Resultados da busca
66 itens encontrados para ""
- Chacina não garante a segurança fluminense, ela é crime de guerra
Texto por Mirna Wabi-Sabi e Fotografia por Fabio Teixeira Foto por Fabio Teixeira dia 2 de agosto de 2023, no hospital Getúlio Vargas. Após a chacina no Complexo da Penha no Rio de Janeiro, dia 2 de agosto, um coronel declarou que o Estado está tomando as medidas necessárias para garantir a segurança fluminense. A reportagem da G1 que destacou essa fala, ao invés de destacar as diversas falas de moradores da área, se utiliza da palavra "criminosos" para justificar as ações da polícia. Essas ações policiais, que são recorrentes e de longa data, não só transcendem regimes partidários como também são evidentemente ineficazes. Armas apreendidas e "criminosos mortos" não diminuíram as atividades do tráfico de drogas, mas afetam as vidas de moradores de forma persistente e irreversível. Crianças são impedidas de ir à escola, trabalhadores são impedidos de ir e vir de suas casas, e a cultura de segregação de classe e raça impede que politicas públicas eficazes sejam implementadas. Segundo um relatório desse ano do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da UFF (GENI), a polícia mata em massa de forma impune, nos últimos 3 anos as mortes estão mais altas do que nunca, o Rio de Janeiro supera em muito os índices nacionais de chacinas, e "as polícias cometem muito mais chacinas que os próprios grupos armados" que elas dizem querer combater. A única explicação é que não só os criminosos em si, mas civis em geral nas comunidades não são vistos como merecedores de vida, muito menos de uma vida digna. A justificativa mais comum para operações que resultam em chacinas é intervir em disputas violentas entre grupos criminosos. Essas operações são abordadas com o uso "irrestrito de forças", gerando um estado de guerra. Um dos problemas de entrar em guerra com o povo da sua própria nação é que o uso de ferramentas bélicas acaba alienando, se não assassinando, civis. Em qualquer outro contexto, isso seria considerado um crime de guerra; morte deliberada de civis e prisioneiros, manter reféns e praticar tortura, destruição gratuita de propriedade de civis, cometer assassinatos em massa constituindo em genocídio ou 'limpeza' étnica... Tudo isso é praticado rotineiramente pela polícia nas favelas do Rio. Se as forças armadas brasileiras praticassem essas ações com pessoas de outros países, elas não só estariam, mas deveriam estar sendo investigadas pelo Tribunal Penal Internacional em Haia. Um elemento definido pelo Tribunal num documento de 2013 que constitui um crime de guerra é o seguinte: Genocídio por infligir deliberadamente condições de vida calculadas para provocar destruição física. "Elementos: 1. O perpetrador impôs certas condições de vida a uma ou mais pessoas. 2. Tal pessoa ou pessoas pertenciam a um determinado grupo nacional, étnico, racial ou religioso. 3. O perpetrador pretendia destruir, no todo ou em parte, aquele grupo nacional, étnico, racial ou religioso, conforme tal. 4. As condições de vida foram calculadas para provocar a destruição física desse grupo, no todo ou em parte. 5. A conduta ocorreu no contexto de uma manifestação padrão de conduta semelhante dirigida contra esse grupo ou foi uma conduta que poderia causar tal destruição." Fotos por Fabio Teixeira, da série: Limpeza Étnica Nas Favelas, O Raio-x do Rio De Janeiro As condições de vida que as forças armadas e o governo criam nas favelas se qualifica como provocadoras da destruição de um grupo étnico. Mas é admitido que são ações calculadas? Se sabe que operações policiais são calculadamente letais, inclusive para civis, e há impunidade graças ao Estado. Enquanto há quem não considere "criminosos" civis por serem membros de um grupo organizado armado, os dados publicados pelo GENI descreve que entre 2007 e 2022, todas as chacinas no Rio de Janeiro mataram mais civis do que policiais. O maior erro da estratégia das forças armadas é considerar membros de facções criminosas como não-civis e definir todos os moradores da favela da mesma forma. Enquanto isso, o maior erro do governo e talvez do próprio tribunal de justiça internacional é não ser capaz de colocar em prática suas próprias diretrizes. A presença na população civil de indivíduos que não se enquadram na definição de civis não priva a população de seu caráter civil. (Banco de dados de leis humanitárias internacionais) No contexto das favelas cariocas, a presença de indivíduos que não se enquadram na definição de civil por serem membros de organizações armadas não significa que toda a população da favela deixa de se enquadrar como civil. Agora, por que a população da favela se enquadra como um "grupo étnico" protegido pela lei internacional contra crimes de guerra? Grupos nacionais são identificados com uma nação específica, enquanto grupos étnicos se referem a grupos culturais ou linguísticos dentro ou fora do estado. (Agnieszka Szpak) O vínculo cultural da população da favela, que gera uma cidadania comum, pode ser simplificada da seguinte forma – ser morador de um assentamento de ocupação irregular do solo. Daniela de Jesus Lima, em sua pesquisa intitulada "Pode uma Favelada falar?", leva essa análise para além do contexto urbano-geográfico. Ao evidenciar o contexto interseccional único na experiência e literatura de Carolina Maria de Jesus, a favela acaba sendo pautada como o local de uma identidade subordinada a diversas vulnerabilidades causadas por uma conjuntura histórica, racial, de classe e de gênero. A literatura evidencia a natureza corporal e identitária que permeia a existência favelada, e compõe a cultura rica de um grupo social. O crime cometido contra esse grupo social é praticado de forma estrutural. A existência da favela em si poderia ser categorizada como uma imposição de uma condição de vida vista como destrutiva. A falta de saneamento básico, proteção contra desabamentos e enchentes, e desincorporação generalizada de vigilância epidemiológica são exemplos de como o poder público comete um crime ao negligenciar a população desses espaços geográficos. E o poder público vai além de negligenciar, como é evidente nos acontecimentos de 4 dias atrás no Complexo da Penha. Enxergar favelados como um grupo étnico protegido pela lei internacional contra crimes de guerra é útil apenas porque operações genocidas são praticadas regularmente contra esse grupo. Essa distinção, em teoria, não deveria existir. Porém, na prática, ou seja, o que é sistematicamente praticado contra esse grupo por poderes estatais, e o porquê disso, deve ser abordado urgentemente e por meio de todas as ferramentas à nossa disposição, inclusive a da narrativa jurídica no campo global. _ Texto por Mirna Wabi-Sabi Fotografia por Fabio Teixeira
- O DNA da poluição na baia de Guanabara
Texto por Mirna Wabi-Sabi e fotografia por Fabio Teixeira Publicado dia 2 de agosto de 2023. Rio de Janeiro, baia de Guanabara, dia 1 de julho de 2023. O Painel Saneamento Brasil afirma que mais de 30% da população do Rio de Janeiro não tem coleta de esgoto (2021). Hoje, 18 mil litros de esgoto por segundo são despejados na baia de Guanabara, sendo que investimento estatal quadruplicou nos últimos 3 anos, chegando a quase 1 bilhão de reais. Os gastos são monumentais, enquanto os resultados são abismais, e esse fiasco seria fácil de explicar da perspectiva de corrupção e incompetência na gestão de recursos públicos. Porém, uma análise cultural e histórica explicaria o que causa esses sintomas nos processos administrativos da cidade. Os dados de gastos e níveis de poluição estão evidentes, assim como os perigos dessa poluição à saúde pública. Há pelo menos 20 anos se sabe, por exemplo, dos números alarmantes de Hepatite A em crianças em regiões de baixa renda do Rio de Janeiro. Mas esses números não levam a soluções por detentores de poder governamental. O problema não é falta de dinheiro ou ciência da seriedade da situação, e sim o legado do modelo Higienista. O movimento Higienista nasceu no Brasil no fim de 1800 e da Revolução Industrial. Com a formação de centros urbano-industriais durante a Revolução, houve um aumento massivo da população do Rio de Janeiro, e com ele o do caos, da pobreza, da poluição e da destruição ambiental. Esse movimento visava mitigar os sintomas metropolitanos com a implementação de modelos urbanos europeus, que essencialmente manufaturavam guetos. Ao usar como norte teorias médicas de cientistas da Europa, iniciativas foram promovidas por higienistas que segregavam a pobreza e destruíam o meio ambiente através do 'embelezamento' das cidades. Pois, o modelo ideológico europeu já era, e continuou sendo por centenas de anos, escravagista e extrativista. A cultura extrativista europeia lida com o meio ambiente não-europeu como fonte de recursos para seres humanos, sejam eles práticos ou estéticos. Isso nunca promove o equilíbrio dos ecossistemas locais, apenas promove lucro e altos padrões de vida para quem lucra. Por isso, a manufaturação do gueto garante a 'Higiene', como definida pelo movimento em termos de educação e saúde, de forma insular. O modelo Higienista é a manifestação da expressão 'varrer para debaixo do tapete'. Desde que a insalubridade urbana não fosse vista por elites nos centros, seria como se ela não existisse. Em outras palavras, é um sistema tão maduro quanto o jogo de peekaboo. Desde que cidades vieram a existir, a insalubridade urbana é uma questão de classe com repercussões ambientais e humanas desastrosas. No artigo "Movimento Higienista" na história da vida privada no Brasil, Edivaldo Góis diz que muitos dos higienistas enxergavam "a falta de saúde e educação do povo [como] responsável por nosso atraso em relação à Europa." Sendo que inúmeras doenças, costumes, e modelos de gestão vindos da Europa eram responsáveis por essa impropriedade. Um povo que promove a divisão de classe não comporta a realidade natural de que o ecossistema não respeita a segregação social. Mais cedo ou mais tarde, a poluição de uma porção do oceano ou de um corpo de água urbano se torna poluição nas praias nobres, e 18 mil litros de esgoto por segundo na baia de Guanabara é um problema de todo o mundo. Nos anos 90, 1 bilhão de dólares americanos foram gastos no programa de Despoluição da baia de Guanabara (PDBG) após evidências alarmantes de casos de Hepatite A em crianças em Duque de Caxias. Mesmo com financiamento massivo, de fonte global, os resultados foram horrorizantes. Centros de tratamento de esgoto foram construídos mas não eram funcionais, prestação de contas e pagamentos atrasados apontavam por péssima administração financeira do estado, centenas de milhões de dólares americanos foram desperdiçados em juros, e esse fracasso não pode ser atribuído apenas à burrice institucional. Agora estão sendo gastos, novamente, bilhões de reais em obras que já estão atrasadas para resolver esse problema de poluição persistente dos últimos séculos. Rio de Janeiro, entre 2015 e 2019. Saneamento em regiões de baixa renda é um desafio hoje em dia porque por mais de cem anos, a divisão de classe promovida pelo legado do movimento Higienista desincorporou esses espaços geográficos da "atividade de vigilância epidemiológica", assim como de fornecimento individual de recursos de saneamento. A ideia de que o que é privado existe em simbiose com o público, ao invés de resultar em investimento de recursos públicos em melhorias de ambientes privados de indivíduos