Povos indígenas, Palestina e a disputa pelo fim da era fóssil
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Atualizado: há 37 minutos
Por Mirna Wabi-Sabi
Belém — Na COP30, os povos indígenas da Amazônia chegaram primeiro, antes dos chefes de Estado, antes das delegações abotoadas, antes das promessas de transição energética que frequentemente terminam em transcrições de discursos no inbox. Vieram porque a floresta está doente, porque seus rios estão sendo poluídos, seus peixes estão desaparecendo, e suas crianças estão adoecendo por causa de um modelo energético que continua sacrificando territórios inteiros em nome de um progresso que nunca chega para quem vive na floresta. Vieram porque sabem que se o mundo quer realmente encerrar a era dos combustíveis fósseis, esse fim começa na Amazônia.
Quando a água acaba e o gás chega

Durante a coletiva de imprensa do Instituto ClimaInfo sobre o "início do fim da era dos combustíveis fósseis na COP30,” dia 14 de novembro na Blue Zone, Jonas Reis de Castro, da região de Silves, no Amazonas, explicou com precisão cirúrgica o que significa viver ao lado de um poço de gás. Sua fala ilustra a gravidade da situação:
“Nós estamos ficando sem água potável, nós estamos ficando sem peixe, nós estamos ficando sem a nossa floresta que está sendo destruída para implantar a mineradora dentro de terras indígenas."
O impacto não é apenas ecológico, é civilizatório. Jonas descreve doenças respiratórias causadas pela queima de gás, animais fugindo do barulho das máquinas, e o rompimento de laços ancestrais com o território — laços que não podem ser restaurados com compensações financeiras.
Ele insiste na urgência de “zonas de exclusão,” áreas livres de qualquer exploração, essenciais para que seus povos possam continuar vivendo. Não se trata de radicalismo, trata-se de sobrevivência.
“A zona de exclusão... protege a vida e os territórios, e é o nosso futuro.”
Enquanto alguns discutem a transição energética em termos de IA, créditos de carbono e metas de 2050, os povos indígenas discutem em termos de rios, florestas, corpos e continuidade histórica agora.
A força continental das mulheres indígenas da Amazônia
Na coletiva da Amazon Watch sobre uma "Amazônia Livre da Extração" e pelo "fim da exploração de petróleo, gás, mineração e agronegócio em terras indígenas,” Melva Patricia Gualinga, da Women’s Earth and Climate Action Network, trouxe uma visão cosmogônica, nos lembrando de que a crise climática não é apenas ambiental, mas espiritual.
“Nas florestas que estão vivas, naquelas florestas que ainda existem, tremulando e dizendo: não queremos que esta vida e este planeta sejam destruídos. Portanto, não podemos mais continuar com um modelo obsoleto que se provou ineficaz tanto global quanto economicamente."
Melva aponta a contradição mortal da COP30, onde governos que se apresentam como “líderes climáticos” continuam expandindo fronteiras de petróleo, inclusive na Amazônia. Ela critica diretamente o discurso de que ainda é necessário extrair petróleo para uma “transição justa”:
“O modelo baseado em combustíveis fósseis já deu o que tinha que dar, não funciona mais. Tem que mudar, porque se não mudamos, nós nos exterminaremos.”
A fala ecoa uma realidade que a ciência já reconhece, mas que os governos relutam em tocar. Não há transição possível enquanto se abre novas fronteiras de exploração.
Agentes políticos na encruzilhada a expansão energética

A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, não tem se posicionado publicamente contra ou a favor da exploração de petróleo na foz do Amazonas, e insiste no rigor técnico do licenciamento. Assim, suas posições evitam colidir com o projeto político mais amplo do governo e da Petrobras, que segue defendendo a exploração na Margem Equatorial, inclusive nas imediações de territórios indígenas e áreas sensíveis do litoral amazônico.
Marina já afirmou que não há como conciliar expansão fóssil com metas climáticas. A Margem Equatorial exige cautela e o Brasil deve liderar a transição energética para não repetir erros já cometidos pelo Norte Global. Ainda assim, seu ministério segue apoiando o avanço da indústria de offshore em nome do lucro. As demandas indígenas como zonas livres de petróleo, desintrusão de territórios, e barrar a Margem Equatorial ainda não parecem ter encontrado em Marina uma aliada moral, ou uma força política suficiente para enfrentar o lobby da exploração fóssil. A presença da ministra nas negociações da COP30 é constante, mas a pressão das comunidades é ainda maior, demandando ações para além de discursos.

