Guerra no Rio: a desigualdade de visibilidade e proteção legal entre mortos de uma operação policial
- plataforma9

- 29 de out.
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Atualizado: 30 de out.
"Segundo normas internacionais de direitos humanos, às quais o Brasil está juridicamente vinculado, toda morte ocorrida em operações de segurança deve ser registrada, investigada e acompanhada de identificação completa das vítimas."

No dia 28 de outubro de 2025, mais de 119 pessoas foram mortas no Rio de Janeiro, na operação policial mais letal da história do Estado. A facção retaliou com drones, explosivos e barricadas. O número de mortos, o ambiente em favelas densamente povoadas, e o fato de muitos mortos ainda sem identificação completa geram questionamentos sobre como, quem, e em que circunstâncias morreram. Entes perdidos foram negados a presença de familiares e a perícia, amarrados com cordas náuticas e transportados em caminhonetes para o hospital Getúlio Vargas, e de lá, para o Instituto Médico Legal.
O fato de apenas os policiais serem nomeados evidencia desigualdade de visibilidade e proteção legal entre mortos de uma operação, influencia a narrativa midiática e levanta questões sérias sobre direitos humanos, justiça e ética jornalística. Ao serem nomeados oficialmente, os policiais mortos são imediatamente reconhecidos como vítimas pelo Estado, o que garante às suas famílias acesso rápido a pensões, indenizações e assistência jurídica — benefícios que são negados às famílias dos mortos não identificados.
Os problemas éticos, legais e políticos de chamar mortos anônimos de 'bandidos'
A presunção de culpa sem julgamento
Quando uma pessoa é chamada de bandido após uma operação, está se atribuindo culpa sem processo legal. Mas no Estado de Direito, ninguém deve ser considerado culpado até se provar o contrário. Em muitas dessas operações, as mortes ocorrem sem que haja prisão, investigação ou julgamento — logo, é impossível afirmar quem eram de fato os mortos.
O apagamento da humanidade dos mortos
Reduzir dezenas de pessoas a bandidos é uma forma de desumanização. Os mortos deixam de ser reconhecidos como cidadãos, pais, filhos, irmãos ou moradores de comunidades, e passam a ser uma categoria abstrata e descartável. Isso facilita a aceitação social da violência policial e o silêncio sobre execuções sumárias.
O reforço de desigualdades sociais e raciais
Na prática, o termo “bandido” costuma recair sobre corpos negros e pobres das periferias. Essa generalização legitima a morte seletiva de certos grupos sociais. Ou seja, a palavra não é neutra, ela faz parte de uma estrutura de poder que naturaliza a violência do Estado sobre determinados territórios.
A transparência e a responsabilização prejudicada
Enquanto as autoridades chamam os mortos de “criminosos,” raramente há investigação independente. Isso bloqueia a busca por responsabilidade policial, impede a identificação das vítimas e infringe leis internacionais de direitos humanos.
A opinião pública moldada
A linguagem molda a percepção social. Quando a imprensa ou o Estado usa “bandidos” para descrever apenas um lado dos agentes de violência urbana, o público tende a aceitar massacres como operações legítimas, mesmo sem provas ou contexto. Isso cria uma narrativa de guerra, em que certos cidadãos são tratados como inimigos do povo.
Segundo normas internacionais de direitos humanos, às quais o Brasil está juridicamente vinculado, toda morte ocorrida em operações de segurança deve ser registrada, investigada e acompanhada de identificação completa das vítimas. Essa obrigação consta no Protocolo de Minnesota da ONU (2016), nos Princípios Básicos da ONU sobre Uso da Força (1990) e na Convenção Americana de Direitos Humanos (OEA). Esses documentos determinam que, em qualquer operação estatal, é ilegal classificar pessoas mortas como “não identificadas” sem investigação formal e sem notificação às famílias. Para o direito internacional, cabe ao Estado garantir transparência.
Até o fechamento desta nota, a operação no Rio não cumpre esses requisitos. Não há boletim público nominal das vítimas, nem relatório oficial de circunstâncias das mortes, o que pode se qualificar como descumprimento de tratados assinados e possível configuração de execução extrajudicial, caso não haja investigação independente.
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Corpos na Praça
Dia 29 de outubro de 2025
Moradores do Complexo da Penha resgataram pelo menos 50 corpos da Serra da Misericórdia na madrugada do dia 29 de outubro, e os colocaram na Praça São Lucas. Lá, familiares tentaram reconhecer seus entes antes do IML os recolher.
Quando moradores são forçados a resgatar corpos por conta própria, os empilhar numa praça pública e improvisar uma espécie de identificação coletiva antes da chegada do Estado, há evidência de que o Estado produz morte para manter dominação. Ele não tem comprometimento com a vida da população que considera paralela e inimiga, agindo com brutalidade para 'reconquistar território.'
O Estado busca 'reconquistar território' e negar direitos a quem vive nas margens não porque esses territórios sejam uma ameaça à sociedade, mas porque eles representam uma ameaça ao modelo de poder e controle sobre a sociedade.
Guerra como método de disciplina social
Cada operação cumpre uma função estratégica de:
– Impedir a mobilização coletiva, reprimindo lideranças comunitárias e criminalizando qualquer organização autônoma;
– Fragmentar redes de solidariedade, produzindo desconfiança e sabotando iniciativas coletivas;
– Instalar trauma e medo, usando o terror como método para paralisar a ação política;
– E legitimar a ocupação policial permanente, transformando as periferias em zonas de exceção onde direitos são suspensos e a presença militar é normalizada.
Essa engrenagem mantém territórios pobres e racializados sob vigilância e submissão, inviabilizando resistência social e assegurando a continuidade do interesse econômico e político que depende dessa estrutura de opressão. As instituições governamentais criam condições para a extração econômica e o controle político dessas populações, ao neutralizar conflitos de classe e proteger a circulação do capital.
O que aconteceu no Complexo da Penha nessa madrugada vai além de uma tragédia humanitária. É uma declaração do real interesse das instituições governamentais, que atuam não para proteger vidas, mas para administrar a morte e lucrar ao negar direitos a quem vive nas margens.
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Escrito por Mirna Wabi-Sabi
Fotografado por Fabio Teixeira
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[Nota editorial: Número de vítimas atualizado.]












































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