome que deveria ser conhecido e falado sobre tanto quanto, e mais do que Colombo, Stephens ou Vogel. Para isso, deve-se fazer um esforço conjunto para substituir “pré-colombiano” por algo mais específico, como datas, localizações e nomes das civilizações e dos povos originários . A documentação produzida pelas expedições europeias pode muitas vezes ser útil, mas quando aceita sem crítica ou análise, perde-se muito mais conhecimento do que se ganha. _________ Mirna Wabi-Sabi é escritora, editora e fundadora da Plataforma9.
- Nobel de Economia premia a comprovação de que quanto mais branco, mais rico o país
Três homens caucasianos-americanos receberam um milhão de dólares para um projeto de pesquisa que conclui que a riqueza está onde os europeus estão Por Mirna Wabi-Sabi, originalmente publicado na Le Monde . O Prêmio Nobel de Economia deste ano recompensou uma pesquisa que aborda a pobreza de países do ‘Sul Global’. Segundo o presidente da comissão do Prêmio, os homens galardoados contribuíram para a compreensão de que instituições europeias fortes e funcionais tornam nações colonizadas mais ricas. Como tal, a ausência ou fraqueza destas instituições, causada por um lapso na disposição da população de defender os valores europeus que erguem essas instituições, é o que leva à pobreza. Em conclusão, para que um país pobre se torne rico, a colonização europeia deve não só continuar, mas se aprofundar e eliminar de uma vez por todas qualquer reminiscência dos sistemas e epistemologias pré-colombianas. “As Origens Coloniais do Desenvolvimento Comparativo: Uma Investigação Empírica”, de Daron Acemoglu, Simon Johnson e James A. Robinson, foi publicado na American Economic Review em 2001. Sua premissa é que a alta mortalidade entre os colonizadores europeus resultou em “instituições extrativistas”, que persistem “até o presente”. A atual extração de recursos para ganhos a curto prazo é um legado colonial causado pelas taxas de mortalidade elevadas entre os colonos. E o fato de a região ter sido hostil aos europeus durante a colonização manteve essas nações num ciclo de “ baixo crescimento econômico ”. Ser menos hostil, ou mortal, para os europeus significou que mais deles sobreviveram, portanto, instituições democráticas puderam ser construídas e sustentadas. O crescimento econômico foi estimulado e, portanto, esses países são agora menos pobres. “De acordo com os laureados, (…) não ocorre nenhuma melhoria” em nações onde as instituições são autoritárias, em contraste a “inclusivas”. Há uma distinção interessante, ou desconcertante, feita entre abordagens “inclusivas” e “extrativistas” da colonização: “Em algumas colônias, o objetivo era explorar a população indígena e extrair recursos naturais para beneficiar os colonizadores. Em outros casos, os colonizadores construíram sistemas políticos e econômicos inclusivos para o benefício a longo prazo dos colonos europeus.” (“ Eles forneceram uma explicação de por que alguns países são ricos e outros pobres “) É desconcertante que as abordagens sejam descritas como crucialmente distintas, quando, na realidade, estão igualmente e exclusivamente preocupadas com o bem-estar dos colonos. “Beneficiar os colonizadores” é literalmente a mesma coisa que o “benefício a longo prazo dos colonos europeus”. Agora, como os “sistemas políticos e econômicos inclusivos” diferem da ‘exploração dos povos nativos e da extração de recursos naturais’? Estes “sistemas políticos e econômicos”, que eles chamam de “inclusivos”, legitimaram a exploração e a extração, uma vez que foram geridos por colonos que só tinham em mente o seu próprio bem-estar. A distinção não reside onde afirmam os responsáveis pela premiação dessa pesquisa – não se trata de como um é mais democrático e humanitário do que o outro, e de como a democracia leva a um PIB per capita mais elevado. A distinção, para aqueles de nós que vivem nesses chamados “pobres países colonizados”, é o que constitui a legitimação da exploração e da extração. A linha entre instituições legítimas e ilegítimas é traçada pelos europeus, neste caso em particular por homens caucasianos-americanos com um Prêmio Nobel. Segundo eles, os países colonizados onde “ os colonos tentaram replicar as instituições europeias ” são opostos extremos daqueles onde os colonos apenas extraíram recursos sem estabelecer instituições ocidentais. Um é o