Sônia Guajajara, ministra dos povos indígenas, expressou anos atrás sua "preocupação com a exploração de petróleo e gás na Bacia do Amazonas," mas infelizmente suas manifestações tiveram pouco ou nenhum impacto. Na COP30, seus discursos têm orbitado a representatividade indígena no evento e nas decisões climáticas, mas parece que não há muito que ela possa fazer ou até falar sobre a expansão da fronteira energética em territórios de povos originários. Representatividade não tem garantido influência.
Em teoria, ministras têm um papel crucial na administração pública de um país. Porém, nesse caso, a gestão de áreas específicas e a implementação de políticas públicas se submete ao poder de indústrias globais extrativistas e levam pessoas em cargos de alto escalão em um governo a abandonarem seus ideais.
Helder Barbalho, governador do Pará, discursou na Aldeia COP apresentando-se como aliado dos povos indígenas, celebrando parcerias institucionais, a criação da Secretaria de Povos Indígenas, sediada no "prédio mais sustentável do Brasil," e o fato de existir, pela primeira vez, um espaço oficial para delegações indígenas na COP30. A Ernst & Young, uma multinacional sediada em Londres, está em parceria com o Governo do Pará para a criação da EY House, um espaço que funcionará como um centro de negócios sustentáveis para a COP30 e se tornará a futura sede da Secretaria dos Povos Indígenas do Pará (SEPI) após o evento. Nessa parceria institucional com o Governo do Pará, a empresa de 'serviços profissionais' britânica promove sua visibilidade e reforça a imagem da EY como uma empresa comprometida com a agenda climática e a valorização das populações tradicionais.
Enquanto o governador adota um tom de reconhecimento e promessa de políticas como educação indígena e participação na bioeconomia e no mercado de carbono, o discurso revela uma busca por legitimidade política, insistindo que indígenas precisam “se posicionar” para não deixar recursos serem usados para “beneficiar gringo.” Isso reforça uma lógica de uso instrumental dos povos para agendas econômicas, em diálogo com o mercado global, onde povos originários são encorajados a se inserir no sistema que têm degradado seus modos de vida tradicionais.
“Daqui mais pra frente aqui vai queimar”
“Tá judiando, fica seco,” disse uma representante Kaiowá na Aldeia COP.
Artesãs indígenas tomaram microfones antes da chegada do governador para se abrir sobre a dificuldade de acessar recursos públicos como editais e feiras, e de implementar conselhos empresariais da Sebrae. A burocracia simplesmente as excluem, e a degradação na natureza as força a precisar comprar coisas que antes elas extraiam sustentavelmente da natureza. Apontaram como há um tabu em falar de espiritualidade. Mulheres indígenas de diversas terras e comunidades choraram ao discursar sobre suar realidades e o que significa para elas verem suas terras e pautas virarem um palco para narrativas e interesses globais. O sofrimento delas ainda não é colocado em destaque, mas vai além de ser urgente. Os efeitos do aquecimento global é visível para elas agora, há anos elas plantam fora de época e se adaptam as mudanças degradativas que elas não causaram.
A Aldeia COP, apesar de simbólica, representa apenas o mínimo. Os povos originários mereciam muito mais do que essa estrutura básica e promessas políticas e neoliberais. A representatividade oferecida arrisca servir como acessório político, não como poder decisório real.
O Petróleo do Amazonas e a Israel

