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  • Mirna Wabi-Sabi

Será que o PL das Fake News realmente combate a desinformação?

Atualizado: 20 de out. de 2023



O PL das Fake News é um assunto polarizante. Desinformação permeia o universo digital, e as opiniões tendem a ser a favor da lei na esquerda, ou contra na direita. Para ir além da política binária e ao mesmo tempo não acabar no ‘centrão’, podemos afirmar que fake news é um problema sério e podemos questionar até que ponto essa lei é eficaz, aplicável, e duradoura para combatê-las.

Será que ela realmente resolve o problema de desinformação nas redes?

Vale lembrar que muitas vezes a lei é deliberadamente vaga para que sua interpretação possa ser flexível. Isso coloca bastante poder nas mãos de advogados e advogadas, e em suas habilidades argumentativas. Portanto, pessoas que não tem acesso a profissionais jurídicos com vasta experiência, conhecimento e tempo, saem em desvantagem.

Questões que o PL das Fake News aborda vagamente

— Como identificar contas inautênticas “sem prejuízo da garantia à privacidade” e sem coletar ainda mais dados dos usuários? Quais critérios são usados para identificar se uma conta foi “criada ou usada com o propósito de disseminar desinformação”?

Definir propósito pode ser extremamente arbitrário, e requer uma investigação detalhada e motivo para provocar essa investigação. Um ativista que usa pseudônimo pode ser impossível de distinguir de um troll bolsonarista sem julgar apenas a natureza da opinião que cada um compartilha nas redes. Distinguir uma opinião de desinformação requer senso crítico de todas as pessoas, não só de profissionais jurídicos ou funcionários de empresas de tecnologia.

— Quais ferramentas serão usadas para garantir que não haverá “restrição ao livre desenvolvimento da personalidade individual, à manifestação artística, intelectual, de conteúdo satírico, religioso, ficcional, literário ou qualquer outra forma de manifestação cultural”?

Se houvesse uma lista de coisas que distinguisse uma conta ‘inautêntica’ de uma conta satírica, ou ‘desenvolvimento intelectual’ de descarada disseminação de desinformação, os inautênticos e descarados teriam um manual de como se comportar, enquanto ‘satíricos’ e ‘intelectuais’ migrariam para outras plataformas de disseminação de informação. Talvez por isso uma lei raramente consegue ser específica o suficiente para ser eficaz, e vaga o suficiente para ser interpretada em diversos contextos.

— Quais são os métodos de “verificações provenientes dos verificadores de fatos independentes com ênfase nos fatos”? Como se executa “uma verificação criteriosa de fatos” e como serão selecionadas as pessoas jurídicas com a função de verificar os fatos?

O uso excessivo da palavra fato não te aproxima dele, possivelmente até te afasta. Na ciência se entende que um fato existe num contexto, e ele pode e deve ser a qualquer momento questionado. Um fato provavelmente se resume a uma evidência que encontra um certo nível de consenso, um consenso que pode ser a qualquer momento revogado, porque como contextualizamos e interpretamos esses fatos é passível de erro humano. Não existe um grupo de pessoas jurídicas que possa exercer a função de definir fatos no universo da internet. O que podemos fazer é ter o senso crítico para identificar ferramentas de manipulação, ausência de fontes, especulação, conflitos de interesse, etc.

— O que constitui um uso das plataformas incompatível com o uso humano? Qualquer ferramenta de agendamento de postagens é considerada um ‘disseminador artificial’?

Disseminadores artificiais podem facilitar o trabalho de profissionais de comunicação e mídia. Um dos truques de empreendedorismo é “ache o que funciona, e o automatize”. Se você, por exemplo, entrou numa loja virtual, colocou algo no carrinho e saiu sem comprar, uma mensagem automática da loja pode aparecer na sua caixa de entrada te lembrando do produto que você deixou lá. E-mails e posts automatizados são normas na indústria virtual, e é existencial se perguntar qual é o número que desenha a linha entre uma automatização humana e desumana.

O custo para os “provedores de aplicação”

De acordo com essa lei, nós não poderemos participar de grupos de WhatsApp ou Telegram com mais de 256 pessoas, ou encaminhar alguma mensagem para mais do que 5 pessoas. Em período eleitoral, o encaminhamento se limita uma pessoa ou grupo. Isso porque o WhatsApp e o Telegram têm mais de 2 milhões de usuários no Brasil.

Em resposta, o Telegram enviou uma mensagem bilíngue aos seus usuários anteontem acusando o Projeto de Lei de censura, entre outras coisas. Ontem, eles comunicaram que receberam “uma ordem do Supremo Tribunal Federal que obriga o Telegram a remover [a] mensagem anterior sobre o PL 2630/2020 e a enviar uma nova mensagem aos usuários” dizendo que ela “caracterizou FLAGRANTE e ILÍCITA DESINFORMAÇÃO”.

Ao analisar o primeiro comunicado do Telegram, nada mais vejo do que uma empresa tentando se proteger financeiramente, apesar de não mencionar isso diretamente. O tribunal também não menciona o âmbito financeiro desse debate, mesmo sendo claro que a grande motivação dessas empresas é o lucro – o debate político-eleitoral só se enquadra como prioridade quando afeta essa motivação econômica primordial. Não tem como essa lei não custar esses “provedores de aplicação” muito dinheiro, em termos de mão de obra de programação e monitoramento, e de potencial perda de usuários.

A realidade é que, quem sair dessas plataformas de mídia social por não poder amplamente disseminar conteúdo duvidoso achará outro veículo – qualquer outro veículo, como vemos acontecer em toda a história das grandes mídias.

O comunicado não é desinformação, é uma interpretação da lei da perspectiva de um agente com um óbvio conflito de interesse. É uma coisa muito séria nós não conseguirmos distinguir entre opiniões divergentes, desinformação, e fake news. Nem toda desinformação é fake news, e nem toda a opinião de pessoas e instituições que disseminam certas narrativas por interesse próprio se iguala a desinformação. Se o governo começar a usar esse termo para descrever tudo que se opõe a ele, provavelmente encontraremos algo parecido com o totalitarismo.

O que precisamos não é de um governo ou conjunto de profissionais jurídicos com o poder de decisão sobre o que é verdade e fato. O que precisamos é de uma população com acesso a recursos de saúde e educação para desenvolver um senso crítico. Será que essa lei realmente estimula o senso crítico da população, ou visa apenas tomar parte do poder que empresas de tecnologia têm sobre a população? Ou pior, nada mais é do que a politicagem de um governo querendo demonstrar grandes esforços sem intensão de mudanças estruturais?

Sempre que nos deparamos com conteúdos online, temos a oportunidade de analisar esse conteúdo, fazer questionamentos e refletir. Esse processo requer estímulo, treinamento e acesso a conhecimentos diversos, que vão além de posts em particular, como fake news. Conhecimento sobre como fontes de informação são acessadas, como estratégias de comunicação são desenvolvidas, e até como websites funcionam, pode fazer toda a diferença para uma pessoa desenvolver um senso crítico sobre o que ela vê online. Uma lei não consegue preencher o abismo causado pela desigualdade milenar entre a minoria que controla a narrativa, e a maioria que a consome. A democratização do controle da narrativa será conquistada por meio de uma completa reestruturação da distribuição de recursos na sociedade, e não por meio de uma disputa entre agentes que já detém poderes monumentais.

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Escrito por Mirna Wabi-Sabi, diretora e editora-chefe da Plataforma9.
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