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  • Nigerianas muçulmanas refugiadas no Brasil

    Originalmente publicado na Le Monde Diplomatique. Antes de iniciar uma conversa sobre mulheres nigerianas refugiadas no Brasil, é necessário apontar a negligência grosseira da mídia global em relatar qualquer notícia sobre a Nigéria. Como um país com vastos recursos naturais e cultura vibrante, as menções ocasionais a ele estão predominantemente no contexto do terrorismo islâmico. O Boko Haram é de fato uma questão urgente, que já existe há décadas e afeta milhões de pessoas. Embora essa organização ofusque todas as outras notícias sobre a Nigéria, ela não é discutida com a urgência que merece. Qualquer preocupação genuína com o bem-estar dos estadunidenses, após o 11 de setembro, deve ser equilibrada com a preocupação com o bem-estar dos nigerianos no conflito contínuo com o Boko Haram. A taxas alarmantes, esse conflito vem deslocando populações vulneráveis ​​que são ainda mais silenciadas nos países estrangeiros de refúgio. O Brasil, apesar de sua conexão inigualável com a África, está totalmente despreparado para lidar com o influxo de refugiados africanos, especialmente mulheres nigerianas muçulmanas. Ao chegarem, essas mulheres são ainda mais vitimizadas pela fragilidade das instituições brasileiras e pelo desconhecimento da população local quanto as suas situações. Isso leva, é claro, a mais precarização da vida, que pode não envolver o Boko Haram, mas envolve ambientes de trabalho exploratórios e clandestinos, bem como o isolamento religioso e social. Para entender os fracassos dos esforços de contraterrorismo na Nigéria, talvez devêssemos olhar para o fracasso dos esforços de contraterrorismo de um paradigma geopolítico pós-11 de setembro desencadeado pelos Estados Unidos. Certamente, o conflito étnico-religioso naquela região é resultado de fronteiras arbitrárias estabelecidas por um regime colonial britânico. Centenas de grupos étnicos foram agrupados como norte ou sul da Nigéria, que logo foram “amalgamados” (“amalgamated”) com o único propósito de facilitar a contabilidade da exploração que a coroa britânica estava fazendo pelo rio Níger. Sem falar em todos os anos de conflito antes da ocupação britânica, no auge do tráfico de escravizados. Tudo isso gerou o contexto de brutalidade que emoldura os eventos da virada do século 21. Boko Haram é uma “franquia” (“franchise”) da Al-Qaeda. De acordo com Andrea Brigaglia, ex-diretor do Centro para o Islã Contemporâneo, a “frouxidão” das conexões entre essas franquias tem sido tanto um ponto fraco quanto forte na estratégia da Al-Qaeda. Por um lado, facilitou a velocidade e a vastidão de seu alcance, mas, por outro, levou a um controle frágil sobre as facções distantes. Durante o início dos anos 2000, grupos islâmicos nigerianos estavam se formando e desmantelando, sendo o Boko Haram um exemplo duradouro de um. Os debates entre os líderes islâmicos sobre como lidar com a vida e a educação pública sob um governo nigeriano ocidental (cristão) – criado arbitrariamente por uma potência colonial – foram proeminentes. Devido às pressões causadas pela ‘Guerra ao Terror’, “é curiosa e conspícua a ausência de qualquer troca de argumentos sobre a legitimidade do projeto de jihad global da Al-Qaeda. Daria para imaginar que tal conversa ou postura pública durante aquele período seria incontornável, a menos que “para evitar encadear quaisquer ligações orgânicas com a Al-Qaeda”. A “Guerra ao Terror” dos Estados Unidos não conseguiu erradicar ou conter o Boko Haram e, embora apenas ocasionalmente se tornem grandes notícias, a organização é consistentemente retratada como horríveis abusadores de mulheres e crianças. Há partes dessa história, no entanto, que não foram contadas. Para retratar a multiplicidade com que Brigaglia define a condição humana, longe de “visões de mundo límpidas”, devemos falar sobre a Nigéria de várias maneiras. Ou, como diz a brilhante romancista nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, devemos evitar “o perigo de uma única história” (“the danger of a single story”). Série fotográfica de Fábio Teixeira retrata mulheres nigerianas que vivem em São Paulo. Brasil A história das mulheres nigerianas muçulmanas refugiadas no Brasil pode ser de beleza e poder, onde o protagonista não é a violência e o sofrimento causados pelo islamismo. Também pode ser sobre a responsabilidade do Ocidente de entender a complexidade da vida dessas mulheres, especialmente uma vida dentro de uma sociedade construída sob o domínio cristão. Nessa série do fotojornalista Fabio Teixeira, cerca de 20 nigerianas refugiadas em São Paulo se tornaram protagonistas vibrantes de suas próprias histórias. Elas fizeram suas próprias roupas com tecidos que conseguiram trabalhando para fábricas clandestinas de costura, que desaparecem na mesma rapidez com que surgem. Algumas delas trabalham limpando os manequins nos quais essas roupas são expostas. Todos esses empregos não oferecem segurança ou remuneração adequada, mas essas mulheres