Um dos paralelos mais fortes surgidos durante a COP30 veio da coletiva da Oil Change International, em 13 de novembro, quando participantes denunciaram o papel do petróleo na sustentação do genocídio do povo palestino com o lançamento do relatório Behind the Barrel. Quando alguém perguntou se haveria “uso legítimo” para o combustível enviado a Israel, a resposta foi categórica, de que a pergunta ignora a história do estabelecimento do estado sionista e não há uso civil de combustível em Israel porque esse combustível vai para assentamentos ilegais.
A crítica foi contundente — barris de petróleo carregam “piscinas de sangue” em sua trilha.
A ocupação da Palestina e a destruição da Amazônia compartilham a mesma lógica extrativista e colonial. Ambos transformam territórios vivos em zonas de sacrifício, seja um campo de refugiados em Gaza, seja uma aldeia ribeirinha no Médio Solimões. Se o petróleo alimenta drones e tanques em Gaza, também contamina rios amazônicos e silencia pássaros nas aldeias próximas a poços de gás. A luta indígena e a luta palestina se encontram no mesmo diagnóstico onde o modelo fóssil é incompatível com a vida.
O Papel dos Petroleiros
Durante a coletiva da Oil Change International, Leandro Lanfredi, da Federação Nacional dos Petroleiros (FNP), apresentou um depoimento que expôs a contradição da Petrobras. Ele explicou que o Brasil não vende petróleo bruto diretamente para Israel, mas que Israel importa derivados de refinarias europeias que utilizam petróleo brasileiro.
“No longo prazo, 5 a 10% do que Israel consome é óleo brasileiro. E desse óleo, a Petrobras foi responsável por 67% em junho… Nossos produtos, nosso petróleo, estão contribuindo para a continuidade de um genocídio."
Segundo ele, a Petrobras tenta esconder carregamentos que acabam abastecendo Israel, usando operações de “ship-to-ship” no Mediterrâneo:
“Eles tentam esconder seus negócios para dificultar nossa ação e o cumprimento do que votamos em nosso Congresso, que é não querer nenhum carregamento de petróleo para Israel.”
A fala de Lanfredi é um marco importante porque revela que trabalhadores do setor fóssil no Brasil estão se posicionando contra o uso do petróleo brasileiro para fins militares e genocidas. Indica que o debate sobre transição energética não é apenas ambiental, ele é moral, sindical, geopolítico. A FNP, historicamente defensora da soberania energética, agora confronta a hipocrisia de uma Petrobras que patrocina a COP30 com Diesel R (renovavel) ao mesmo tempo em que aprofunda a fronteira fóssil e abastece, ainda que indiretamente, crimes de guerra.
A Marcha do dia 15 e a Amazônia na cidade
No dia 15 de novembro, Belém se encheu de cantos e corpos pintados marchando do mercado de São Bras até a Aldeia Amazônia, ao lado da sede da COP30. Foi provavelmente a maior das mobilizações durante a COP30, reunindo 70 mil pessoas. As delegações indígenas caminhavam em blocos, firmes e com autoridade. Muitos divulgavam mensagens dirigidas diretamente à Petrobras e ao governo brasileiro. Outros carregavam faixas em solidariedade à Palestina. A conexão entre lutas não foi teórica, foi vivida no asfalto quente de Belém.
A marcha foi também um festival de cores vivas, danças, cantos tradicionais, expressões culturais que lembravam aos negociadores da COP que o mundo real está do lado de fora das salas erraticamente climatizadas da Blue Zone. A cidade se transformou no centro pulsante da luta contra a expansão fóssil.
A luta por áreas de biodiversidade crítica é global

O aspecto mais interessante da COP30 tem sido o reforçar do fato de que assim como a expansão fóssil é global, a luta contra ela também é. Avril De Torres, representante do CEED (The Center for Energy, Ecology, and Development) das Filipinas, destaca que o mundo já ultrapassou o primeiro grande ponto de inflexão climático — a morte massiva dos recifes de corais de águas quentes. O aquecimento está intensificando tufões mortais e destruindo ciclos de vida costeiros. O Sudeste Asiático concentra grande parte dos ecossistemas marinhos globais (corais, mangues, costeiros), tornando-se epicentro da crise.
"O Triângulo de Coral, que é o centro global da biodiversidade marinha, é a nossa própria Amazônia do Oceano, a Passagem da Ilha Verde. Mas hoje, nossas águas e nosso povo estão sob ataque... Em todo o Sudeste Asiático, 43 gigawatts de carvão e 136 gigawatts de gás permanecem em fase de planejamento, e muitos outros blocos de petróleo e gás ainda estão planejados para exploração. Muitos deles estão localizados dentro ou perigosamente perto de áreas protegidas, zonas de conservação e habitats críticos... Nosso governo continua incapaz de responsabilizar a empresa que desenvolve combustíveis fósseis que também está por trás da maior poluição de petróleo da história dos mares filipinos, que aconteceu bem na Passagem da Ilha Verde."
Existem vários paralelos marcantes entre a expansão de combustíveis fósseis no Estreito da Ilha Verde (Verde Island Passage - VIP) nas Filipinas, frequentemente chamado de "Amazônia dos Oceanos," e a expansão no bioma terrestre da Amazônia no Brasil. Ambos os cenários envolvem a exploração em áreas de megabiodiversidade crítica, ameaças diretas aos meios de subsistência das comunidades locais e indígenas, e a falta de responsabilização governamental e corporativa. É evidente que os planos atuais de combustíveis fósseis permanecem uma preocupação ambiental crítica não só no Brasil.
No altar do consumerismo
Redagua é uma rede de conservação das águas da baia de Guanabara — uma rede de organizações ambientais financiadas pela Petrobras, na área onde a empresa é sediada.
Durante a COP30, nenhuma delas esteve presente, com a exceção de uma exposição na praça de alimentação de um shopping.
No altar do consumerismo, a mensagem dessa rede foi genérica, e, claro, não abordou a expansão da exploração fóssil no Brasil.
De acordo com a exposição, o Brasil está até que muito bem nessa área comparado com o resto do mundo, utilizando renováveis em metade de sua fonte energética. Claro que a Petrobras não é responsabilizada pelo fato dessa porcentagem não ser mais alta.
Até quando o argumento é feito em favor de uma transição energética contra a dependência dos combustíveis fósseis, é difícil confiar na narrativa disseminada com financiamento da empresa que mais lucra com a exploração fóssil nesse país.
Isso revela como a Petrobras molda a narrativa ambiental, ocupando espaços públicos enquanto evita enfrentar seu papel central na crise climática. Mostra também como iniciativas financiadas pela própria indústria fóssil produzem discursos que diluem responsabilidade e neutralizam críticas.
Em última instância, evidencia o risco de permitir que um dos principais agentes da destruição seja também o curador das soluções — um conflito de interesse que distorce o debate e compromete a própria noção de transição justa.
Restauração e reparação