com renda baixa, resultou em justificativas reacionárias para o eugenismo. Por isso que ao invés de investir em melhorias das estruturas dos lares familiares e individuais em regiões pobres, se investe num "cinturão" de captação de esgoto no entorno da baia. Isso significa que, o esgoto que sai dessas áreas é captado e impedido de afetar áreas nobres, mas o contexto individual dos moradores continua o mesmo. De acordo com um "estudo conceitual" sobre o cinturão, o obstáculo para a "universalização do esgotamento sanitário" é o custo. A estimativa no relatório é de 1900 reais por habitante, totalizando em mais de 33 bilhões de reais no RJ. Já que o financiamento de 1 bilhão de dólares nos anos 90 equivalia apenas a pouco mais de 5 bilhões de reais, o preço "supera em muito o aporte de recursos para o setor". Porém, 33 bilhões se refere ao custo para a população do estado, e o financiamento de 1 bilhão de dólares era voltado especificamente para a despoluição da baia de Guanabara. Os rios que mais poluem a baia de Guanabara permeiam a geografia de Duque de Caxias, chamados Sarapuí e Iguaçu. Se 1900 reais por habitante é uma estimativa confiável, com menos de 1 bilhão e meio de reais teria sido possível levar saneamento para toda a população de Duque de Caxias, que entre 1991 e 94 era menor do que 700 mil habitantes. Mas ao invés de propor estratégias certeiras, com foco no contexto e necessidades locais, o relatório logo faz comparações com os sistemas europeus e estadunidenses. Ao fazer isso, ele se revela descendente do movimento Higienista. A organização responsável pelo relatório, FGV CERI, explicitamente se posiciona como interessada num desenvolvimento infraestrutural centrado no crescimento econômico. Para eles, a regulação de infraestrutura no país, mesmo quando envolve o meio ambiente e a saúde pública, orbita um e somente um objetivo: "a atração de investimentos". Assim, a sustentabilidade fomenta a nação quando é econômico-financeira. Quantificar um problema socio-ambiental como o de poluição da baia de Guanabara nem sempre é fácil. Quantos litros de esgoto estão sendo despejados de forma irregular? Quanto o saneamento básico custa por pessoa? Quantas crianças já adoeceram por conta da poluição nos corpos de água em suas áreas? Neste caso, os números estão evidentes e a realidade é inescapável. O que falta é a análise do contexto histórico e cultural, ou genético, que leva a esses resultados alarmantes e persistentes. Desde a criação do movimento Higienista no Rio de Janeiro, hoje somos no mínimo a quinta geração a testemunhar o desenvolvimento desastroso da metrópole que se debruça na baia. É preciso conhecer o que nos foi herdado do DNA dessa cidade, batizada pelo magnífico e inusitado corpo de água – Guanabara. _ Texto por Mirna Wabi-Sabi Fotografia por Fabio Teixeira
- A Doutrina do Contradiscurso
“A doutrina do contradiscurso postula que a resposta adequada ao discurso de ódio é combatê-lo com uma expressão positiva. Ela deriva da teoria de que o público, ou destinatário da expressão, pode avaliar por si mesmo os valores de ideias concorrentes e, esperançosamente, seguir a melhor abordagem. A doutrina do contradiscurso é um dos mais importantes princípios de liberdade de expressão na jurisprudência da Primeira Emenda [estadunidense].” Justice Brandeis: "Mais discurso, não silêncio forçado" É assim que a Enciclopédia da Primeira Emenda Estadunidense da Universidade de ‘Middle Tennessee’ descreve a ideia fundamental por trás do direito constitucional da liberdade de expressão. Apesar da 'habilidade de avaliar por si mesmo' e do contradiscurso serem ferramentas essenciais para o processo democrático, elas às vezes são incapazes de impedir danos morais e físicos irreversíveis. Nem sempre há tempo ou recursos suficientes para nos apropriarmos do contradiscurso como ferramenta contra um discurso de ódio. Por isso, testes foram desenvolvidos para avaliar se um discurso se enquadra como protegido pela Primeira Emenda: O teste do perigo claro e iminente O que constitui um perigo claro e iminente está sempre sujeito a interpretação, e no histórico da suprema corte estadunidense, uma decisão pode também ser re-interpretada e anulada no futuro. Um panfleto contra uma guerra, por exemplo, pode ser considerado um perigo iminente, interpretado como um “perigo imediato para a segurança da nação” e espionagem em momentos cruciais dessa guerra (Abrams v. United States–1919). O teste da ação ilegal iminente O que constitui uma ação ilegal iminente também está sujeita à interpretação, e no caso de Brandenburg v. Ohio (1969) isso é evidente, pois a condenação foi anulada quando chegou na suprema corte. Clarence Brandenburg, oficial da Ku Klux Klan, foi condenado por fazer uma fala racista e antissemita para membros da KKK, assim quebrando a lei contra incitação a atos terroristas e criminosos. Porém, após apelações judiciais, a suprema corte anulou a convicção, sem opinião individual, argumentando que uma fala em “defesa abstrata da força ou violação da lei” não pode ser punida… É preciso desenvolver a habilidade de “valiar por si mesmo os valores de ideias concorrentes” para engajar em contradiscurso. Ao mesmo tempo, essa habilidade não deixa de ser necessária também durante a prática da lei, pois quando deixamos essa avaliação nas mãos de autoridades governamentais, jurídicas e corporativas, as opiniões dessas autoridades estão longe de serem objetivas. Elas são passíveis de não só subjetividade, mas também de conflitos de interesse. Os governos e as corporações têm a predisposição para a autopreservação, e essa predisposição nem sempre, talvez até raramente, protege pessoas e grupos que são alvos de discursos de ódio. Um governo que tomou uma decisão de começar ou entrar em uma guerra é ameaçado pelo discurso publico contra essa guerra. As corporações de mídias sociais têm interesse em coletar todos os dados possíveis de usuários, então não é de seu interesse imediato censurar conteúdo. Enquanto isso, atores do setor judicial dialogam com esses outros atores, inclusive com acusados e vítimas, de forma inevitavelmente subjetiva. Não é possível existir nesse paradigma de forma neutra, já que até membros da suprema corte são escolhidos por membros do governo e refletem os valores desses representantes. Por isso que mesmo quando a lei é usada para proteger aqueles que não têm recursos para praticar o ‘contradiscurso’, ainda precisamos estar preparados para usar essa ferramenta quando a opinião jurídica é contraproducente. Quando consideramos essa doutrina estadunidense do século XX na era digital do século XXI no Brasil, é possível adaptar os valores informados por uma história particular brasileira e relações específicas com corporações de tecnologia internacionais quando fazemos o julgamento do que constitui um perigo claro e iminente. Fake News é um perigo claro e iminente? A disseminação de uma fake news pode levar a danos materiais e agressões físicas. Quando os danos são à propriedade pública, ou a ameaça é contra instituições governamentais, a lei pode ser um recurso eficaz, já que é do interesse do governo se proteger. Por outro lado, se a ameaça é contra um grupo marginalizado, cuja existência em si já é uma ameaça ao Estado (como pessoas pobres que merecem e demandam recursos estatais), recorrer à lei é um processo consideravelmente mais incerto, custoso e inacessível. A era digital, nesse sentido, pode conter ferramentas de contradiscurso até mais potentes e velozes do que as engrenagens jurídicas. Basta um treinamento de uso das ferramentas que já estão literalmente em nossas mãos–nossos celulares*. *Mais pesquisas são necessárias para estabelecer a estratégia educacional mais eficaz para esse treinamento de uso das ferramentas digitais e para encorajar o contradiscurso. No meio tempo, acesse nosso curso virtual de alfabetização midiática ou entre em contato conosco para saber mais sobre nosso projeto de assessoria midiática. ____ Texto: Mirna Wabi-Sabi.
- ‘É fake?’ A pergunta que a Inteligência Artificial herdou da Arte
Por Mirna Wabi-Sabi Originalmente publicado na Le Monde Diplomatique Exposição sobre falsificações no Courtauld (Foto: Mirna Wabi-Sabi) O Tate Modern é aquele museu sobre o qual as pessoas falam quando discutem arte em Londres. Nunca ouvi o Courtauld ser mencionado neste contexto. Para ser justa, ele é mais um instituto ou uma galeria, e a coleção é menos vasta e diversificada do que a do Tate. Mas nele há muitas peças importantes em exibição, a mais notória delas talvez sendo o autorretrato de Van Gogh sem a orelha, e várias peças de Gauguin, que de alguma forma estava envolvido na situação do corte da orelha. O espaço agrega de forma sucinta obras de grandes artistas como Manet, Degas, Cézanne, Renoir, além de vários mestres flamengos, medievais e renascentistas, num edifício deslumbrante com escadas de pedra circulares. Talvez ainda mais espetacular do que o pedigree da coleção no edifício clássico de pedra calcária é a exposição que abriu no dia 17 de junho: “Arte e Artifício: Fakes da Coleção” (“Art and Artifice: Fakes from the Collection”) Sim, fake no sentido de falsificado. As escadas do Courtauld (Foto: Mirna Wabi-Sabi) A exposição explora não apenas vários tipos de peças falsificadas, mas também diferentes tipos de intenção por trás de suas produções. Claro, algumas foram produzidas para ganho financeiro, como aquelas feitas para parecerem antigas e caras, mas contendo pigmentos de tinta ou pregos que não existiam no período alegado. Falsificações sobre madeira do século XIX de pinturas medievais, por exemplo, foram descobertas por que os pregos da suposta data da obra não eram produzidos no tamanho e formato padrão revelados nas radiografias das peças. Outras tinham assinaturas falsas e diziam ser da época em que o artista era estudante. As peças mais divertidas, porém, são aquelas com histórias inesperadas. Algumas foram criadas para enganar os nazistas, como foi o caso do falsificador Han Van Meegeren. Ele criou pinturas falsas de Vermeer durante a Segunda Guerra Mundial e as vendeu para membros da elite do partido nazista. A que está em exibição na exposição no Courtauld é uma falsificação de uma pintura do Van Baburen, uma peça apresentada no fundo de duas pinturas do Vermeer. Van Meegeren foi aplaudido por esse esquema, não apenas por interromper os notórios saques e maus tratos de belas-artes que os nazistas promoviam, mas também porque suas falsificações se tornaram uma valiosa ferramenta de investigação técnica para estudantes de arte do instituto. Outras peças eram apenas parte da prática de artistas que replicavam clássicos por ofício, e não feitas para enganar algum comprador. Há peças cuja verdadeira autoria permanece desconhecida, como é o caso de um desenho de Louis Philippe Boitard. A tecnologia de produção de papel de textura lisa não estava amplamente disponível até décadas após a morte do artista, mas é possível, embora improvável, que ele tenha encontrado esse material no último ano de sua vida; o ano da tal “invenção revolucionária”. Os visitantes são convidados a examinar de perto o papel com lupas para identificar as diferenças entre cada desenho. Original e falsificação de desenho de Louis-Philippe Boitard em exposição no Courtauld (Foto: Mirna Wabi-Sabi) É difícil não ver os paralelos entre essa exposição e as imagens potencialmente enganosas produzidas por inteligência artificial generativa hoje em dia. A enganação não é