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Desperdício alimentar e emissões de metano

Updated: Oct 21, 2023

Versão original disponível na Modefica: "Desperdício Alimentar e Crise Climática: Estima-se que 8 a 10% das Emissões Estão Associadas a Alimentos Não Consumidos".
Fotos por Fabio Teixeira, da Plataforma9. Série "BRASIL COM FOME", 05/06/2022, varejão na Maré-RJ.
Fotos por Fabio Teixeira, da Plataforma9. Série "BRASIL COM FOME", 05/06/2022, varejão na Maré-RJ.

Reciclagem e plásticos de uso único são frequentemente debatidos na grande mídia no contexto de sustentabilidade ambiental. Enquanto isso, os combustíveis fósseis e a indústria da carne são apontados como fontes de emissões de gases de efeito estufa. O desperdício de alimentos parece ter ficado em segundo plano em ambas as discussões e, quando é abordado, é mais dentro da estrutura da moralidade do que do dano ambiental mensurável. Crianças são convencidas a terminar suas refeições com o argumento de que “há crianças morrendo de fome na África”, ou que não deve haver desperdício por causa do custo ambiental de produzir e transportar comida para a mesa. A pegada de carbono do desperdício alimentar está associada a outras indústrias insustentáveis, como embalagens, transporte e agricultura industrial – mas não só.

A diferença entre desperdício e perda alimentares é que a perda ocorre antes do alimento chegar à mesa do consumidor; em fazendas, armazenamento e transporte. O desperdício, por outro lado, está em nossos lixos. Porém, ainda não há bastante incentivo para coletar dados sobre ele. De acordo com o relatório de 2021 do Índice de Desperdício Alimentar da ONU:

“Estima-se que 8 a 10% das emissões globais de gases de efeito estufa estão associadas a alimentos que não são consumidos (Mbow et al., 2019, p. 200) – e, no entanto, nenhuma das Contribuições Nacionalmente Determinadas para o Acordo de Paris menciona o desperdício alimentar (e apenas 11 mencionam perda de alimentos) (Schulte et al., 2020).” (PNUMA, 2021, página 20.)

O desperdício alimentar é tão significativo para a discussão sobre sustentabilidade quanto a perda de alimentos – mais significativo se considerarmos que mitigar seus danos está ao alcance de qualquer pessoa com uma cozinha.


Emissões de metano:

Alimentos em decomposição em aterros liberam metano na atmosfera, totalizando 4,4 bilhões de toneladas de dióxido de carbono (GtCO2 eq) anualmente (PNUMA, 2021). Isso significa mais de 4 vezes as emissões globais de voos em 2018 (1,04 GtCO2, Our World in Data, 2020), 87% das “emissões globais de transporte em rodovias” (FAO, 2015) ou “32,6 milhões de carros em emissões de gases de efeito estufa” só nos EUA (WWF).

De todas as etapas da produção de alimentos que contribuem para as emissões de gases de efeito estufa, o consumo doméstico é a que tem a maior pegada de carbono. Quando adicionados, os resíduos da produção e armazenamento emitem aproximadamente a mesma quantidade de gases de efeito estufa que os do consumo sozinho. E nem todos os alimentos contribuem igualmente para essa pegada. Embora a carne, por exemplo, represente menos de 5% do desperdício total de alimentos, contribui com mais de 20% da pegada. Os vegetais ricos em amido (raízes), por outro lado, têm o efeito inverso, onde representam quase 20% do desperdício total, mas apenas 5% da pegada (FAO, 2015).

Foto Por Fabio Teixeira. Batatas no chão
Por Fabio Teixeira

Não é surpreendente que as regiões de alta renda do mundo desperdiçam mais alimentos do que as regiões de baixa renda, mesmo que os dados não sejam coletados sistematicamente em alguns países. Em países europeus e nos Estados Unidos, acontecia de supermercados jogarem água sanitária em mercadorias vencidas, levando a França a ser a primeira nação a proibir a prática em 2015, aprovando por unanimidade uma lei destinada a reduzir o desperdício de alimentos (Time, 2015). No entanto, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação assumiu, razoavelmente, uma “margem de progresso maior” para os países “em desenvolvimento” sobre o que pode ser alcançado na mitigação do desperdício alimentar até 2030 (FAO, 2015).