O que podemos esperar da empresas de combustíveis fósseis? De acordo com Klara Butz da Urgewald, um grupo alemão que pesquisa empresas de carvão, e Avril De Torres da CEED, não existe forma de evitar conflito de interesse em financiamento ambiental dessas empresas. Qualquer financiamento vindo de empresas fósseis é inerentemente comprometido porque legitima a expansão. Dizem que financiam 'transição energética' enquanto mais de 90% do negócio segue fóssil. Apoiar um projeto de conservação enquanto expande perfuração em blocos como o 59, uma área de exploração de petróleo na Bacia da Foz do Amazonas, é incompatível e contraditório. O risco de derrames em áreas sensíveis (com manguezais impossíveis de limpar) torna o argumento do “retorno financeiro ambiental” absurdo. Argumentar que é do interesse de organizações ambientais que a petrobras siga lucrando porque com esse lucro ela investe em conservação é uma aberração.
A aceitação de recursos de empresas como essa abre a porta para mais destruição. De acordo com as entrevistadas, a Petrobras comprou o Bloco 59 da Total Energies porque sabe que, sob Lula, poderia ter aval político para atrair mais empresas para explorar. Uma vez autorizado, o bloco se torna uma porta de entrada, um gateway para uma onda maior de compradores.
Qualquer dinheiro de empresas fósseis deveria vir apenas como reparação, e não como patrocínio.
Ou seja, parar imediatamente a operação destrutiva, e pagar pela reabilitação ambiental, saúde e meios de vida afetados. Não é aceitável operar e 'compensar' simultaneamente. Investir em conservação enquanto se destrói ecossistemas é um paradoxo, e a única maneira legítima de receber recurso dessas fontes é através de restauração e reparação.
Belém cintilou
A COP30, dentro e fora da Blue Zone, mostrou um Brasil múltiplo, complexo, em disputa.
Dentro da Blue Zone vemos debates técnicos, protocolos, negociações lentas, declarações dúbias, e visões críticas também, mesmo que contidas. Houve solidariedade internacional com a Palestina; trabalhadores petroleiros expondo verdades que governos evitam dizer; cientistas, artistas e movimentos sociais celebrando a potência da Amazônia viva. Fora da zona houve cantos em tikuna, yanomami, kayapó, kichwa; juventudes indígenas denunciando o petróleo; e milhares de pessoas do Brasil e do mundo inteiro se manifestando.
Belém cintilou no encontro impossível entre tantas culturas, línguas, territorialidades, na convicção de que não há futuro dentro da era fóssil. Os povos indígenas mostraram que não é apenas possível, mas urgente, declarar territórios excluídos para sempre da exploração, como dizem Melva e Jonas. E lembraram ao mundo que não existe transição justa sem desmantelar as estruturas coloniais, sejam elas plataformas de petróleo na Amazônia, assentamentos ilegais abastecidos por petróleo no Oriente Médio, ou vazamentos na Passagem da Ilha Verde nas Filipinas.
A beleza de Belém não é apenas estética, é política. Ela afirma que a vida e a natureza, quando defendidas coletivamente, deve vencer.
Notas finais / Referências
Jonas Reis de Castro, Press conference “ClimaInfo Institute: The Beginning of the End of the Fossil Fuel Era at COP30”, 14 nov. 2025.Trechos traduzidos da transcrição
Melva Patricia Gualinga, Amazon Watch: Amazon Free from Extraction: Ending Oil, Gas, Mining & Agribusiness on Indigenous Lands.Trechos traduzidos da transcrição.
Oil Change International, Press Conference on Fossil Fuel Shipments to Israel, 13 nov. 2025. Falas sobre uso do petróleo no genocídio.
Leandro Lanfredi, Federação Nacional dos Petroleiros (FNP).Falas sobre responsabilidade da Petrobras e exportações indiretas para Israel.
Avril De Torres, CEED, Fossil fuels and biodiversity, 17 nov. 2025.
Entrevista exclusiva com Avril De Torres e Klara Butz, 17 nov. 2025.
Helder Barbalho, e outras falas na Aldeia COP, 18h, 18 nov. 2025.




















































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