novidade, seja na mídia ou na arte, e sempre que surge uma nova tecnologia, devemos adaptar nossos métodos de interpretação e consumo de conteúdo. Seja um novo método de fabricação de papel, pigmento de tinta, tipo de prego ou recurso de criação de imagem digital, a inovação é imparável e a mudança é inevitável. A forma como lidamos com as mudanças tecnológicas de nossas eras, e nossa capacidade de acompanhá-las, define se a inovação representa uma vantagem ou um prejuízo para a sociedade. No começo de junho, poucos dias antes da abertura da exposição no Courtauld, a National Public Radio dos EUA publicou um artigo com sugestões sobre como identificar se uma imagem digital era falsa; ou seja, gerada por IA. Como ferramenta, sabemos que hoje em dia a IA generativa é incapaz de retratar realisticamente mãos, dentes, acessórios como joias e planos de fundo complexos. Segurar uma lupa proverbial para esses detalhes pode revelar imagens falsas com relativa facilidade. Algumas das imagens que foram amplamente compartilhadas online por acreditar-se que eram reais – como a do Papa vestindo um casacão branco – poderiam facilmente ter sido, e foram, expostas como falsas, embora não a tempo de impedir que se tornassem virais. Ao observar a história, vemos que o desafio de identificar falsificações não é inédito no reino de imagens enganosas na arte erudita ou na mídia de massa. Da mesma forma que é possível não ter certeza da veracidade de uma assinatura, podemos não ter certeza da origem de uma imagem digital de aparência realista. Tudo isso significa que devemos acompanhar os avanços tecnológicos e investir em um sistema educacional modernizado. Qualquer um pode tropeçar ocasionalmente e se iludir por uma farsa. Alguns detalhes podem passar despercebidos, alguns dias o processo de verificação pode ser mais desleixado do que outros, isso é natural. Sem mencionar que é apenas uma questão de tempo até que a tecnologia digital seja atualizada para aprimorar as mãos feitas por IA e seremos pegos de surpresa novamente. A incapacidade atual da IA de produzir imagens realistas de mãos é bastante cômica, considerando que as mãos foram um dos primeiros assuntos da expressão artística humana. Desde os pictogramas antigos feitos 40 mil anos atrás até os clássicos do século 19, as mãos têm sido um dos principais focos da arte humana, especialmente para pintores. Mesmo quando estão escondidas, as mãos se destacam e se tornam fonte de especulação e significado conspícuo. Da Vinci era conhecido por seu estudo das mãos, e Michelangelo criou um dos pares de mãos mais reproduzidos na história ocidental, em A Criação de Adão. Entre os séculos 18 e 19, quando diversos retratos de elites europeias retratavam homens com as mãos escondidas em suas jaquetas, especulou-se que talvez as pinturas fossem mais baratas quando a pessoa pintora não precisava se concentrar em desenhar os dedos – mas não há nenhuma evidência para isso. A pose provavelmente simbolizava poder e status, já que era popular entre pessoas como Napoleão, para quem o dinheiro não era obstáculo. Por enquanto, a IA tem dificuldades para reproduzir mãos, não conseguindo equiparar os feitos de Michelangelo (Foto: Mirna Wabi-Sabi) De qualquer forma, nunca foi esperado que aceitássemos a arte e a mídia pelo seu valor de face. Por centenas de anos, tivemos que manter os processos de verificação e análises atualizados, tivemos que aprender a fazer as perguntas certas na hora certa, e isso ainda é tão verdadeiro agora quanto antes. A chamada alta tecnologia (high-tech), na vanguarda da inovação, não é sinônimo de alto padrão, e nada corrobora mais essa ideia do que a chamada ‘alta cultura’, que segue a mais conservadora tradição das belas-artes. Um robô logo produzirá uma falsificação perfeita, ou talvez sua própria obra-prima? Se isso acontecer, essa ameaça é possivelmente uma estória tão antiga quanto a da própria arte. Tentar interromper a inovação será inútil, e esperar que a mudança não encontre nenhuma resistência também é irreal. Sabemos que a arte feita sem coração, feita apenas como uma réplica, não tem valor. E reconhecer os indícios de valor requer estudo, prática, e análise crítica. Para acessar esses requisitos, é preciso uma educação modernizada e inspiradora, e isso exige recursos materiais como espaços, ferramentas, orientação de qualidade etc. Um melhor uso do nosso tempo é lutar por essa educação de qualidade, em outras palavras, pelo direito de aprender a segurar uma lupa e analisar o que se vê, em vez de fazer campanha contra novas tecnologias que podem ou não ser usadas para criar fakes. +++ Mirna Wabi-Sabi é escritora, editora e fundadora da Plataforma9
- Separar o lixo orgânico pode prevenir leptospirose e salvar vidas
Por Mirna Wabi-Sabi e fotos por Fabio Teixeira. Publicado na Le Monde Diplomatique Brasil . Pode-se dizer que produzir menos lixo ajuda a estender a vida humana no planeta, pois, entre outras coisas, preserva recursos naturais dos quais dependemos para sobreviver. O lixo orgânico, em particular, é responsável pela produção de metano, um dos mais importantes gases causadores do efeito estufa. Mas é possível que a separação do lixo orgânico possa salvar vidas de uma forma mais imediata: com a prevenção de casos de leptospirose. Está longe de ser novidade que resíduos de alimentos no lixo atraem animais como ratos, e que a urina desses animais pode causar leptospirose em humanos. De acordo com o fotojornalista Fabio Teixeira, autor da série fotográfica “Sobrevivendo Entre Sombra e Luz”, trabalhadores anônimos que atuam nos arredores das comunidades da cidade do Rio de Janeiro são vítimas de racismo, violência policial, e ainda sofrem com doenças causadas pelo lixo. “Essas pessoas desempregadas fazem a reciclagem do lixo para encontrar cobre, ferro, alumínio, e brinquedos para conserto e doação. Segundo informações dos recicladores, dois óbitos foram causados por contaminação com leptospirose, uma em novembro e outra em dezembro de 2022.” Fotos por Fabio Teixeira na Favela Manguinhos (04/03/2023) Essa observação de Teixeira é sustentada por pesquisas da área de saúde pública, apesar dos números provavelmente serem subnotificados. A comunidade de trabalhadores da indústria da reciclagem e coleta de lixo é descrita como em constante risco no artigo “Percepção De Qualidade De Vida De Catadores De Materiais Recicláveis”, publicado em 2017, pela revista de enfermagem da Universidade Federal de Pernambuco. As autoras explicam que por “exigir contato permanente com agentes nocivos à saúde, sendo uma das atividades profissionais mais arriscadas”, a “atividade que manipula lixo” é “insalubre em grau máximo”. Tais afirmações podem soar óbvias, mas a questão do lixo tem o potencial de afetar toda a população urbana, e não apenas profissionais que manejam resíduos. A Radioagência Nacional, divulgou um alerta em março deste ano sobre o aumento de “casos e de mortes” por leptospirose. Chuvas fortes e enchentes exacerbam o problema ao expor maior contingente da população, tendo como consequência 24 casos e 3 mortes registrados pela Secretaria de Saúde do Rio de Janeiro nos primeiros dois meses de 2023. As propostas para mitigar esse perigo até agora têm sido evitar que crianças brinquem em lugares com água acumulada e tirar o lixo no máximo uma hora antes do caminhão passar. Mas essas soluções não protegem a população como um todo, pois o lixo ainda é levado para algum lugar onde pessoas transitam e se expõem aos riscos, e o potencial recorrente de enchentes em áreas urbanas impossibilita evitar água acumulada. Consumo e descarte consciente de resíduos é a ferramenta mais eficaz nas mãos de indivíduos, e requer uma reconfiguração simples da dinâmica do lar. “Não jogue sua consciência no lixo” O consumo consciente começa na compra do produto. Melhor do que reciclar é produzir menos lixo. Para isso, basta dar preferência para produtos sem embalagem, como legumes e frutas de feira. Se houver embalagem, opte pela embalagem compostável, como papel, ou a embalagem reutilizável, como jarras de vidro. Ao descartar plástico, tetrapak e tecido, garanta que eles estejam limpos, sem sobras ou cheiros de comida. É importante que esse lixo esteja sem resíduos ou odores de matéria orgânica, pois eles servem como comida e atraem roedores. Separar todos os restos de comida do lixo previne a emissão de metano na atmosfera e evita que ratos sejam atraídos pelo lixo. A questão é o que fazer com essa comida. A compostagem é a melhor maneira de transformar resíduos orgânicos em terra adubada sem produzir metano ou atrair roedores. Mas nem todos têm como compostar em casa. Hortas comunitárias como o AMaravista na região oceânica de Niterói recebe e coleta matéria orgânica de moradores da vizinhança para usar na compostagem, e orienta como fazer a separação desses materiais – evitar colocar carne, por exemplo, e separar cascas de cítricos em seus próprios recipientes. A reconfiguração da cultura de consumo e descarte de resíduos do lar requer pouco tempo e espaço, mas requer interesse e consciência. Fotos por Fabio Teixeira na Favela Manguinhos (09/03/2023) Considerar que alguém manuseará o lixo e pensar no bem-estar dessas pessoas é de imensa importância, além de lembrar que o lixo existirá por décadas depois que nós o jogamos fora. É benéfico para todos que esse lixo possa ser separado, reusado ou reciclado de forma sustentável e saudável, sem poluir a terra ou os oceanos, e sem causar mortes. O trabalho de coleta e separação de lixo é imprescindível para a sustentabilidade de práticas de consumo, para a proteção ambiental e para a preservação de recursos naturais como águas despoluídas e terrenos férteis. Fotos por Fabio Teixeira no Rio de Janeiro (2022) Lidando com o fracasso de políticas públicas Quais ações e programas deveriam ser desenvolvidos pelo Estado para garantir o bem-estar da população? A leptospirose é uma doença causada por um fracasso de serviços de saneamento básico, pelo adensamento de municípios a favor do mercado imobiliário, e pelos níveis desumanos de desigualdade social. “A destinação inadequada dos resíduos sólidos está envolvida na determinação do aparecimento de doenças infecciosas” (2017), e a adequação significa não só um destino apropriado, mas também equipamentos adequados e condições dignas de vida para trabalhadores. Uma análise interseccional entre direitos trabalhistas, acesso à saúde e educação, saneamento básico, sustentabilidade e ambientalismo permite o desenvolvimento de uma solução holística para esse problema. De acordo com a pesquisa da Revista de enfermagem da UFPE, “a degradação do meio ambiente natural e a geração de resíduos causam comprometimentos da saúde física, transtornos psicológicos e psiquiátricos, e desintegração social.” O bem-estar da população depende de ações que consideram os âmbitos físico, psíquico e social. Portanto, as soluções como esperar para tirar o lixo ou evitar entrar em contato com água acumulada não abordam o problema de saúde pública da leptospirose em sua totalidade. Essa totalidade inclui o consumo familiar até seu método de descarte, diversos fracassos de políticas públicas, práticas comunitárias sustentáveis e uma perspectiva ambientalista. A história da leptospirose A leptospirose foi trazida para as américas com os roedores presentes em navios europeus durante a colonização, e é possível que tenha causado um massacre de populações indígenas. O Artigo “Nova hipótese para a causa