A determinação silenciosa das tartarugas
- Mirna Wabi-Sabi
- há 4 dias
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Texto por Mirna Wabi-Sabi, fotos por Fabio Teixeira
Tartarugas são criaturas majestosas. Por diversos motivos, elas se tornaram ícones da longevidade. Primeiramente, elas sobreviveram o evento que causou a extinção em massa dos dinossauros. Hoje, elas podem viver por mais de um século. Podem viver, não – deveriam poder viver. A civilização humana está essencialmente por trás de tudo que as ameaça. Poluição de diversos tipos, empreendimentos imobiliários, tráfego marítimo, pesca industrial, elevação do nível do mar e eventos climáticos extremos causados pelo aquecimento global, perda de habitat, erosão de solos praianos e o dano inimaginável dos vazamentos de petróleo nos oceanos parecem ser mais avassaladores do que um cometa ou asteroide gigantesco atirado contra a Terra.
Durante milhares de anos, civilizações humanas em todos os continentes têm adorado a figura da tartaruga. Mais de 35 mil anos atrás ela já era venerada no cerne da Ásia Ocidental (o Levante), sendo considerada o símbolo religioso mais antigo em uma das sociedades mais antigas da nossa história. E até mero meio século atrás, a América do Norte era conhecida como a Ilha da Tartaruga por povos indígenas locais.
A deterioração da mitologia, lenda e folclore centrados em entidades da natureza é recente, mas perdem espaço ferozmente para os que centram as grandes indústrias e empreendimentos globais. O paradigma cultural que surge com a industrialização não parece se preocupar com a longevidade humana ou mais-que-humana, e isso não pode permanecer realidade.
Na praia de Itaipu, em Niterói–RJ, o projeto Aruanã há 15 anos monitora tartarugas marinhas no entorno da Baía de Guanabara. Para as biólogas, colaboradores, voluntários e apoiadores deste projeto, está claro que a prosperidade das tartarugas é inseparável da prosperidade humana. Esse animal exerce um papel amplo no equilíbrio do ecossistema natural desse planeta, do qual nós fazemos parte e dependemos para sobreviver. Ou seja, o declínio da tartaruga como espécie desencadeia uma sequência de danos nos ecossistemas marinhos, que por sua vez prejudicam a nossa subsistência.
Diversas coisas podem ser feitas para proteger as tartarugas além de denunciar e demandar que grandes indústrias parem de poluir e destruir o habitat delas. Para indivíduos como nós, sem posições de total poder de decisão em multinacionais e corporações, é possível reduzir o consumo de plástico, e quando há consumo dele, reciclar, para garantir que esse resíduo não acabe nos oceanos. A sede do projeto Aruanã em Itaipu recebe embalagens descartáveis limpas de plástico reciclável e esponjas usadas para garantir que o destino desses resíduos não cause danos futuros nos oceanos.
Uma iniciativa ainda mais simples e acessível para a população geral é o que o Aruanã chama de “Ciência Cidadã.” Ao observar uma tartaruga em algum lugar, viva ou morta, você pode tirar uma foto e enviar para eles com local, data e horário. Com esses dados, a equipe da organização monitora o ciclo de vida dessas criaturas, assim identificando desafios e obstáculos que elas enfrentam para completar esse ciclo.
Esse ano, o Aruanã renovou seu contrato de financiamento com o Programa Petrobras Socioambiental, e poderá dar início a um novo projeto – o de rastreamento de tartarugas marinhas por satélite (Telemetria Satelital). Com essa tecnologia, será possível acompanhar os padrões migratórios de diversas tartarugas com precisão e eficácia. Para as biólogas do projeto, é sempre emocionante quando uma tartaruga é encontrada novamente, anos depois, numa região distante de onde ela foi primeiramente registrada. Não só porque as chances são pequenas de as encontrar nos vastos oceanos, mas também porque é gratificante ver e registrar evidência de sua prosperidade.
Hoje, a identificação de tartarugas pode ser feita pelo número em suas tags, ou pelo desenho das escamas em suas cabeças, que exercem a função de impressões digitais. Com Telemetria Satelital, dados preciosos podem ser coletados sobre locais e temperaturas preferidas das tartarugas, e como essas regiões interagem com o comportamento humano. Para a tartaruga-verde, por exemplo, que conforme o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade “é a única espécie que se reproduz nas ilhas oceânicas brasileiras,” evidências científicas irrefutáveis podem ser registradas sobre elas. Essas evidências podem, por sua vez, ser usadas para “facilitar o estabelecimento de acordos multinacionais para a conservação.” Sabemos que alcançar acordos, como os que serão discutidos na COP30 em Belém, e garantir que eles sejam cumpridos no nível institucional e global são desafios esmagadores, por isso cumprir acordos entre nós mesmos e nossas comunidades é um primeiro passo alcançável.
Os oceanos não se submetem ao desejo das indústrias, ou das restrições de fronteiras estatais. O que acontece neles é responsabilidade de toda a humanidade. Como membros dessa humanidade, temos o poder ajudar a forjá-la. Enfrentar ameaças antropogênicas aos locais cruciais no ciclo de vida de animais como a tartaruga não só é salubre para a humanidade, é também fundamental para não desencadearmos nosso próprio evento de extinção em massa.
O projeto Aruanã faz um trabalho detalhado de coleta e sistematização de dados, desenvolvimento de pesquisas acadêmicas na área de biologia marinha e sustentabilidade, e também de engajar a população local no que eles chamam de “preocupação ambiental relacionada ao ambiente marinho.” Se ‘preocupar’ nada mais é do que fomentar uma narrativa coletiva, comunitária, que visa estimular a prosperidade da flora e fauna no nosso canto do planeta, também porque somos parte dessa fauna. Os avanços tecnológicos e econômicos que testemunhamos nesse último século não precisam se tornar apenas uma fonte de aniquilação ambiental, onde o consumo e descarte só aumentam infinitamente, sem visão de impactos no longo termo. Se a tartaruga nos ensina algo, é que a longevidade é alcançada em pequenos passos decisivos. E todos os dias fazemos escolhas impactantes.
Os “Objetivos do Desenvolvimento Sustentável” (ODS) da ONU, especialmente o ODS 14 – “Vida na Água” –, reforçam a urgência de conservarmos e engajarmos com os oceanos de forma sustentável ao longo termo. A proteção das tartarugas marinhas se insere nesse esforço global, nos lembrando que não há futuro possível para os humanos sem o bem-estar ecológico. Projetos como o Aruanã demonstram que, mesmo diante de desafios globais avassaladores, ações locais e cotidianas são fundamentais e eficazes. A tartaruga simboliza a necessidade de desacelerar o consumo, refletir e agir com responsabilidade, sem perder de vista que a mudança é feita, sobretudo, por aqueles que insistem em trilhar o caminho da preservação da natureza. Ao proteger as tartarugas, estamos, na verdade, defendendo a possibilidade de um futuro saudável para todos, onde a natureza possa existir em equilíbrio. Que a humanidade se inspire a seguir a mesma determinação silenciosa das tartarugas, rumo a um planeta mais saudável e digno.
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