O preço da conectividade na COP30
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- há 4 dias
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Como conseguir investimentos movidos por moralidade, e não por lucro? Sobretudo, o que significa aceitar o dinheiro para a proteção ambiental de quem lucra com sua destruição?
Escrito por Mirna Wabi-Sabi
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O primeiro dia da COP30 começou com discursos cuidadosamente calibrados para soar esperançoso. As palavras mais repetidas foram financiamento e inovação. Quase nada se falou sobre quem financia, com quais estipulações, e com que custos sociais e ambientais. As mesas giravam em torno de parcerias, mas os acordos soavam ocos, projetos verdes sustentados pelo mesmo capital que destrói.
No Pavilhão dos Oceanos, a ex-primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, fez uma intervenção moral em meio à tecnocracia.
“Precisamos começar a encarar o fato de que existem áreas onde precisamos desesperadamente de preservação e restauração. Onde pode não haver um imperativo financeiro, mas há um moral. E nossos oceanos são um exemplo disso.”
Quando Ardern fala em “imperativo moral,” ela nos lembra que nem tudo pode ser precificado. Mas a pergunta que ficou suspensa no ar foi: como conseguir investimentos movidos por moralidade, e não por lucro? Sobretudo, o que significa aceitar o dinheiro para a proteção ambiental de quem lucra com sua destruição?
Para Coral Pasisi, diretora de Mudanças Climáticas e Sustentabilidade na Comunidade do Pacífico, muitas iniciativas não têm o “luxo” de escolher de onde vem financiamento, concordar com estipulações de empresas onde há conflito de interesse nas operações nem é parte da conversa.
A ativista Naira Santa Rita Wayand, presente em outra mesa sobre refugiados do clima, disse que cada um de nós está “mais perto de ser deslocado por causa das mudanças climáticas do que de se tornar um bilionário.” Os bilionários aparecem nas manchetes; os deslocados e o longo processo dos desastres climáticos, nem tanto. O colapso climático continua se acumulando em silêncio até que se torna irreversível.
O evento segue dominado pela lógica do financiamento e das parcerias público-privadas, que frequentemente substitui o debate ético por métricas de eficiência e retorno, especificamente através do avanço tecnológico.

A China e o novo eixo do discurso verde
Entre as presenças mais comentadas na COP30, a China se destacou pela ambiguidade de seu papel; o maior emissor de gases do mundo, e líder da transição energética ao mesmo tempo. Sua atuação é descrita como “cooperação Sul-Sul” (South-south cooperation), um termo diplomático para a reconfiguração da influência global. A presença chinesa com delegações sobre energias limpas, Green Tech, e inteligência artificial para o clima também serviu para reforçar a ideia de que o futuro tecnológico pertence ao “Sul;” às nações historicamente colonizadas ou economicamente marginalizadas.
Enquanto os chefes de Estado disputavam narrativas de protagonismo, longe das câmeras, outros painéis mostravam a face concreta dessa nova corrida verde de cidades conectadas, florestas monitoradas e corpos digitalizados.

Amazônia digital
O projeto Norte Conectado foi apresentado pelo assessor especial Jefferson Nacif, do Ministério das Comunicações como parte do programa Amazônia Integrada e Sustentável. Ele instala cabos de fibra óptica subfluviais ao longo de 12 mil quilômetros de rios amazônicos, prometendo levar internet a mais de 10 milhões de pessoas em 60 municípios.
Em entrevista, Nacif explicou que “estar conectado é estar integrado na sociedade. Por isso temos que levar conectividade a todas as pessoas,” seja para o entretenimento ou para acessar serviços públicos. Hoje, mais de 4.500 serviços do governo são digitais, a cidadania digital se torna mais e mais inescapável.
Segundo ele, a fibra é mais barata e sustentável que o satélite, e o impacto ambiental seria “zero,” já que os cabos “são deitados nos leitos dos rios” por barcos, sem a necessidade de cortar qualquer árvore. O discurso ecoou um otimismo tecnológico que enxerga a infraestrutura como sinônimo de inclusão.
Por outro lado, como determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), consultar as comunidades locais é o que garante a inclusão. Uma consulta livre, prévia e informada a povos indígenas sobre qualquer projeto que afete seus territórios é um direito internacional. No caso do projeto Norte Conectado, essa digitalização avança, mas sem tal diálogo, pois ainda não houve pesquisa profunda com as comunidades sobre quais recursos eles requerem e como querem receber.
A barqueata da Cúpula dos Povos, realizada dia 12 na Baía do Guajará, em Belém recebeu falas de lideranças que criticaram a apropriação dos rios por projetos de infraestrutura e a falta de escuta do governo em relação às populações tradicionais. “Projetos de infraestrutura” inclui cabos de fibra óptica instalados nos leitos dos rios amazônicos sem consulta prévia.
A digitalização traz identidade (RG, carteira de motorista, prova de vida), saúde, e educação. E também traz vício, vigilância e precarização. A dupla face da tecnologia significa que levar internet a quem tem vivido desconectado do mundo digital pode resultar em inclusão, mas também pode ser uma nova fronteira do extrativismo digital se não abordado de forma cuidadosa, crítica e consciente.