da epidemia entre os nativos americanos, Nova Inglaterra, 1616–1619” propõe que se deve considerar “costumes que podem ter sido fundamentais para a quase aniquilação dos nativos americanos, o que facilitou a colonização bem-sucedida” de certas áreas dos Estados Unidos. E que esses “costumes locais continuamente expuseram essa população à infecção hiperendêmica por leptospira”. Fontes dos gráficos 1 e 2: SINAN-03/03/2023 Um jornal acadêmico de Doenças Tropicais Negligenciadas (PLOS Neglected Tropical Diseases), dedicado a “doenças infecciosas que promovem a pobreza”, publicou um artigo sobre a “Carga Global da Leptospirose” em 2015. Nele, os pesquisadores estimam que a leptospirose é um problema sério para países tropicais com poucos recursos, incluindo países na África, “devido aos problemas de diagnóstico e falta de dados”. Dados da Tanzânia e da Amazônia revelam que febre é um sintoma comum e a malária é superdiagnosticada como causa. Isso leva a números substanciais de “estimativa da carga de doença”da leptospirose sendo mal alocados para outras doenças infecciosas, como a malária. De acordo com dados publicados pela Sinan dia 3 de março de 2023, houve um aumento de casos de leptospirose no país em 2022, ou uma subnotificação mais drástica do que o usual durante a pandemia de Covid-19 em 2020 e 2021. Poucos dias antes, dia primeiro de março, a Radioagência Nacional reportou 3 mortes em 2023 que não constam nos números da Sinan. É evidente que a magnitude do impacto da leptospirose no Brasil não está sendo precisamente quantificada. Fontes dos gráficos 3 e 4: SINAN-01/03/2023. Gráfico 5: SINAN-DOI Por conta do adensamento populacional nas regiões do Rio de Janeiro e de São Paulo, seus números se sobressaem, ao lado de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Apesar do Rio apresentar uma “taxa de prevalência inferior à taxa nacional” a cada 100 mil habitantes, surtos de leptospirose na cidade coincidem com as tempestades de verão desde os anos 60, e “áreas com ocorrência de inundações apresentam mais casos”. Essas áreas tendem a ser, como esperado, de baixas condições sanitárias, com comunidades de baixa renda. Em 2020, Mário Martins e Mary Spink publicaram um artigo chamado “A leptospirose humana como doença duplamente negligenciada no Brasil”, onde a seguinte afirmação é feita: “Nossa análise mostra [a] arbitrariedade dos critérios de atribuição de prioridades de saúde e a invisibilidade do perfil populacional da leptospirose humana nos dados oficiais. […] Concluímos que [isso] é relacionado ao fato de que a leptospirose humana afeta uma população que o Estado não tem interesse em manter viva.” A leptospirose matou mais brasileiros do que a dengue todos os anos entre 2000 e 2016 – 3 vezes mais – mas recebeu nove vezes menos investimento médico. Há mais casos de dengue, portanto o questionamento está longe de significar uma crítica ao financiamento de tratamento e prevenção dela, mas acadêmicos estão há anos apontando a severa negligência com a qual a leptospirose é abordada institucionalmente, e o paralelo com a dengue destaca isso. “Quantificar a magnitude da perda de saúde” devido à leptospirose é difícil, mas não há dúvida que casos são subnotificados, mal diagnosticados, e recursos não são suficientemente alocados para pesquisa e prevenção. Desde a chegada da doença em “navios negreiros”, uma população racializada e empobrecida é forçada a viver em condições insalubres, sem recursos apropriados e acesso a políticas públicas decentes. Isso no mínimo deveria nos incentivar a tomar iniciativas em nossas casas e comunidades para ajudar a prevenir casos e mortes causadas pela doença. Seres humanos e o meio ambiente só tem a ganhar com a conscientização da população e de instituições públicas das causas e soluções do problema do lixo como risco à saúde humana. _____ Escrito por Mirna Wabi-Sabi e fotos por Fabio Teixeira
- Será que o PL das Fake News realmente combate a desinformação?
O PL das Fake News é um assunto polarizante. Desinformação permeia o universo digital, e as opiniões tendem a ser a favor da lei na esquerda, ou contra na direita. Para ir além da política binária e ao mesmo tempo não acabar no ‘centrão’, podemos afirmar que fake news é um problema sério e podemos questionar até que ponto essa lei é eficaz, aplicável, e duradoura para combatê-las. Será que ela realmente resolve o problema de desinformação nas redes? Vale lembrar que muitas vezes a lei é deliberadamente vaga para que sua interpretação possa ser flexível. Isso coloca bastante poder nas mãos de advogados e advogadas, e em suas habilidades argumentativas. Portanto, pessoas que não tem acesso a profissionais jurídicos com vasta experiência, conhecimento e tempo, saem em desvantagem. Questões que o PL das Fake News aborda vagamente — Como identificar contas inautênticas “sem prejuízo da garantia à privacidade” e sem coletar ainda mais dados dos usuários? Quais critérios são usados para identificar se uma conta foi “criada ou usada com o propósito de disseminar desinformação”? Definir propósito pode ser extremamente arbitrário, e requer uma investigação detalhada e motivo para provocar essa investigação. Um ativista que usa pseudônimo pode ser impossível de distinguir de um troll bolsonarista sem julgar apenas a natureza da opinião que cada um compartilha nas redes. Distinguir uma opinião de desinformação requer senso crítico de todas as pessoas, não só de profissionais jurídicos ou funcionários de empresas de tecnologia. — Quais ferramentas serão usadas para garantir que não haverá “restrição ao livre desenvolvimento da personalidade individual, à manifestação artística, intelectual, de conteúdo satírico, religioso, ficcional, literário ou qualquer outra forma de manifestação cultural”? Se houvesse uma lista de coisas que distinguisse uma conta ‘inautêntica’ de uma conta satírica, ou ‘desenvolvimento intelectual’ de descarada disseminação de desinformação, os inautênticos e descarados teriam um manual de como se comportar, enquanto ‘satíricos’ e ‘intelectuais’ migrariam para outras plataformas de disseminação de informação. Talvez por isso uma lei raramente consegue ser específica o suficiente para ser eficaz, e vaga o suficiente para ser interpretada em diversos contextos. — Quais são os métodos de “verificações provenientes dos verificadores de fatos independentes com ênfase nos fatos”? Como se executa “uma verificação criteriosa de fatos” e como serão selecionadas as pessoas jurídicas com a função de verificar os fatos? O uso excessivo da palavra fato não te aproxima dele, possivelmente até te afasta. Na ciência se entende que um fato existe num contexto, e ele pode e deve ser a qualquer momento questionado. Um fato provavelmente se resume a uma evidência que encontra um certo nível de consenso, um consenso que pode ser a qualquer momento revogado, porque como contextualizamos e interpretamos esses fatos é passível de erro humano. Não existe um grupo de pessoas jurídicas que possa exercer a função de definir fatos no universo da internet. O que podemos fazer é ter o senso crítico para identificar ferramentas de manipulação, ausência de fontes, especulação, conflitos de interesse, etc. — O que constitui um uso das plataformas incompatível com o uso humano? Qualquer ferramenta de agendamento de postagens é considerada um ‘disseminador artificial’? Disseminadores artificiais podem facilitar o trabalho de profissionais de comunicação e mídia. Um dos truques de empreendedorismo é “ache o que funciona, e o automatize”. Se você, por exemplo, entrou numa loja virtual, colocou algo no carrinho e saiu sem comprar, uma mensagem automática da loja pode aparecer na sua caixa de entrada te lembrando do produto que você deixou lá. E-mails e posts automatizados são normas na indústria virtual, e é existencial se perguntar qual é o número que desenha a linha entre uma automatização humana e desumana. O custo para os “provedores de aplicação” De acordo com essa lei, nós não poderemos participar de grupos de WhatsApp ou Telegram com mais de 256 pessoas, ou encaminhar alguma mensagem para mais do que 5 pessoas. Em período eleitoral, o encaminhamento se limita uma pessoa ou grupo. Isso porque o WhatsApp e o Telegram têm mais de 2 milhões de usuários no Brasil. Em resposta, o Telegram enviou uma mensagem bilíngue aos seus usuários anteontem acusando o Projeto de Lei de censura, entre outras coisas. Ontem, eles comunicaram que receberam “uma ordem do Supremo Tribunal Federal que obriga o Telegram a remover [a] mensagem anterior sobre o PL 2630/2020 e a enviar uma nova mensagem aos usuários” dizendo que ela “caracterizou FLAGRANTE e ILÍCITA DESINFORMAÇÃO”. Ao analisar o primeiro comunicado do Telegram, nada mais vejo do que uma empresa tentando se proteger financeiramente, apesar de não mencionar isso diretamente. O tribunal também não menciona o âmbito financeiro desse debate, mesmo sendo claro que a grande motivação dessas empresas é o lucro – o debate político-eleitoral só se enquadra como prioridade quando afeta essa motivação econômica primordial. Não tem como essa lei não custar esses “provedores de aplicação” muito dinheiro, em termos de mão de obra de programação e monitoramento, e de potencial perda de usuários. A realidade é que, quem sair dessas plataformas de mídia social por não poder amplamente disseminar conteúdo duvidoso achará outro veículo – qualquer outro veículo, como vemos acontecer em toda a história das grandes mídias. O comunicado não é desinformação, é uma interpretação da lei da perspectiva de um agente com um óbvio conflito de interesse. É uma coisa muito séria nós não conseguirmos distinguir entre opiniões divergentes, desinformação, e fake news. Nem toda desinformação é fake news, e nem toda a opinião de pessoas e instituições que disseminam certas narrativas por interesse próprio se iguala a desinformação. Se o governo começar a usar esse termo para descrever tudo que se opõe a ele, provavelmente encontraremos algo parecido com o totalitarismo. O que precisamos não é de um governo ou conjunto de profissionais jurídicos com o poder de decisão sobre o que é verdade e fato. O que precisamos é de uma população com acesso a recursos de saúde e educação para desenvolver um senso crítico. Será que essa lei realmente estimula o senso crítico da população, ou visa apenas tomar parte do poder que empresas de tecnologia têm sobre a população? Ou pior, nada mais é do que a politicagem de um governo querendo demonstrar grandes esforços sem intensão de mudanças estruturais? Sempre que nos deparamos com conteúdos online, temos a oportunidade de analisar esse conteúdo, fazer questionamentos e refletir. Esse processo requer estímulo, treinamento e acesso a conhecimentos diversos, que vão além de posts em particular, como fake news. Conhecimento sobre como fontes de informação são acessadas, como estratégias de comunicação são desenvolvidas, e até como websites funcionam, pode fazer toda a diferença para uma pessoa desenvolver um senso crítico sobre o que ela vê online. Uma lei não consegue preencher o abismo causado pela desigualdade milenar entre a minoria que controla a narrativa, e a maioria que a consome. A democratização do controle da narrativa será conquistada por meio de uma completa reestruturação da distribuição de recursos na sociedade, e não por meio de uma disputa entre agentes que já detém poderes monumentais. ____ Escrito por Mirna Wabi-Sabi, diretora e editora-chefe da Plataforma9.