podem trazer dignidade para seus lares humildes em São Paulo e, em alguns casos, cuidar de crianças muito pequenas. Tanto no Brasil quanto na Nigéria, a pobreza é o principal obstáculo entre os nigerianos muçulmanos e a vida digna e satisfatória que todos nós merecemos. Praticar sua religião em paz e sustentar sua família e entes queridos é um direito que deve ser concedido a todos, independentemente de raça, nacionalidade ou gênero. Embora possamos discutir como o governo nigeriano falhou em garantir esse direito a seus povos, não devemos esquecer o fracasso dos países ocidentais em tratar os nigerianos com o respeito que eles esperam para si mesmos. A região que hoje é a Nigéria tem sido explorada por centenas de anos, e a violência religiosa assumiu muitas formas, inclusive na forma de islamofobia em regiões cristãs. Qual é a diferença entre resgatar e empoderar? Essas refugiadas foram resgatadas de regimes brutais? Sim. Mas elas ainda precisam encontrar um lugar neste mundo onde possam desfrutar da humanidade que todos nós temos o dever de defender. Se prometemos reprimir o terrorismo, prometemos apoiar as vítimas do terrorismo também. É isso que o Ocidente tem feito com as mulheres nigerianas muçulmanas? De acordo com uma publicação de Anoosh Soltani na Universidade das Nações Unidas (United Nations University), “os meios de comunicação populares ocidentais perpetuam fortemente uma visão hegemônica das mulheres muçulmanas”. Ao fazer isso, essas mulheres são confinadas às categorias de oprimidas e/ou “incompatíveis com os valores e normas do mundo ocidental”. Na realidade, existem várias maneiras de praticar o Islã, a maioria das quais seria contra os valores ocidentais repreender. O Islã chegou à região que hoje chamamos de Nigéria no século 11– algumas centenas de anos antes da colonização europeia. Para muitas mulheres, usar o hijab era uma declaração contra o domínio colonial. Como tal, cobrir a cabeça, para mulheres muçulmanas têm sido um símbolo feroz de pertencimento e resiliência. Na história do Islã, o Boko Haram é um fenômeno recente e distinto, nascido como resultado dos empurrões e puxões da história, de conflitos globais e da condição humana. Para evoluir como sociedade, mais de nós no Ocidente devemos mostrar respeito às mulheres nigerianas muçulmanas e fornecer a elas a dignidade humana básica a que todos nós temos direito. ______ Mirna Wabi-Sabi é escritora, editora e diretora da Plataforma9. Fabio Teixeira é fotojornalista e documentarista no Rio de Janeiro. Já trabalhou para The Guardian, Folha de São Paulo, Cruz Vermelha Internacional, Unicef, entre outros.

  • Entre balas e garimpos: a vida de povos indígenas e negros favelados sob o estado de exceção

    Por Eduardo Barbosa [1] A relação entre o Estado, grupos racialmente marginalizados e povos indígenas no Brasil contemporâneo é pautada pela violência. A imprensa nacional está cotidianamente tingida pelo sangue que as instituições estatais derramam nestes recortes populacionais. É preciso questionar esta relação para estabelecermos a vida e não a morte como diretriz governamental. Este não é um mal que corre às soltas apenas nas trincheiras da história brasileira. O problema da violência enquanto forma de governo é um tema recorrente nas discussões filosóficas sobre o funcionamento das sociedades contemporâneas. Diversos estudiosos já se debruçaram sobre esta questão, tais como Hannah Arendt, Michel Foucault, Giorgio Agamben e Judith Butler. Os conceitos trazidos por estes filósofos nos possibilitam compreender a institucionalização de dispositivos de controle formulados em países centrais que são assimilados por outras sociedades mundo afora. O que seriam as recorrentes chacinas em favelas e o extermínio em série dos povos originários no Brasil, senão uma aplicação de mecanismos perversos de governo? São esses mecanismos que os autores citados tratam e é a partir deles que este texto-denúncia pretende evidenciar as políticas perversas de governo que vigoram no Brasil contemporâneo, fortalecidas nos quatro anos de governo Bolsonaro. As vidas negras e indígenas no Brasil são historicamente precárias, sempre estiveram sob o risco de descarte. Nossa formação econômica se estruturou sobre a escravização de pretos e índios. Resistir a esse projeto socioeconômico escravagista significava uma ameaça ao Estado. Tanto o fim da escravidão, quanto a garantia dos direitos indígenas na Carta Magna de 1988, não garantiram efetivamente o fim desse risco de descarte. O Estado está sempre tentando controlar as populações negras a partir de uma política de morte conduzida por forças policiais que decidem por meio de filtragem racial quem vive e quem morre. Assim como está sempre tentando “limpar” as terras indígenas para que os brancos a explorem com seus garimpos e boiadas. O manejo violento dessas populações é operado a partir de uma exceção que o Estado cria para a suspensão de direitos civis fundamentais e a implementação de um projeto cruel de Nação. É evidente que desde os anos 90 houve um recrudescimento