A IA “do mal”
O acesso à internet também significa exposição a diversas novas tecnologias cujas repercussões ainda estão se revelando. A internet viabiliza o contato com a IA e isso reforça a necessidade de abordar inclusão digital cuidadosamente. O advogado Luã Cruz, do Instituto de Defesa do Consumidor (IDEC), lançou uma crítica direta ao otimismo tecnológico logo após a mesa do Instituto de IA para o Clima. Ele abordou os palestrantes, apontando que todos são homens brancos, para perguntar: O que vocês estão fazendo sobre as IAs do mal?
Em entrevista posterior, ele explicou o que quis dizer. A primeira maldade é de onde surge a IA. “Ela não é artificial, está em algum lugar,” nos grandes data centers, armazéns gigantescos que consomem água, energia e território. “O problema começa aí.”
Segundo Cruz, o mesmo sistema que promete inclusão digital consome os recursos naturais das comunidades que pretende “integrar.” No Ceará, ele citou o exemplo de um data center do TikTok construído ao lado de uma comunidade indígena que já vive com escassez hídrica. “Um data center precisa de muita água para ficar resfriado.” E para quê? “Memes, dancinhas.” Não é um data center para saúde, para educação. “É muita perda e pouco retorno.”
Há ainda outros tipos de IA “do mal”:
Deepfakes usados em golpes, propagandas falsas ou pornografia infantil;
Reconhecimento facial aplicado em segurança pública, que erra mais com rostos negros;
Sistemas de crédito e seguros baseados em IA que discriminam contra pessoas pobres;
O novo “overview” do Google, que captura conteúdo jornalístico sem remunerar quem o produz.
Entre outros, incluindo impactos indiretos como lixo eletrônico e mineração para confecção de chips provenientes da inserção da população mundial ao mundo digital.
As inteligências artificiais herdaram os mesmos vieses, desigualdades e hierarquias do mundo que as criou. IA “não é nem inteligente nem artificial, né?” Ela se torna a automação das injustiças que já existem.
A floresta precisa de Wi-Fi para continuar em pé? De acordo com Cruz, “mudar a vida dessas pessoas não vai só mudar o hábito delas, não vão só consumir mais coisas. Elas vão deixar os hábitos que deixam a floresta de pé. Eu acho que esse é um grande problema.”

Uma nova fronteira de DPIs e dados
O painel de IA e Digital Public Infrastructure (DPI) se apresentou como uma promessa de eficiência – integrar sistemas públicos, oferecer pagamentos instantâneos (como PIX), monitorar irrigação e “tornar visível o impacto ambiental.”
Entre os apoiadores, a Fundação Bill & Melinda Gates, promotora do programa “DPI for People and Planet,” premiou 5 projetos no Desafio de inovação, incluindo o projeto brasileiro Trust Carbon, que afirma “dar visibilidade a pequenos agricultores” ao conectá-los à indústria de compensação de carbono.
A tecnologia que promete dar visibilidade coleta dados biométricos, usa reconhecimento facial para verificação de checkpoints e alimenta bancos de dados globais de crédito de carbono. Trata-se de redefinir quem é visível, rastreável, e tem a oportunidade de entrar no mapa digital.

Soluções de código aberto baseadas em IA de Laos
O projeto SAFIR (Smart AI-based Farming & Irrigation for Resilience), da Alisa Luangrath, foi vencedor do Prêmio IA para Ação Climática desse ano. Com sensores e aprendizado de máquina, a iniciativa usa IA para economizar água na irrigação em áreas de Laos vulneráveis à seca. O diferencial é que o projeto adota licenças abertas, publica seus códigos no GitHub, e compartilha os dados com painéis públicos e APIs (Interfaces de Programação de Aplicações). E ainda mais, fornece esses serviços tecnológicos na língua local para garantir acessibilidade a fazendeiros da região.
Enquanto grandes corporações transformam dados ambientais em ativos financeiros, Luangrath oferece um exemplo de tecnologia de IA acessível e transparente. Quando se fala em inovação climática, o caso do SAFIR demonstra o real potencial da tecnologia para, no mínimo, mitigar os danos de eventos climáticos extremos e promover o uso eficiente de recursos.
Na COP30, há diversas contradições. As próprias apresentações sobre tecnologia sofreram problemas tecnológicos com microfones, visualizações no telão, e ar-condicionado. O calor e a umidade testam a sanidade da delegação de qualquer nacionalidade, enquanto falamos de combater o aquecimento global com financiamento do setor privado. Ao mesmo tempo em que líderes discutem inteligência artificial para salvar o planeta, a conferência depende de patrocinadores com histórico ambiental problemático, como a Petrobras e a Vale, cujos acordos ainda carecem de transparência e cujas operações não são observadas. Enquanto isso, comunidades que vivem nas margens dos rios com cabos de fibra óptica continuam escanteadas.
Talvez haja coisas que nenhum algoritmo pode consertar, como a distância entre discurso e realidade.
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Fontes:
Entrevistas exclusivas de Mirna Wabi-Sabi com Jefferson Nacif (Ministério das Comunicações, 11 nov 2025) e Luã Cruz (IDEC, 11 nov 2025), gravações autorizadas.
Citações de Jacinda Ardern e Naira Santa Rita Wayand, COP30, Belém do Pará.
Informações adicionais de painéis “IA para Ação Climática” e “DPI for People and Planet.”
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Originalmente publicado na Le Monde Diplomatique Brasil, sem imagens.






























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