- Mulheres à luz do Ramadã
Por Mirna Wabi-Sabi A procissão de Arbaeen, observada principalmente pelos xiitas, que representam cerca de 15% dos quase 2 bilhões de muçulmanos do mundo. Foto de Mostafa Meraji em Mehran, Irã (2019). À luz do Ramadã, há algumas considerações das quais qualquer não-muçulmano pode se beneficiar enormemente. Tive muito pouca experiência com muçulmanos crescendo no Brasil, nos Estados Unidos e nos Países Baixos, e aprender sobre o Islã iluminou vários comportamentos que eu nunca enxerguei como cristãos. No ocidente, incluindo lugares fortemente colonizados e aspiram à ocidentalização, como o Brasil, o cristianismo é onipresente. Frequentemente, não prestamos atenção para como são religiosas todas as nossas instituições e normas, desde a maneira como nos vestimos até os calendários e alfabetos que usamos (pág. 418-421). Reconhecer as raízes religiosas dessas normas é útil para qualquer pessoa que queira melhorar as condições sociais de suas comunidades em países ocidentais não-muçulmanos, porque essas normas cristãs geralmente são tão opressivas quanto imaginamos que as islâmicas sejam. “Tão opressivo quanto” é complicado. A opressão assume muitas formas, e há pouca utilidade em classificá-las. Mas é possível que algo que vemos diariamente pareça menos opressivo do que algo que raramente vemos ao vivo. Há uma opressão que se normaliza, e nós confundimos isso com uma indicação de que a norma é “menos opressiva”. O hijab, por exemplo. No Brasil é uma raridade. Muitos dos brasileiros não sabem a diferença entre hijab e burca, e vê todas as vestimentas do tipo como um símbolo de opressão feminina. Isso se aplica para pessoas em todo o espectro político entre direita e esquerda. É difícil imaginar essas opiniões sendo sustentadas por pessoas que convivem com ou já conheceram mulheres felizes e bem ajustadas que usam o hijab no Brasil. Sim, é possível, essas mulheres existem. E após uma inspeção mínima, pode-se perceber que os sentimentos de infelicidade ou alienação decorrem principalmente da insegurança econômica, que muitas vezes decorre de reações islamofóbicas aos seus hijabs – e não da religião ou do próprio hijab. Mariam Chami, uma muçulmana brasileira que agregou mais de meio milhão de seguidores no Instagram ao combater a islamofobia com o humor. De qualquer forma, todas as mulheres às vezes se sentem infelizes e mal ajustadas. Em um momento ou outro, lidamos com relacionamentos difíceis com os outros, com nossa espiritualidade, com nosso trabalho ou com nosso senso de independência. Temos muito mais em comum com as mulheres muçulmanas do que imaginamos e muito a aprender umas com as outras. A discussão sobre cobrir a cabeça e a vestimenta modesta pode importar para qualquer mulher, em qualquer lugar. Como mulher num contexto ocidentalizado, é impossível evitar considerar o nível de modéstia de nossas roupas sempre que nos vestimos. Consideramos constante e automaticamente, sem perceber. Há uma consideração cuidadosa sobre onde estaremos, como chegaremos lá e quanta pele é “apropriado” expor em cada etapa do caminho. E por apropriado, quero dizer, quanto cobrir e em qual contexto, literalmente devido ao medo por nossa segurança física (ou como declarações de desafio). No Ocidente, a maioria das mulheres oscila de um ponto ao outro num espectro entre ser sexualizada demais e não se sentir desejável o suficiente. Muito do valor de uma mulher no Ocidente é baseado em quão sexualmente desejável ela é, porque nosso valor costuma ser proporcional ao dos homens com os quais nos associamos. Este é um paradigma opressivo do qual não estamos conscientes, ou pelo menos não tão conscientes quanto estamos dos hijabs e outras vestimentas modestas quando as vemos. Pode bem ser nós que somos a influência tóxica, já que as obsessões opressivas do ocidente com a objetificação dos corpos das mulheres, a hipersexualização de meninas, e as luxuosas cirurgias plásticas (em particular) estão se infiltrando no mundo muçulmano. Quando penso nos valores e práticas de adoração do povo muçulmano em geral, penso no comportamento inescrupuloso dos chamados homens cristãos que encontro diariamente e em como é hipócrita para as mulheres ocidentais julgar um mais duramente do que o outro. Uma vez, notei um motorista do Uber olhando para o meu decote e começando a me fazer perguntas para ver o quão bêbada eu estava. A resposta das pessoas a essa história, inclusive a minha, foi nunca entrar num Uber sozinha, bêbada, com muita pele à mostra. Fazemos isso porque é mais fácil controlar nosso próprio comportamento do que o comportamento de homens desconhecidos (quando não assumir o controle não é uma opção). A consideração da modéstia vai além das roupas, é também sobre a obsessão com o álcool. Tantas interações sociais de alguma forma giram em torno de bebidas alcoólicas. E requer contato com músicas desagradáveis, se não totalmente ofensivas. O carnaval brasileiro é o máximo em indecência, álcool e música provocativa. Na teoria religiosa, o Carnaval é uma celebração pré-quaresma, que deve ser seguida pela observância de como Jesus jejuou no deserto e resistiu a todos os tipos de tentação. Comemoramos isso fazendo muito de tudo que Jesus assumidamente não fez. Até a palavra Carnaval vem do latim Carnis levare, que significa “afastar-se da carne”. Claramente, nós pegamos isso e fazemos exatamente o oposto. A última Globeleza, tradição que não sobreviveu à pandemia devido às acusações de machismo e racismo na tentativa de retorno esse ano. Há algo de especial em abster-se de música e álcool e começar a se vestir com modéstia. Impõe uma mudança de paradigma e pode nos obrigar a olhar para coisas que talvez sejam mais autênticas em nós mesmas. Como estamos realmente nos sentindo? Queremos estar neste lugar, com essas pessoas? O que queremos da vida e quais são nossos valores? Há poder na música, nas drogas e roupas – poder espiritual. Há uma razão para a oração e os cânticos. Há uma razão para restrições alimentares religiosas e substâncias alucinógenas sagradas. Há significado nas vestimentas religiosas. Isso pode não ter significado para todos igualmente, mas perdurou como prática por milênios em praticamente todos os cantos do planeta ocupados por humanos. Se passarmos um momento jejuando e orando, ou nos abstendo de música, drogas e álcool, esse momento pode nos conectar a algo um pouco mais verdadeiro sobre nós mesmos – ao que veneramos. Todos nós veneramos alguma coisa, estejamos conscientes de sua natureza divina ou não. Afirmar amplamente que o Islã é opressivo implica não haver espaço para os muçulmanos num mundo visto como justo. Essa retórica visa implicitamente legitimar o extermínio de um grande segmento não-ocidental da população mundial, em sentido literal ou epistemológico. E o extermínio étnico ou religioso é um elemento central do fascismo. Os muçulmanos são tão diversos quanto os cristãos e têm tanto direito de praticar sua fé quanto nós temos o direito de reprimir atos vis e abusos de poder que permeiam todos os segmentos da sociedade (tanto as sociedades cristãs quanto as muçulmanas). Talvez devêssemos nos perguntar como podemos criar espaço para a comunidades muçulmanas em sociedades igualitárias. Como criar espaço para que todas as tradições epistemológicas floresçam em novas eras. _____
- Eco-barreiras e o resgate do equilíbrio entre as espécies no planeta
Acesse o 'Levantamento de resíduos sólidos na Eco-barreira João Mendes' aqui. A poluição dos oceanos ameaça a sobrevivência de todos os animais marinhos, e a nossa também. É difícil compreender a magnitude do impacto que o lixo tem nas nossas vidas quando não vemos para onde ele está indo, e como o caminho que leva à extinção de tantas espécies aquáticas afeta a vida humana. Civilizações nativas que uma vez sobreviviam em simbiose com a fauna e a flora de suas regiões, agora não enxergam a mesma diversidade de vida e mutualismo entre as sobrevivências. O mundo não é o mesmo. A questão é como seguir em frente nesse paradigma. Uma ferramenta para entender qual lixo percorre qual caminho em direção ao oceano viabiliza a identificação da fonte e do percurso do problema de poluição de lixo – a eco-barreira. Esse entendimento nos ajuda a atuar na fonte e no sintoma do problema causado por resíduos sólidos flutuantes descartados pela população urbana. Eco-barreiras são barreiras na foz, ou ponto de desaguamento, de rios em megacidades. Um estudo de 2011 por Marcos Freitas aponta que o crescimento acelerado de centros urbanos, aumento de consumo, sistemas de gerenciamento de água municipais e coleta de lixo inadequados contribuem para uma quantidade exorbitante de lixo descartado em rios. No contexto do Rio de Janeiro, apenas 3 eco-barreiras em 2008 coletaram mais de 100 toneladas de plástico, metal, madeira e papelão (M. Freitas 2011). Dados como esses são esperados, mas o interessante dessa pesquisa foi que identificou a fonte do problema como não sendo tanto “o aumento da geração de resíduos sólidos domiciliares” e sim o aumento do Produto Interno Bruto municipal. Ou seja, aumento de consumo de indivíduos não causa poluição nos rios tanto quanto o aumento de importação e exportação, gastos governamentais e investimentos empresariais. Instituições governamentais e empresas são mais ambientalmente irresponsáveis do que consumidores individuais, e isso desde 2011 só se tornou mais evidente. Hoje, há uma eco-barreira na foz do rio João Mendes, na região oceânica de Niterói, mantida por um grupo de indivíduos voluntários. Ela foi financiada pela ecoponte, uma companhia que gerencia a ponte Rio-Niterói, e tem interesse em ações de compensação de sua pegada de carbono. E a barreira é gerenciada por membros da organização AmaDarcy, cujo objetivo é proteger o meio ambiente natural e urbano através da preservação de áreas ecologicamente importantes na região da Serra da Tiririca. De acordo com um relatório gerado pelo grupo em fevereiro de 2023, “O João Mendes (JM) é um rio poluído, apesar de nascer cristalino dentro do Parque Estadual da Serra da Tiririca (PESET). Embora uma parte significativa dos esgotos da bacia hidrográfica do JM seja coletada e encaminhada à Estação de Tratamento de Esgotos de Itaipu (ETE Itaipu), que opera com uma vazão nominal de 164 litros por segundo, existe uma expressiva quantidade de esgotos que ainda não é direcionada para a ETE Itaipu e deságua de forma direta ou indireta no rio João Mendes e, consequentemente, na laguna de Itaipu (Reserva Extrativista Marinha de Itaipu-RESEX Itaipu), gerando a poluição do mesmo.” “A quantidade de resíduos sólidos (lixo) que vem sendo lançada no rio João Mendes semanalmente (cerca de 250 Kg) também contribui de forma significativa para poluição do rio João Mendes, evidenciando condições ainda precárias de saneamento. Desde setembro de 2022, a ONG AmaDarcy vem coletando lixo semanalmente na eco-barreira implantada no rio João Mendes, localizada próximo à desembocadura deste rio na laguna de Itaipu. A quantidade total de lixo coletado e ensacado pela AmaDarcy entre setembro de 2022 e janeiro de 2023 foi superior a 6 toneladas (mais