Congo ou o México, enquanto o outro são os Estados Unidos ou a Austrália. Um é rico, o outro não. Um tem um sistema de eleições livres , onde a propriedade privada é protegida e as crianças obtêm diplomas do ensino secundário, enquanto o outro é atormentado pelo crime organizado, os políticos são corruptos e o empreendedorismo não é viável. Os pesquisadores atribuem essas diferenças extremas ao fato de algumas regiões simplesmente não serem convenientes para o assentamento europeu. Eles chamaram essas regiões de “ambiente da doença”. A aniquilação das populações nativas pelos colonos nos países onde estes impuseram as suas próprias instituições “inclusivas” não foi abordada. No entanto, o perfil racial das categorias de nações utilizadas como exemplo é bastante evidente. Os EUA, a Austrália, o Canadá e Hong Kong são ricos, supostamente porque são democráticos. Enquanto o Brasil, o México, a Guatemala e o Congo são pobres porque os seus governos têm sido corruptos ou autoritários. Argumenta-se que se as instituições da Nigéria pudessem “melhorar” como as instituições do Chile conseguiram, “o rendimento da Nigéria” veria um “aumento de 7 vezes”. No entanto, será que a malária e a febre-amarela, na verdade, protegeram certos países de uma maior dominação, expropriação e genocídio às mãos dos europeus? Será que ambos os modelos institucionais, “extrativista” e “inclusivo”, são criações europeias concebidas para subjugar os não-europeus? Será que o conceito de riqueza e os sistemas para a medir são invenções europeias que não foram concebidas tendo em mente o melhor interesse dos países colonizados? Do meu ponto de vista, como brasileira no Brasil, as instituições democráticas e “inclusivas” deste país não fizeram quase nada para proteger as nossas florestas da exploração, e muito menos para proteger as populações nativas da expropriação, da pobreza, do abuso e da morte. Para os pesquisadores, o Brasil é um exemplo de um daqueles países que foram explorados através do extrativismo porque a escravidão só foi abolida institucionalmente duas décadas depois dos Estados Unidos. Se, por um lado, o Brasil teve os seus recursos extraídos, por outro, os Estados Unidos tiveram o seu território deliberadamente povoado por europeus, e esforço foi feito para tornar esta migração em massa atrativa através da instituição de estruturas políticas ocidentais. Essa narrativa não leva em conta que o Brasil fez todas essas coisas, e mais – houve extração, incentivo ao assentamento europeu e à miscigenação, estabelecimento de instituições “inclusivas”, e escravidão, e uma ditadura, e o Mercado Capitalista Livre. Temos até nossa própria Monarquia . E ainda somos “pobres”. Essa pesquisa não se preocupou em saber como tornar as instituições europeias mais eficazes na proteção das pessoas nativas e da natureza. Estão preocupados em apresentar o argumento previsível de que os comunistas são autoritários e pobres, enquanto os capitalistas são democráticos e ricos. Os primeiros exemplos usados no documento “complementar” da American Economic Review para ilustrar a importância das instituições são, nas suas próprias palavras, os “ óbvios ” da Coreia do Norte e do Sul, e da Alemanha Oriental e Ocidental. Três homens caucasianos-americanos receberam um milhão de dólares para um projeto de pesquisa que conclui que a riqueza está onde os europeus estão. Sem discutir o fato que o conceito de Riqueza, como o conhecemos hoje, foi criado por e para europeus, os pesquisadores defendem a democracia e atribuem a falta dela à falta de presença europeia numa região. As pessoas de direita que clamam por um governo pequeno e um capital grande também não estão convencidas por essa pesquisa, por motivos completamente diferentes dos colocados acima. Eles veem o endosso de regulamentações governamentais como uma ameaça à prosperidade da economia. No final, é o mesmo velho debate entre Republicanos e Democratas estadunidenses, não sobre como acabar com a pobreza, mas sobre como continuar a garantir o domínio global do Mercado Livre. Uma investigação como essa, vencedora do Prêmio Nobel, evidencia como a Economia não é uma ciência evolucionária , é apenas uma história lucrativa. _____ Mirna Wabi Sabi é escritora, editora, e fundadora da Plataforma9. É autora do livro Anarco-transcriação e produtora de diversos outros títulos da editora P9.