Poucas mudanças de comportamento necessárias para lidar com as mudanças climáticas sobrepõem a questão da pobreza e da pegada de carbono de forma tão flagrante. Uma mudança na forma como os alimentos são vendidos e consumidos pode combater a insegurança alimentar e reduzir as emissões de gases de efeito estufa ao mesmo tempo. Deveria ser inimaginável escolher o desperdício alimentar em vez de distribuir alimentos gratuitamente e compartilhar recursos de necessidades básicas. Se não temos influência significativa no comportamento da indústria alimentícia corporativa, pelo menos podemos fazer algo no âmbito de nossas próprias cozinhas (aqueles de nós que têm cozinhas).

O que podemos fazer para garantir que comida não acabe no lixo? Algumas das sugestões mais intuitivas são: evitar comprar demais, evitar cozinhar demais, armazenar adequadamente, congelar, priorizar conscientemente suas refeições com base no que vai expirar primeiro, compartilhar refeições com outras famílias/sua comunidade e compostar. Descartar restos de comida no ralo não é uma solução, porque além de afetar negativamente a vida selvagem, o material orgânico que sobra do tratamento de água pode acabar em aterros de qualquer maneira (Cary Institute, 2016).

A compostagem é a melhor solução para descartar alimentos não comestíveis porque o metano é produzido “por micróbios na ausência de oxigênio”, e o processo de compostagem é aeróbico, ou seja, envolve/exige oxigênio (Government of Western Australia, 2021). Muitos acreditam que a compostagem não é possível num ambiente urbano, mas esse não é o caso. Quando executado corretamente, o processo pode ser feito em locais pequenos com o mínimo de odor (isto é, quando uma iniciativa comunitária não é realista). Pode até ser feito com papelão, o que reduz consideravelmente a quantidade de lixo produzido numa casa ao descartar resíduos orgânicos e reciclar papel ao mesmo tempo (Conserve Energy Future).

Viver e lidar com os próprios resíduos ajuda a incentivar os membros de uma família a produzir menos resíduos em primeiro lugar. E não estaríamos descrevendo uma imagem realista da questão da gestão do desperdício de alimentos se não reconhecêssemos a natureza interseccional de como muitas famílias ​​operam. Os papéis de gênero ainda são um fator na maioria das famílias, e as tarefas domésticas caem desproporcionalmente sobre as mulheres, assim como trabalhadoras domésticas são majoritariamente mulheres (OIT).

Um estudo recente do Reino Unido revela que a pandemia exacerbou a desigualdade de gênero nas tarefas domésticas, pois as mulheres mantiveram seu nível de “envolvimento no trabalho doméstico e nos cuidados com as crianças” do período de isolamento social depois que voltaram ao trabalho, enquanto os pais não (Pesquisa Demográfica, 2022). Nesse sentido, qualquer solução para minimizar o desperdício alimentar deve envolver o interesse, a compreensão e as ações de todos os indivíduos do domicílio após seus anos pré-escolares.

“Resolver problemas, ser criativo e obter resultados por … esforços” é algo que pessoas tão jovens quanto alunos do ensino fundamental devem experienciar (Crianças Saudáveis), especialmente quando se envolve uma prática humana tão indispensável e habitual – comer.

“Vários estudos destacam que, se as tendências alimentares atuais forem mantidas, isso pode levar a emissões significativas de mudanças climáticas da agricultura de aproximadamente 20 GtCO2-eq por ano até 2050.” (FOA, 2020)

Claramente, há um problema a ser resolvido, níveis mínimos de criatividade são necessários para a solução, e nossos esforços podem não apenas ter resultados mensuráveis, mas também podem melhorar a saúde de nossas famílias, das nossas comunidades e do nosso planeta.

Fotos Por Fabio Teixeira. Tomates no chão.
Por Fabio Teixeira

Glossário

CO2: Dióxido de carbono.

CO2e: Todos os gases de efeito estufa.

Desperdício Alimentar: Ocorre após o alimento chegar ao consumidor, quando é descartado.