de uma e meia tonelada por mês), evitando assim seu despejo na laguna de Itaipu e no mar (RESEX Itaipu). O lixo é em seguida retirado e levado pela Companhia de Limpeza de Niterói (CLIN) para uma destinação final adequada.” A relação entre poluição de esgoto e de lixo é evidente quando consideramos o crescimento urbano desenfreado, sem infraestrutura e instituições eficazes o suficiente para lidar com esse crescimento. Como voluntários, o foco do grupo em lixo flutuante faz sentido quando consideramos a distância que esse lixo viaja, e a dificuldade de controle desse fluxo sem essas barreiras – que não impedem o fluxo do rio, mas fixam resíduos da superfície até que uma equipe possa coletar. Essa coleta acontece semanalmente, e, quando possível, os resíduos são separados por material e pesados, apesar da poluição de esgoto na área apresentar uma ameaça aos voluntários e gerar a necessidade de cuidados vigorosos. Os dados registrados incluem não só tipo e peso do lixo, mas também as marcas dos produtos descartados, a altura do rio, e a quantidade de chuva no dia anterior e na semana da coleta. Volume ou Índice Pluviométrico é medido por milimetro de chuva por metro quadrado num certo local e período. Fonte: (A627, do INMET) Os materiais encontrados são plástico, vidro, metal, tecido, entre outros. Microlixo é registrado como uma categoria à parte, e significa um misto de pequenos resíduos como bituca de cigarro, microtubos de narcóticos, isopor fragmentado, outros plásticos e partes vegetais que ficam emaranhadas por esses resíduos. Tetra pak também é registrado à parte, pois são aquelas embalagens de composição mista entre metal, papel e plástico, muitas vezes usadas para produtos como leite, suco e molho de tomate. Há outros materiais identificados, porém não categorizados individualmente, como os ocasionais brinquedos, resíduos eletrônicos, lâmpadas, pneus, colchões, etc. Enquanto os resíduos não identificados são os sacos fechados encontrados na barreira que não são abertos por poderem conter materiais que causam riscos à saúde dos voluntários – como seringa, prestobarba, fralda, camisinha, papel higiênico usado, etc. Esses dados nos ajudam a identificar a fonte da poluição das águas, e nos conscientiza sobre nosso próprio consumo e descarte de resíduos. De acordo com a pesquisa de 2011 de Marcos Freitas, há uma correlação entre o aumento da renda familiar e o amento do lixo público, enquanto o lixo doméstico permanece na mesma faixa. Isso pode significar que o aumento do Produto Interno Bruto (e talvez contextos climáticos) leva a "maior consumo em áreas públicas". O que isso significa para nós e nossas práticas de consumo em áreas públicas? O que sabemos sobre as práticas de descarte lixo de empreendimentos que frequentamos e de coleta de lixo por conta de nossos municípios? O problema do descarte de lixo e da poluição dos oceanos tem muitas facetas. Há uma questão de administração institucional, que reflete nas decisões políticas de um município. A expansão urbana se torna nociva por conta do fracasso dessa administração política e interesses financeiros muito maiores do que o lar de cada família. Por isso, o Produto Interno Bruto municipal gera mais problemas ambientais do que o acúmulo de consumos individuais. Por outro lado, a conscientização da comunidade e o acesso à informação sobre a situação ambiental de suas vizinhanças pode não só melhorar práticas pessoais de consumo e descarte de resíduos, como pode também incentivar a população a demandar mais responsabilidade da administração pública e ações mais eficazes com a verba pública. No meio tempo, prevenir que toneladas de lixo acabem no oceano ajuda a começar um resgate da biodiversidade e do equilíbrio entre as espécies nesse planeta. _____ Por Mirna Wabi-Sabi
- ChatGPT só é uma ameaça para quem educa ou escreve mal
Por Mirna Wabi-Sabi ChatGPT é um assunto que provoca muito debate sobre o futuro da educação no mundo da escrita. A Inteligência Artificial que escreve esses textos, corretos e bem pesquisados, são uma ameaça apenas para educadores e escritores que esperam que uma boa escrita seja mecânica e inautêntica. Raramente descrevo textos como “mal” escritos, porque geralmente os problemas de escrita tem mais a ver com fracassar em alcançar um propósito do que com a qualidade da agrupação das palavras. Se o seu propósito como pessoa escritora é alcançar uma certa audiência com uma certa mensagem, mas sua escrita não está satisfazendo esse objetivo, isso não é um texto mal escrito, é um texto ineficaz. Por outro lado, um texto cheio de “erro” gramatical pode ser extremamente eficaz, portanto muito bem escrito. Toda pessoa que escreve já criou textos que fracassaram em seu propósito. Ninguém nasce sabendo escrever de forma eficaz, e o grande desafio do trabalho de escrita é ter disposição de afinar a mensagem que você quer passar para uma audiência e afiar as ferramentas que você usa para entregar essa mensagem. O ChatGPT é um robô. Quando um robô for autêntico, usar a escrita dele como se fosse sua seria plagio. Mas não é essa a realidade em que vivemos. Um texto gerado por Inteligência Artificial é nada mais do que uma máquina automática de venda de texto. E o valor nutricional do que sai dela é aquilo — uma coisa ultra processada, industrializada, que sai igual de todas as máquinas, é eficaz em momentos de escassez, mas se você só viver disso provavelmente vai morrer cedo. O que estamos fazendo, como escritores e educadores, para estimular a autenticidade? Se na sala de aula a autenticidade não existe, a aula é medíocre e estimula estudantes a serem medíocres. Se um teste é facilmente hackeado por um robô, ele não é eficaz, e quem passa nele não fará um trabalho eficaz. Isso sem mencionar que já existem ferramentas como GPTZero que visam revelar se um texto foi majoritariamente escrito por Inteligência Artificial, assim como já existem, há muito tempo, diversas ferramentas que visam detectar plagio. O ChatGPT não é uma ameaça, a ameaça é um sistema educacional de longa data que fracassa ano após ano em formar pessoas jovens para produzir conteúdo intelectual verdadeiro e impactante. Se estamos preocupados com o ChatGPT, na realidade, deveríamos estar em pânico sobre como o sistema educacional encoraja a imitação e a insinceridade.
- Como editar a escrita de pessoas no espectro do autismo
Por Mirna Wabi-Sabi Para aqueles de nós que trabalham editando a escrita dos outros, uma das primeiras lições é que cada pessoa que escreve lida com as edições de maneira diferente e é útil ser flexível na abordagem do feedback. Na minha carreira, já aconteceu que a escrita de alguém e a resposta às edições me fizeram suspeitar que a pessoa poderia estar no espectro do autismo, mas nunca há necessidade de confirmar um diagnóstico leigo, apenas de adaptar sua abordagem como seria feito com qualquer outro indivíduo escritor. Recentemente, no entanto, alguns escritores me procuraram com textos sobre estar no espectro, e isso me levou a identificar alguns padrões e a organizar algumas das minhas ferramentas de edição. Esta informação pode ser útil para aqueles que já sentiram vontade de abandonar um projeto porque observaram esses sinais, mas os interpretaram como confusão, hostilidade ou inexperiência. Sinal 1–Prolixo Quando uma passagem curta não é clara e um editor pede uma explicação, o texto volta com algumas páginas extras, que não necessariamente abordam o problema original. Possível causa: A prolixidade extrema como resposta a um pedido de clareza pode ser um sinal de que a pessoa escritora está insegura sobre a sua capacidade de se fazer entender, muitas vezes até para si mesmo. Ferramenta: Nesse caso, não há necessidade de abandonar o projeto porque ficou muito longo e ainda mais confuso do que o primeiro rascunho. Converse com o indivíduo escritor e chegue a um acordo sobre qual é o ponto principal do artigo. Com isso em mente, remova as passagens, frases ou parágrafos que fogem do ponto principal. Ao retirar essas camadas, você verá que há uma narrativa por baixo. Sinal 2–Recuar Às vezes, em resposta a uma editora pedindo uma explicação, um escritor recua, dizendo “deixa pra lá, não quero mais escrever ou publicar”. Possível causa: A frustração com os desafios de tentar se conectar com um público pode levar qualquer escritor a um caminho de dúvida misturada com aborrecimento. Para alguém no espectro, esse sentimento pode ser amplificado, fazendo o indivíduo querer desaparecer. Ferramenta: Assegure ao escritor que essa frustração é uma resposta natural ao processo de escrita e que seu trabalho como editor é ajudar a construir uma ponte entre o trabalho e o público. Em seguida, forneça exemplos de explicações (seja tão criativo quanto quiser em suas sugestões). Dessa forma, você inicia uma sessão de brainstorming, inspirando o indivíduo escritor a apresentar sua própria explicação. Sinal 3–Diário Alguns textos soam como páginas de um diário. É quando um indivíduo que escreve começa muitas frases com a palavra “eu”, a narrativa dos eventos é muito linear e há dificuldade em dar o salto de sua experiência pessoal para uma mais universal. Possível causa: O estilo narrativo de “Eu fiz isso, depois fiz aquilo. Portanto, isso é o que eu fiz” pode ser um sinal de que o indivíduo está tendo dificuldade em se colocar no lugar de outra pessoa. Nesse caso, na pele da pessoa leitora que pode estar se perguntando: “e daí, o que isso tem a ver comigo?” Ferramenta: Incentive o escritor a evitar iniciar frases/parágrafos com a palavra “eu” ou “isso”. Dê exemplos de como fazer isso, tornando o objeto o sujeito da frase. Faça a pergunta: “para uma pessoa leitora que não tem essa experiência específica, como isso se aplicaria a ela?” Sinal 4–Prosa Talvez a escrita esteja estruturada de maneira incomum – parágrafos extremamente longos, incapacidade de separar temas e organizar esses parágrafos, ou quebras de linha e pontuação estranhas. Possível causa: Visão geral do texto confusa e falta de estrutura são sinais de que a escrita está acontecendo como um fluxo de consciência que não prioriza a compreensão da pessoa leitora ou o acesso ao conteúdo. Esse tipo de escrita está associado aos já mencionados sinais Prolixo e Diário, e mostra que o indivíduo escritor está tentando esclarecer o conteúdo para si mesmo. Ferramenta: As mesmas ferramentas usadas para Prolixo e Diário podem ser usadas aqui, com a adição de abertura para abordagens inovadoras de estrutura. Se o ponto principal do artigo for claro, ser flexível para acomodar o uso instintivo da estrutura da pessoa escritora pode ser útil. Tais como, poesia em prosa, quebras de linha rítmica e assim por diante (eu, pessoalmente, encorajaria a academia e seus profissionais a serem mais flexíveis quando se trata disso). Claro que nem todo mundo que é propenso a alguns desses comportamentos como pessoas que escrevem está no espectro do autismo. Mas entender que esses comportamentos podem ser abordados de maneira eficiente é útil para todos nós. Habilidades de comunicação são coisas que todos nós temos que aprender, e muitas vezes temos dificuldade nisso.
