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Por Mirna Wabi-Sabi
Originalmente publicado na Le Monde Diplomatique
Estrelando Wagner Moura, o filme sinaliza que, mesmo repleta de armas militares pesadas, a narrativa revela-se o elemento mais mortal da história
Este mês, o filme Guerra Civil estreou nos cinemas com uma mensagem de nuança, mas clara: a “América” como nós a conhecemos pode, muito bem, chegar ao fim em breve. A escalação da estrela brasileira Wagner Moura é calculada, destacando a ambiguidade e a complexidade das relações raciais nos EUA. O personagem brilhantemente aterrorizante de Jesse Plemons coloca uma questão real ao personagem de Moura quando confrontado com a informação de que eles são “jornalistas americanos”, questionando “que tipo de americano você é, centro, sul?” Não é fácil colocar os brasileiros na narrativa norte-americana sobre o que são os “latinos”. Sendo a população não-hispânica mais substancial da América do Sul, tudo o que um supremacista “americano” precisa saber é que não somos brancos. A narrativa, porém, é uma arma de guerra poderosa, se não a mais poderosa de todas.
Há tremenda violência física no filme, como é esperado na guerra. Isso sinaliza duas coisas. Uma delas é: qual é a sensação de testemunhar o horror da guerra, que está atualmente em curso no mundo, mas em vez disso em solo estadunidense? E a segunda é que, mesmo repleta de armas militares pesadas, a narrativa revela-se o elemento mais mortal.
A população dos Estados Unidos está dessensibilizada à brutalidade daquilo que o seu governo endossa e perpetra em outros países. Não é horrível testemunhar a destruição de tudo o que você ama? Ver entes queridos morrerem, as suas instituições mais poderosas tornarem-se obsoletas e o seu futuro ser interrompido; é isso que este filme explora.
O mais interessante é que o filme explora a dificuldade de abraçar uma narrativa coerente que explique toda essa aniquilação, ou que de alguma forma justifique o derramamento de sangue. Enquanto o presidente continua a espalhar falsidades ao público, soldados supremacistas desprezam (e matam) qualquer um que não tenha nascido e sido criado nos Estados Unidos da América, e os revolucionários simplesmente matam qualquer um que esteja ativamente tentando matá-los. De certa forma, é tão simples quanto isso. Mas, ao mesmo tempo, há pouca ou nenhuma explicação para a violência.
Os filmes anteriores de Wagner Moura no Brasil foram notoriamente politicamente ambíguos, e esse segue o exemplo. Ele nunca demonstrou interesse em fazer propaganda esquerdista simplista, mas considera absolutamente necessário desencadear um debate sobre o absurdo das situações políticas em que nos encontramos. Mesmo que isso signifique deixar espaço para interpretações políticas opostas dessas histórias. Não há melhor maneira de transmitir essa nuança de posição do que através do trabalho de jornalistas impossivelmente imparciais.
A forma como os jornalistas constroem a narrativa baseia-se na crença de que ela deriva de um ponto de vista neutro. Em teoria, o jornalismo conta a história, não influencia nem endossa os acontecimentos que relata. Esse filme pode não afirmar explicitamente que a Casa Branca deveria ser destruída, mas procura mostrar como ela pode sim ser obliterada. A justificativa para isso poderia ser simplesmente que toda a guerra decretada e executada no estrangeiro acaba chegando nas portas de nossas casas. A personagem de Kirsten Dunst descreve isso como o propósito fracassado de seu trabalho como fotógrafa de guerra internacional – foi um aviso ignorado em casa. Portanto, o jornalismo tem um propósito político, porque sem propósito ninguém arriscaria a vida para fazê-lo.
Dominar a arte de criar uma narrativa convincente é demorado, útil, poderoso e consideravelmente mais desafiador quando se busca a verdade. Nunca será uma verdade imutável, porque é uma construção. Mas é verdadeira para alguma coisa; valores, objetivos honestos ou um propósito transparente. O filme Guerra Civil mostra o que pode acontecer quando negligenciamos esses objetivos, perdemos a clareza desses valores e desistimos do propósito pelo qual fazemos o que fazemos. A forma como interpretamos acontecimentos ou justificativas para ações está diretamente ligada à narrativa construída em torno deles. Essa narrativa não é a única e não é suprema. Ela foi criada por alguém com um propósito. Escolhemos, conscientemente ou não, adotar uma narrativa um em detrimento de qualquer outra.
A primeira cena de Guerra Civil é uma representação de como a narrativa que a Casa Branca profere, do excepcionalismo norte-americano, já não é mais convincente – nem mesmo para o presidente, cuja função é vender a história. No centro da disputa política, que descamba para a guerra em solo estadunidense, está o fato de que os estadunidenses deixaram de acreditar na imagem da “América” como invencível. Essa mudança na narrativa é o que leva as forças revolucionárias armadas a assumir o controle. No filme, não precisamos saber quem são esses revolucionários, ou qual presidência está supostamente sendo representada. O que importa é o quão frágeis realmente são os Estados Unidos da América, a terra da liberdade. No final, há uma explicação simples para tudo o que acontece: se você é implacavelmente atacado, o que mais há a fazer senão revidar?
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