Gases de efeito estufa: Dióxido de carbono (CO2); Metano (CH4); Óxido nitroso (N2O); Gases industriais — Hidrofluorocarbonetos (HFCs) Perfluorocarbonos (PFCs) Hexafluoreto de enxofre (SF6) Trifluoreto de nitrogênio (NF3). (EIA, 2021)

GtCO2 eq: Dióxido de carbono equivalente (CO2eq) significa uma unidade baseada no potencial de aquecimento global (GWP) de diferentes gases de efeito estufa (Climate Policy Info Hub).

GtCO2: Um bilhão de toneladas de dióxido de carbono. (Law insider) GWP 1 (Ecométrica).

GWP: Potencial de aquecimento global.

Metano: “1kg de metano causa 25 vezes mais aquecimento ao longo de um período de 100 anos em comparação com 1kg de CO2 e, portanto, metano [tem] um GWP de 25”. (Ecometria). “O metano é emitido durante a produção e transporte de carvão, gás natural e petróleo. As emissões de metano também resultam da pecuária e outras práticas agrícolas, uso da terra e pela decomposição de resíduos orgânicos em aterros municipais de resíduos sólidos” [ênfase da autora] (EPA, 2022).

Pegada de carbono: A quantidade total de gases de efeito estufa emitidos por uma ação (Nature Conservancy).

Perda Alimentar: Ocorre na etapa de produção da indústria alimentícia; nas fazendas, no processamento e no transporte.


Bibliografia

Cary Institute (2016) “Stop putting food waste down the drain” <https://www.caryinstitute.org/news-insights/podcast/stop-putting-food-waste-down-drain>.

Climate Policy Info Hub <https://climatepolicyinfohub.eu/glossary/co2eq>.

Conserve Energy Future. “Is Cardboard Compostable?” <https://www.conserve-energy-future.com/is-cardboard-compostable.php>.

Crianças Saudáveis, Healthy Children <https://www.healthychildren.org/English/ages-stages/Pages/default.aspx>.

Ecometrica <https://ecometrica.com/assets/GHGs-CO2-CO2e-and-Carbon-What-Do-These-Mean-v2.1.pdf>.

EIA, U.S. Energy Information Administration (2021) <https://www.eia.gov/energyexplained/energy-and-the-environment/greenhouse-gases.php>.

EPA, U.S. Environmental Protection Agency (2022) <https://www.epa.gov/ghgemissions/overview-greenhouse-gases>.

FAO, Food and Agriculture Organization of the United Nations (2015) <https://www.fao.org/3/bb144e/bb144e.pdf>.

FAO, Food and Agriculture Organization of the United Nations (2020) <https://www.fao.org/3/ca9692en/ca9692en.pdf>.

Government of Western Australia, Department of Primary Industries and Regional Development (2021) <https://www.agric.wa.gov.au/climate-change/composting-avoid-methane-production>.

Law Insider <https://www.lawinsider.com/dictionary/gtco2>.

Nature Conservancy <https://www.nature.org/en-us/get-involved/how-to-help/carbon-footprint-calculator/>.

OIT, International Labour Organization, ILO <https://www.ilo.org/global/topics/domestic-workers/WCMS_209773/lang--en/index.htm>.

Our World in Data (2020) <https://ourworldindata.org/co2-emissions-from-aviation>.

Pesquisa Demográfica, Demographic Research (2022) “Gender inequality in domestic chores over ten months of the UK COVID-19 pandemic: Heterogeneous adjustments to partners’ changes in working hours” <https://www.demographic-research.org/volumes/vol46/19/46-19.pdf>.

PNUMA. United Nations Environment Programme, UNEP (2021) Food Waste Index report <https://wedocs.unep.org/handle/20.500.11822/35280>.

Time (2015) “French Parliament Unanimously Approves Law to Cut Food Waste” <https://time.com/4146012/france-food-waste-law>.

WWF <https://www.worldwildlife.org/stories/fight-climate-change-by-preventing-food-waste>.


Bios

PLATAFORMA9 é um coletivo de mídia e editora de livros — com sede em Niterói — que publica artigos, traduz, oferece cursos de alfabetização midiática e publica livros de bolso bilíngues.

MIRNA WABI-SABI é escritora, editora, e tradutora. Ela é editora na Gods and Radicals Press e editora-chefe da Plataforma9.

FABIO TEIXEIRA é fotojornalista e documentarista no Rio de Janeiro. Já trabalhou para The Guardian, Folha de São Paulo, Cruz Vermelha internacional, UNICEF, entre outros.

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