- Minilagos podem influenciar microclimas na cidade?
Por Mirna Wabi-Sabi [1] Durante o isolamento da pandemia, tive mais tempo de observar meu jardim, seus movimentos, crescimentos e seres. Isso me levou a começar um experimento com o desenvolvimento de minilagos sem bomba, para acomodar sapos, libélulas etc. No processo, não só aprendi muito sobre as vidas e os comportamentos de diversos seres, descobri da existência de diversos seres vivos, incluindo plantas, e suas funções para um ecossistema equilibrado. A cidade, hoje, não é um ecossistema equilibrado. Assim como o nosso conhecimento sobre os animais e plantas em nossa volta, ou que não estão mais em nossa volta por causa do desequilíbrio urbano, é insuficiente. Será que minilagos não só podem remediar nossa falta de conhecimento ao nos expor à certos aspectos da natureza de forma acessível e diária, mas também podem influenciar o habitat urbano para mitigar o efeito estufa e os danos causados pelo aquecimento global? Cidades e vilarejos Weizi Um estudo recente, de julho de 2022, chamado ‘Impactos dos Corpos de Água nos Microclimas e no Conforto Térmico Externo’ descreve como pequenos lagos artificiais se relacionam à revitalização ambiental sustentável num assentamento humano. Usando como referência um vilarejo chinês de tradição Weizi (Wei zi) chamado Xufan, uma análise é feita sobre a influência que características urbanas, como asfalto e prédios altos, têm sobre microclimas, em contraste com as características de habitats humanos que utilizam recursos aquáticos. Um vilarejo Weizi “é um modelo típico de assentamento humano tradicional chinês que combina habitat humano com terras agrícolas e conservação de água”. Ele se adapta, transforma e utiliza um ambiente aquático através da interseção de condições climáticas, recursos naturais locais, cultura rural e Fengshui — onde a ancestralidade e a ciência ambiental se fundem. Xufan, no vilarejo Guanweizi, no município de Guangshan em Henan (China), foi listado como um desses assentamentos tradicionais em 2017. Lá, foi possível analisar como os corpos de água afetam a temperatura e umidade do ambiente, e influenciam as convivências e produções humanas. O estudo revela que corpos de água absorvem calor durante o dia, e liberam calor durante a noite, mantendo estabilidade de seus microclimas. Eles também afetam a umidade do ar, que por ventos e brisas se conectam com microclimas de outros corpos de água em certos raios de distância. Isso densifica a vegetação da região, regula o clima e sustenta a agricultura local. Esses efeitos são interrompidos ao se aproximar do centro urbano. Nas cidades, edifícios blindam o vento e as brisas, interrompendo o fluxo de umidade entre diferentes corpos de água e seu efeito de resfriamento da temperatura local. Pode ser instintivo entender o asfalto e os motores dos carros como coisas que aquecem um ambiente, e prédios que por sua vez amparam o clima criado em suas ruas. A principal função do asfalto é impermeabilizar, e o motor opera na base de pequenas explosões queimando combustíveis. A elevação da temperatura e diminuição da umidade são microclimas em si — urbanos. Imagens: “Research on the Forms and Changes of Jianghuai Shuiwei Settlements — Take the Western Jianghuai Area as an Example". O que são Microclimas? A água não só satisfaz necessidades de agroecossistemas, mas também regula o conforto térmico, o que é um efeito específico do microclima. O PET (Physiological Equivalent Temperature) “é um índice baseado no balanço térmico do corpo”, e representa o conforto ou desconforto térmicos em microclimas urbanos ou não. Como tal, microclimas são nada mais do que condições atmosféricas de um certo ambiente, resultantes de certos elementos desse ambiente. Vegetação, corpos de água, asfalto e prédios são exemplos de elementos geomorfológicos que influenciam microclimas. O microclima urbano é às vezes chamado de “ilha de calor”, como resultado do que eu chamaria de agentes exógenos de relevo. As infraestruturas da cidade são, de certa forma, elementos geomorfológicos exógenos que alteram significativamente a superfície da Terra, entre outras coisas. Com o inegável dano que a revolução industrial causou no planeta e nos níveis de poluição de centros urbanos a partir da metade do século 19, muitas estratégias de mitigação de danos foram desenvolvidas, com resultados talvez medíocres. Combate à poluição urbana A indústria de carvão, que é responsável por grande parte da poluição industrial desde o meio do século 19 e também por diminuir a expectava de vida humana, está em declínio nos EUA, assim como as mortes associadas à sua mineração. Por outro lado, na China, a produção de carvão se encontra em ascensão. Outra estratégia de combate à poluição nas cidades tem sido tornar carros mais eficazes. A injeção eletrônica, por exemplo, é eficaz na redução da poluição ao misturar o ar e o combustível de forma mais econômica do que a regulagem manual. O catalisador neutraliza os gases nocivos que entram na atmosfera ao sair pelo escapamento, com efeito em até 98% deles. O Manual de Formação de Condutores (Edição 2022) afirma que o Brasil “passou a produzir um dos melhores combustíveis do mundo no ponto de vista ambiental”. Ao adicionar etanol à gasolina, emissões de monóxido de carbono (CO) e outros gases nocivos são reduzidas. Diz-se que, comparado com 1986, a média de emissões de CO por veículo hoje é 0,05% do que costumava ser (de 54g/km para 0,3g/km). Isso tudo soa bem, porém, ao inspecionar mais detalhadamente, problemas pontuais parecem ser parcialmente resolvidos enquanto outros surgem simultaneamente. CO é apenas um dos gases nocivos emitidos por automóveis, muitos deles que não diminuíram em tal escala. Os números diferem dependendo da fonte porque variam com o ano de fabricação do carro, região e regulamentações. As regulamentações não são propriamente fiscalizadas. E mesmo se as leis fossem impostas e seguidas, a adaptação da legislação visa proteger o meio ambiente quando também é do interesse do “desenvolvimento da indústria automobilística” (Art. 2°: I—Vetado). Portanto, dizer que a poluição nas cidades melhorou em comparação com 100 anos atrás, por meio da tecnologia, não é dizer muito. Uma visão holística de como lidar com a nocividade ambiental da urbanização superaria as limitações das leis nacionais e da indústria de carros, já que a camada de ozônio e o efeito estufa não operam de acordo com a lógica financeira e jurídica. As lógicas financeira e jurídica, na verdade, operam de acordo com o conjunto de crenças da população, mesmo que elas muitas vezes sejam manufaturadas pelos próprios setores financeiro e jurídico. Será que moradores da cidade querem viver em lugares como São Paulo, onde o trânsito e a grana nunca param de pulsar? Imagens: “Vernacular Ecological Architecture — Weizi Folk Houses in the Southeast Henan". Será que a ilha de calor é inescapável? Os microclimas da cidade alienam animais e plantas. Mas, com uma reconfiguração dos conjuntos de crenças sobre o que pode ou deve ser a vida na cidade, criar microclimas urbanos que convidam animais e plantas a prosperar é viável. Terraços verdes reduzem os efeitos das ilhas de calor urbanas, e vegetação se concentra em torno de corpos de água naturalmente. Portanto, corpos de água podem e devem ser introduzidos em jardins urbanos, hortas comunitárias e terraços onde já haja interesse em paisagismo. Para usufruir do efeito de resfriamento de plantas e lagos em contextos urbanos, uma estrutura autossuficiente que minimiza o uso de recursos como água e eletricidade públicas é não só acessível, mas também ancestral. Como vilarejos Weizi são descritos, “o espaço adaptável à água apresenta a sabedoria dos ancestrais para se adaptar e transformar moderadamente o ambiente aquático e utilizar os recursos hídricos de maneira sustentável, com baixa tecnologia, baixo custo e baixa manutenção.” Wei, além de ter sido um território ilustre na China antiga, também significa habitação que utiliza trincheiras aquáticas para satisfazer uma variedade de necessidades comunitárias como irrigação, escoamento, lavagem, conforto térmico e proteção. Prédios viabilizam a passagem de brisa, trincheiras servem como muros de defesa, água e animais nutrem a agricultura e, em geral, a arquitetura e urbanismo vernaculares expressam conhecimentos valiosos ancestrais e científicos. No contexto urbano moderno, adaptar à água pode significar a coleta de água da chuva, que por sua vez incentiva a consciência sobre a frequência de chuvas e qualidade do ar (que influencia a condição da água da chuva), além de minimizar o uso de água do abastecimento da cidade. O aumento da umidade do microclima, com a presença de brisa entre cada corpo de água, pode auxiliar na regularização da frequência das chuvas (pois sabemos que a umidade e chuva se favorecem). Para controle de proliferação de mosquitos, peixes pequenos podem ser introduzidos no corpo de água. Um laguinho bem plantado, e com uma quantidade e tipo de peixes adequados, não precisa de bomba ou filtro. Uma troca parcial de água é suficiente, e a água do lago, rica em nutrientes, pode ser usada para regar plantas. Animais como lagartos, besouros, libélulas, formigas e pássaros contribuem para a manutenção desses elementos naturais e minimizam a necessidade de manutenção humana. Ao convidar esses seres, os observamos e os entendemos melhor. Parte de entender melhor, significa entender que a prosperidade desses seres significa a nossa prosperidade, o futuro humano. O conhecimento sobre a natureza nos ensina a apreciar, respeitar e, por sua via, proteger. E nos ensina sobre os contextos microclimáticos urbanos, cujas afrontas à existência humana nós muitas vezes falhamos em identificar, denunciar e modificar. Os pesquisadores do artigo ‘Impactos dos Corpos de Água’ afirmam que o impacto de diferentes formatos de corpos de água será o foco de suas próximas pesquisas, indicando uma deficiência de dados referentes à diversidade de possibilidades para mitigar os efeitos de “superfícies subjacentes feitas pelo homem” através do uso de corpos de água. Portanto, há muito ainda a ser explorado. A execução dessa proposta apresenta uma curva aguda de aprendizado e adaptação de conjuntos de crenças da população, fora uma reconfiguração do que significa o espaço privado ou individual no contexto da relação entre microclimas urbanos e o futuro do planeta. Aos poucos, a consciência sobre como cada indivíduo lida com seu espaço privado, e age em relação à natureza em coesão, tem o poder de reconfigurar o status quo da urbanização. Quem sabe, o micro em efeito cascata se torna macro, e a ilha de calor aos poucos é ressignificada por vários oásis. [1] Fundadora e diretora da Plataforma9, autora do livro Anarco-transcriação.
