Fernanda Young, em sua análise sobre o feminismo, ignorou variáveis que não a serviam em sua viajem pelo controverso de alto ibope.
]Este artigo foi publicado em fevereiro de 2020, no site da Inimiga da Rainha.]
Fernanda Young foi uma escritora e roteirista da Globo com seu marido. Ano passado [2019], ela faleceu inesperadamente, deixando três filhas e um filho. Esse ano [2020], me deparei com o livro dela de dois anos atrás, “Pós-F: Para além do masculino e feminino,” na Livraria Cultura em São Paulo, e me surpreendi com sua falta de tato em relação ao feminismo. Sua morte, mesmo sendo trágica, não pode se tornar uma oportunidade para ignorar seu legado problemático na construção de um pensamento coletivo Brasileiro onde o feminismo é difamado.
Fernanda Young foi uma Rainha que deturpou conceitos abordados por muitas Inimigas do sistema que vieram antes dela. No sistema patriarcal, o homem também sofre, e isso não quer dizer que vamos descartar o feminismo. Mulheres feministas negras abordam o tema dos homens sofrerem neste sistema há décadas. Porém, eu diria que ‘homens sofrem também’ é usado para descartar o feminismo da mesma forma que ‘brancos são pobres também’ é usado para descartar o racismo.
A escrita de Young é gostosa, mas a linha de raciocínio é vergonhosa. Ainda bem que no prefácio ela admite: “Achava que deveria partilhar a minha liberdade, inclusive de falar merda — coisa para qual tenho uma técnica, e afeto.” Mas é muita merda mesmo.
Começando com: “O feminismo alimenta o machismo.” O machismo existia antes do feminismo, e se alimentava como? Vamos falar de todas as outras coisas que de fato alimentam o machismo? Como, por exemplo, muitos programas de TV…? Se não, nos afundamos na lógica que leva muitos a serem contra a vacina porque já aconteceu [talvez] que causou autismo em alguém. Já aconteceu que uma mulher mentiu e levou alguém a rejeitar o feminismo? Provável. Mas isso explica o machismo? Não. Isso justifica ignorar e rejeitar todos os exemplos de como o feminismo já salvou muitas vidas? Também não.
Outro absurdo no livro dela é a transfobia. Para Young só existiam dois gêneros, e querer “mudar de sexo” era uma “precipitação,” porque a sexualidade não precisa disso — basta explorar melhor o seu corpo. É muita ignorância; está claro que ela se preocupou em escrever sobre pessoas trans sem nunca se preocupar em conversar com uma. Conversar e ouvir. Que editor passou o olho naquele capítulo e não se lembrou de avisar que sexualidade e identidade de gênero são coisas diferentes? Talvez tentaram em vão, recebendo a resposta: ‘Censura, jamais!’
E continua… Fernanda diz que já teve namorada e teve amigos gays, então homofobia não é a questão — se precisa ser falado, amigas, já deu ruim.
A nudez da mulher virou um tópico contorcido. Para Young, na arte ela deveria ser vista como empoderadora. Porque evidentemente a mulher é “mais bela e interessante” do que o homem. Não querer ser rotineiramente retratada de forma sexualizada não significa machismo internalizado e rejeição do feminino. Por outro lado, se você usa “biquíni enfiado na bunda” tem que esperar receber cantada, como se não fosse assédio, porque é mais vulgar do que a nudez. Essa conclusão vem da premissa de que a nudez é arte e biquininho é erótico, que nos traz a questão mal resolvida de classe. O corpo sofisticado merecedor de admiração, versus o corpo vulgar merecedor de erotização. Além de classismo, a branquitude do texto emana quando ela fala dos horrores de ter que participar de reuniões de condomínio e de sua revolta contra o trabalho doméstico.
Além disso, ela fez questão de dedicar um capítulo inteiro ao dado de que mulheres a assediavam mais do que homens, chamado “tudo agora é assédio.” A experiência pessoal de Young diz muito mais sobre ela do que sobre o comportamento dos outros. Será que ela contestaria os dados indicando que homens cis estupram e matam consideravelmente mais do que mulheres? Será que precisamos dos dados para saber que isso é verdade?
Estes questionamentos não cabem na linha reta de raciocínio em direção à deslegitimação do feminismo. Minha discordância não é uma agressão, mas uma defesa de uma luta que não é de uma minoria. Até concordo com as críticas ao #feminismo diluído no fluxo das redes sociais. Mas devemos estar atentos a conclusões baseadas em uma única premissa duvidosa. Fernanda Young, em sua análise sobre o feminismo, ignorou variáveis que não a serviam em sua viajem pelo controverso de alto ibope.
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