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Lula e os Yanomami: alvoroço por fotos no Brasil

Updated: Oct 20, 2023


Amazônia Real, Ouro de sangue Yanomami. Vista aérea da região do rio Mucujaí na Terra Indígena Yanomami (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).
Amazônia Real, Ouro de sangue Yanomami. Vista aérea da região do rio Mucujaí na Terra Indígena Yanomami (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).

Duas situações causaram grande alvoroço no Brasil esse mês, ambas envolvendo fotos.

A primeira é uma imagem de dupla exposição de Lula com vidro quebrado apontando para seu coração. A outra de uma mulher Yanomami que morreu de desnutrição grave. Debates que costumavam ser direcionados à dicotomia Lula/Bolsonaro voltaram-se para dentro, dentre os esquerdistas, sobre como lidar com as crises políticas pós-vitória.

Muitas pessoas ficaram horrorizadas com a foto de Lula na capa da Folha de São Paulo, alegando que incita a violência contra ele. O vidro estilhaçado era do ataque de 8 de janeiro, e a composição artística de uma renomada fotógrafa de esquerda foi duramente criticada por ser muito duvidosa em uma paisagem onde a maioria sente não haver espaço para nuança.

Para mim, a foto retrata uma cena à prova de balas, onde houve uma tentativa frustrada de destruir sua presidência, e ele sai sorrindo vitorioso entre as ruínas. Mas para outros, a possibilidade de promover violência contra o presidente, como se alguém devesse atirar em seu coração, era suficiente para promover violência contra a própria fotógrafa. Ela foi alvo de uma multidão online até que uma cena mais problemática surgiu.

folha de são paulo, LULA

Sinceramente, desde as primeiras notícias do que aconteceu com o povo do território Yanomami, não consegui ler nada a respeito porque não aguentava olhar as fotos que acompanhavam os textos. As mídias ficaram infestadas de imagens não apenas de um crime, mas de vítimas do que está à beira do genocídio. O compartilhamento dessas imagens foi justificado como evidência necessária, mas isso nunca me convenceu. Em processos judiciais envolvendo crianças, a evidência visual não é divulgada (está em sigilo). Na maioria das vezes, os testemunhos são suficientes. Desde o início, utilizar as imagens me parecia desumano.

Agora que uma das mulheres dessa comunidade morreu de desnutrição, lideranças Yanomami estão pedindo que as pessoas parem de compartilhar sua imagem em uma demonstração de respeito à tradição Yanomami. Ainda assim, certas pessoas argumentam contra, dizendo que essa imagem tem que ser compartilhada na internet como prova, como se a internet fosse o grande fórum onde a justiça é feita através da exposição de pessoas marginalizadas violentadas.

As imagens de crianças Yanomami desnutridas nunca foram toleráveis ​​para mim, e é intolerável que para alguns, a essa altura, elas ainda sejam necessárias como prova do que o governo brasileiro faz esses povos passarem. Isso ressoa muito com o que a brilhante professora e jornalista Allissa V. Richardson diz sobre pessoas pretas e a necessidade de evidências midiáticas para a violência racista perpetrada contra afro-americanos. Ela diz:

“Gostaria de chegar ao ponto em que não precisamos dos vídeos para acreditar nos negros [...] Por que os negros são solicitados a produzir essas filmagens para meio que pré-litigar o fato de que eles não mereciam suas próprias mortes?”

Quando se trata do tema 'dar testemunho' da brutalidade racista, negros e nativos encontram um terreno comum no uso da mídia. Considerando as centenas de anos de colonização, o que as pessoas achavam que os ativistas dos direitos indígenas têm lutado contra? Acharam que não era tão ruim assim, então eles precisavam de evidências fotográficas de quão ruim tem realmente sido? Será que acham que isso é o ápice? Ou, será que só precisam de mais um motivo para continuar culpando Bolsonaro por tudo de ruim que já aconteceu no Brasil?

Amazônia Real, Ouro de sangue Yanomami. Grande área de garimpo conhecida como "Tatuzão" na região do rio Uraricoera na Terra Indígena Yanomami (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).
Amazônia Real, Ouro de sangue Yanomami. Grande área de garimpo conhecida como "Tatuzão" na região do rio Uraricoera na Terra Indígena Yanomami (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).

Os povos indígenas sofrem ataques atrozes, lidam com fome e assassinato por centenas de anos, a fração que sobreviveu ainda está suportando esse paradigma, e os últimos 4 anos não são os únicos responsáveis ​​pelas injustiças que esses povos enfrentam — são responsáveis por permitir que negócios continuem como de costume. Os Yanomami lidam com a questão do número absurdo de garimpeiros invadindo suas terras desde pelo menos a década de 70. Há doença, desnutrição e massacres desde então, até mesmo um genocídio declarado em 1993...

Se foram necessárias essas imagens em 2023 para que alguém percebesse as condições de vida desumanas e indignas a que os nativos são submetidos, não prestaram atenção. E certamente não é responsabilidade dos Yanomami abrir uma exceção em seu modo de viver (ao lidar com a morte) para atender à necessidade de um tapa na cara de pessoas não nativas. Se assim fosse, não seria apenas uma extensão da desumanização imposta a eles?

Também me pergunto qual é o objetivo de justapor imagens dos Yanomami com imagens históricas de sobreviventes do Holocausto. Se isso é uma tentativa de enfatizar o quão violento é o que está acontecendo com os nativos, é totalmente inadequado e anacrônico, porque o que está acontecendo no Brasil está acontecendo há muito mais tempo e com muito mais pessoas do que aconteceu na Alemanha nazista. E o mesmo vale para fazer o paralelo com as crianças desnutridas da África subsaariana, como se o Brasil devesse estar acima disso, quando, na verdade, é uma tragédia que isso esteja acontecendo em qualquer lugar por qualquer motivo.

Será que quando pensamos nas centenas de anos de genocídio perpetrado contra indígenas e africanos no Brasil, isso não tem o mesmo peso do que aconteceu na Europa, com os europeus? Então, pegamos algo muito mais antigo e maior, como o genocídio colonial, e tentamos encaixá-lo em uma narrativa eurocêntrica. Dessa forma, talvez, as pessoas o vejam como mais inaceitável e, portanto, garantam que nunca mais aconteça.

Sim, queremos que o genocídio dos indígenas acabe e que nunca mais aconteça. Os indígenas têm lutado por isso pelo menos desde um século antes da Segunda Guerra Mundial. Se isso não é resiliência, não sei o que é.

Talvez seja por isso que não suporto essas imagens sendo usadas como prova. Porque elas são usadas ​​como evidência de um grupo de pessoas frágil e derrotado, quando na realidade não poderiam estar mais longe disso. Os Yanomami suportaram o inimaginável por centenas de anos — essa não é uma história de fraqueza, é uma história de poder, e devemos nos sentir muito honrados em estar ao lado deles e lutar por sua dignidade.

Diante desse cenário, Lula não parece tão vulnerável, duplamente exposto a vidros estilhaçados, sorrindo, ajeitando a gravata, não é? Ele está protegido por muito mais do que vidros à prova de balas, carros, coletes e ternos. Ele está protegido pela branquitude passageira, pelos mercados globais e seus superpoderes. No que diz respeito à sua carne, sangue e consciência, serão os Yanomami que o salvarão, e não o contrário, e eles merecem o mundo em troca disso.


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Mirna Wabi-Sabi é escritora, editora do site Gods and Radicals e fundadora da Plataforma9. Ela é a autora do livro Anarco-transcriação e produtora de outros títulos sob a imprensa P9.
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