- Relembrando As Vítimas Queer/Cuir Do Holocausto
Por Jördis Spengler O dia 27 de janeiro de 1945 marca a libertação do campo de concentração e morte de Auschwitz-Birkenau. Auschwitz desde então se tornou sinônimo dos horrores alemães de um genocídio industrializado, guiado pelo estado, de judeus, Sinti e Roma, prisioneiros de guerra e aqueles considerados indesejáveis dentro do estado e da sociedade nazista, como (mas não limitado a) pessoas deficientes ou homossexuais, os chamados 'indivíduos anti-sociais' e 'criminosos'. Desde uma resolução da ONU de 2005, 27 de janeiro é observado como o Dia Internacional da Memória do Holocausto – na Alemanha, é um dia nacional de comemoração desde 1996. As vítimas homossexuais foram listadas como um grupo de vítimas por décadas. No entanto, este ano será a primeira vez que os governos alemão e austríaco homenagearão especificamente as vítimas queer/cuir do regime Nazista. Por que a identidade sexual e de gênero tornou-se tema central de recordação com tanto atraso? Antes de podermos responder a essa pergunta, há alguns pontos a destacar. Em primeiro lugar, a sexualidade e o Holocausto são dois temas raramente conectados e, quando o são, parecem causar um desconforto instantâneo, como aponta Anna Hákovjá (2018). Em segundo lugar, há dificuldade em falar sobre as experiências daqueles no passado usando termos contemporâneos. O rótulo queer/cuir, que o texto a seguir usará em alguns pontos, é um anacronismo. É usado para convocar uma variedade de práticas e identidades de gênero, sem servir à construção social da binariedade de gênero que divide heterossexualidade e homossexualidade. O termo homossexualidade será usado quando for apropriado ao contexto histórico. Em terceiro lugar, uma comparação paralela da perseguição de homossexuais e da opressão de lésbicas ou pessoas cuir dentro do regime Nazista com a Shoah é, para citar estudiosos como van Dijk, não lógica. Não houve ‘holocausto gay’, houve uma prerseguição de gêneros e sexualidades não-conformes visando a ‘reeducação’ e punição (van Dijk, Ostrowska, Talewicz-Kwiatkowska 2002:16) ao invés da extinção total. No entanto – como Adorno disse em Education after Auschwitz – “citar ou regatear os números já é desumano” (Adorno 1971:89). Relembrar as vítimas cuir do Holocausto é reconhecer como gênero, sexualidade e fascismo sempre estiveram entrelaçados, reforçados e reproduzidos um pelo outro e não podem ser pensados como separados ao longo de uma história que começou muito antes do regime Nazista e terminou muito depois. O parágrafo 175 foi estabelecido no código penal alemão em 1871, persistiu durante a queda do Império Alemão e permaneceu consagrado na lei durante a curta vida da República de Weimar. Lá, foi contestado e sua abolição chegou a ser considerada em 1929. No entanto, sob as revisões de 1935, o parágrafo 175 foi apertado e ampliado. Antes, as relações sexuais entre homens eram puníveis e precisavam ser provadas; após a revisão, a simples suspeita de ser homossexual foi suficiente para a perseguição. Aproximadamente 50.000 homens foram considerados culpados e condenados à prisão ou campos de trabalho; 10.000 foram enviados para campos de concentração entre 1936 e 1945 (Grau 2013:171). Um deles foi Karl Gorath, que foi denunciado e preso em 1939, e enviado para o campo de concentração de Neuengamme após cumprir sua pena de prisão. Quando ele se recusou a reduzir as rações de pão para prisioneiros russos, ele foi posteriormente deportado para Auschwitz Stammlager e mais tarde para Mauthausen. Após a libertação de Mauthausen, Karl Gorath foi novamente acusado em 1947 de violar – o ainda em vigor – parágrafo 175. Não só foi processado sob o mesmo parágrafo 175, como também se viu diante do mesmo juiz. Isso mostra uma continuidade do nazismo e do pensamento repressivo na Alemanha, apesar do discurso glorificado em torno da desnazificação (ou Aufarbeitung) e acerto de contas com o passado. Gorath foi condenado a cinco anos de prisão na recém-fundada República Federal da Alemanha, pelas mesmas instituições e atores, e sob a mesma lei. Ele passou mais cinco anos na prisão e não pediu liberdade condicional, dizendo: 'Eu não queria misericórdia — nem deste estado e nem de sua justiça'. (como acima, Huetter). Devido à sua ficha criminal, Gorath foi considerado inadequado para o emprego. O seu direito à pensão foi reduzido com base em cálculos que incluíram o tempo que passou desempregado e o tempo que passou nos campos de concentração, empobrecendo-o. Ações judiciais contestando a decisão de pensão e pedindo para ser reconhecido como vítima do regime nazista e, portanto, elegíveis para indenização, foram negados até sua morte em 2003 [1]. O parágrafo 175 foi abolido em 1994. A batalha pela compensação legal para as vítimas homossexuais do regime nazista continuou até 2017 [2]. Mulheres e pessoas trans nem sequer eram reconhecidas como grupos distintos dignos de nota, pois não tinham categoria própria no código penal do regime Nazista. No entanto, embora não tenham sido processados por sua prática e identidade sexual por lei, a estranheza ou suspeita de estranheza serviu como justificativa e intensificador da perseguição, como foi o caso de Elli Smula. Ela foi presa após ser denunciada por participação em atos de embriaguez e homossexualidade, e posteriormente foi enviada para Ravensbrück. Ela foi categorizada como prisioneira política, com a notação 'lésbica'. Ela morreu de uma injeção do médico do SS Herta Oberheuer em 1942, ou como resultado das condições do campo de concentração em 1943 [3]. Os eixos de poder e perseguição em jogo no caso de Elli Smula foram variados, mas, ainda assim, baseados na ideologia nazista de pureza racial e superioridade genética. Reconhecer a heterogeneidade da perseguição não serve para estabelecer uma hierarquia de vitimização, mas é um meio importante de analisar e entender o fascismo alemão e a continuidade da opressão cuir-fóbica em toda a Europa. A lente cuir nos permite ver vítimas de perseguição além das classificações do regime Nazista e fazer com que suas histórias de resiliência e resistência sejam ouvidas. Engajar-se na lembrança cuir quebra o ciclo de silêncio e ocultação de identidades cuir como Fredy Hirsch, um atleta e sionista que trabalhou com Maccabi Hatzair. Fredy Hirsch, que era judeu e alemão, emigrou para Praga depois que as Leis de Nuremberg entraram em vigor em 1935 para fugir da crescente perseguição a judeus e gays. Lá, ele posteriormente organizou atividades para as crianças da Praga ocupada. Ao ser deportado para Theresienstadt, tornou-se supervisor de jovens, chegando a convencer a SS a realizar os jogos do Maccabi dentro de Theresienstadt em 1943. Assumidamente gay e judeu, morando com seu parceiro no gueto, Hirsch era conhecido e admirado por seus constantes esforços para fazer vida em Theresienstadt suportável para as crianças. Quando ele foi deportado para Auschwitz, ele se tornou o supervisor do bloco infantil chamado 'campo familiar', ajudando as crianças a sobreviver e receber um mínimo de educação e higiene, apesar das condições do campo de extermínio. Quando foi decidido que todos do campo seriam assassinados por gás, Hirsch foi com as crianças para o campo de 'quarentena', embora tenha sido advertido contra isso. No entanto, ele não queria ser poupado se não pudesse salvar as crianças. Mais tarde, ele foi encontrado em coma; discute-se se foi suicídio ou assassinato para evitar uma revolta. Ele foi transportado com as crianças para as câmaras de gás [4]. O que podemos aprender até mesmo com essas três histórias individuais é que a lembrança digna deve incluir um olhar para o presente, deve incluir uma luta contra a discriminação e a marginalização existentes, para que crimes como o Holocausto realmente “nunca mais aconteçam”. A representação mínima de perspectivas e lembranças cuir e feminista em geral é sintomática de uma negligência desses requisitos de dignidade. A comemoração pluralista é uma tarefa difícil que não apenas o estado alemão, mas a sociedade alemã como um todo deve realizar. Ao reconhecer e diversificar o quadro da lembrança, permitimos que a memória, portanto, o passado, se manifeste no presente. Para mostrar a importância de atos históricos para a sociedade contemporânea, o reconhecimento é imprescindível. Para entender o significado do reconhecimento das vítimas cuir do regime nazista, é vital examinar a história do julgamento da homossexualidade no regime Nazista e além, e se engajar na tarefa de uma história do holocausto cuir. A lembrança tardia das vítimas cuir do Holocausto espelha a complexidade de lidar com uma perseguição que não terminou em 1945 e a interseção da sexualidade e da sociedade na pesquisa e na cultura memorial. Se eles foram encarcerados pelo parágrafo 175 e, a partir de 1938, marcados com o triângulo rosa nos campos de concentração e extermínio; se foram denunciados, marcados e estigmatizados como criminosos ou antissociais; ou se foram os inúmeros outros que sofreram discriminação e violência dentro dos campos de concentração – é preciso lembrar deles. É também um exemplo que demonstra a complexa relação do Estado alemão com sua própria história de fascismo e de repressão aos não heteronormativos até os dias atuais. Serve como um conto preventivo e informativo sobre a soberania interpretativa de um estado perpetrador em relação às suas vítimas, bem como as possibilidades de redenção e a necessidade de perspectivas interseccionais. As regulamentações de memória são políticas. Assim, a questão do reconhecimento das vítimas cuir do Holocausto deve ser uma questão de redefinir e abandonar as categorias desumanas do regime Nazista, em vez de reproduzi-las na memória. Assim, nesse 27 de janeiro de 2023, quando foram homenageadas as vítimas cuir da Alemanha nazista, teremos espaço para lembrá-las e homenageá-las sem impor as categorias desumanas que levaram à sua perseguição. A lembrança cuir pode, assim, servir como uma intervenção poderosa na política, na cultura e na representação social que revela as histórias daqueles que sempre fizeram parte da história, mas que antes estavam escondidos no silêncio. Por Jördis Spengler Fontes Online Paragraph 175, Antidiskriminierungsstelle. Paragraph 175 STGB. Hájková, Anna (2018). Literatura Adorno, Theordor W. : Erziehung zur Mündigkeit, Frankfurt/M. 1971 Gat, Rubi: Dear Fredy, Israel 2017 Grau, Günter (Ed.): Homosexualität in der NS-Zeit, Frankfurt 2013 Kogon,Eugen: Der SS-Staat, Stockholm 1947 Ostrowska, Joanna; Talewicz-Kwiatkowska, Joanna; van Dijk, Lutz (Eds.): Erinnern in Auschwitz. Auch an sexuelle Minderheiten, Berlin 2020 Sofsky,Wolfgang: Die Ordnung des Terrors. Das Konzentrationslager, Frankfurt/M. 1993 Notas [1] Para toda a história de Karl Gorath, veja http://www.joerg-hutter.de/karl_b_.htm#Karl [2] Veja também: https://www.antidiskriminierungsstelle.de/DE/ueber-diskriminierung/diskriminierungsmerkmale/sexuelle-identitaet/sexuelle-identitaet-node.html [3] Para mais informações sobre Elli Smula, consulte Claudia Schoppmann: Elli Smula. Em: stolpersteine-berlin.de. [4] Veja Dear Fredy, documentário, 2017, por Rubi Gat.