da violência institucional no Brasil. Há uma espécie de guerra civil na qual determinados setores populacionais estão em permanente conflito com o Estado. Em um momento o Estado cria uma vulnerabilidade negro-periférica sujeita às suas biopolíticas de extermínio, como as incursões policiais produtoras de chacinas em favelas. Em outros períodos cria-se uma ecovulnerabilidade, isto é, uma forma de tornar inviável a vida de uma população a partir da contaminação de suas fontes de água potável, da inviabilidade de regimes alimentares oriundos de seu local de habitação e inviabilidade da forma habitual de viver ocasionada por destruição ambiental. O incentivo do garimpo em terras indígenas, por exemplo, é uma política de extermínio, porque produz uma ecovulnerabilidade entre os povos originários que coloca suas vidas e existências em risco. Esse cenário catastrófico de conflitos de interesse só se mantém porque institucionalizamos a precarização das vidas que o Estado não considera relevantes para o seu projeto socioeconômico. Ou seja, mesmo com o fim da escravidão e a instauração dos direitos garantidos pela Constituição Brasileira, seguimos com o plano colonizador inicial de Nação. Como os direitos fundamentais estão garantidos por lei, o estado precisa atuar à revelia dessas garantias, mas age a partir de exceções juridicamente legais que mascaram a criminalidade de suas políticas. É exatamente esse processo que Agamben (2004, p. 12), define como “estado de exceção”, “a forma legal daquilo que não pode ter forma legal”. As medidas excepcionais encontram-se na situação paradoxal de medidas jurídicas que não podem ser compreendidas no plano do direito”, pois são instrumentos que suspendem os direitos individuais. Isso garante, por exemplo, que determinados sujeitos sejam exterminados caso representem uma ameaça ao Estado. Um exemplo é o estado de exceção do Nazismo. Assim que o poder foi entregue a Hitler, este suspendeu os artigos referentes às liberdades individuais presentes na Constituição de Weimar e promulgou o Decreto para a proteção do povo e do Estado. Do ponto de vista jurídico, o terceiro reich se constituiu como um estado de exceção que durou 12 anos, visto que o decreto jamais foi revogado após sua instauração (Agamben, 2004, p.13). Para os ideais nazistas, era preciso suspender os direitos individuais para promover uma institucionalização do racismo e da marginalização dos não-arianos. A questão é que o dispositivo do estado de exceção não foi sepultado com a derrocada de regimes totalitários, tal como o regime nazista. Pelo contrário, ele foi reformulado e absorvido por regimes democráticos, transformando-se em um paradigma de governo. “O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político. Desde então, a criação voluntária de um estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos.” (2004, p.13). É uma zona nebulosa entre absolutismo (a suspensão de direitos individuais) e democracia. No agir governamental dentro dessa indeterminação temos uma biopolítica (FOUCAULT, 1999), um processo no qual ora o estado mata, ora deixa morrer. As forças policiais produzem matanças seletivas e racializadas em favelas e a falta de proteção das terras indígenas cada vez mais exploradas predatoriamente pelos brancos deixa-os morrer. No Brasil parece ser comum tanto uma coisa quanto outra. É o que a vulnerabilidade negro-periférica urbana e a ecovulnerabilidade indígena, respectivamente, nos revelam. Uma operação policial em 2021 resultou na morte de 25 pessoas na favela do Jacarezinho, na cidade do Rio de janeiro. Duas pessoas foram atingidas em um vagão do metrô por balas perdidas, disparadas na operação. Essa era até aquela data a segunda maior chacina da história da cidade. A operação ocorreu mesmo sob uma resolução do STF que suspendia todas as operações policiais em favelas enquanto o país vivia o ápice da crise sanitária causada pela pandemia de covid-19 (EL PAÍS, 2021). É flagrante a constatação de que neste tipo de ocorrência os direitos fundamentais garantidos pelo estado de direito foram suspensos. Quando se trata de populações periféricas, a inviolabilidade do lar e o direito à vida cedem lugar ao controle violento instrumentalizado pelo Estado. É o que esta reportagem do El País denuncia: “De acordo com o relato de quem acompanha a operação no local, os agentes estão invadindo a casa de moradores para realizar revistas — que só podem ocorrer com mandado judicial — e estão colocando os corpos das pessoas mortas em veículos blindados da corporação. Em uma das imagens recebidas pelo EL PAÍS, três agentes carregam irregularmente um corpo dentro de um lençol branco, atrapalhando qualquer trabalho de perícia.” “O EL PAÍS recebeu imagens de corpos caídos no chão e de pessoas ensanguentadas. Também circulam fotografias do interior de algumas casas. Nelas, paredes e pisos aparecem com marcas de bala e grandes manchas de sangue. “Tenho uns 10 relatos de pessoas contando que a polícia entrou em suas casas revistando e jogando tudo para cima. A favela inteira está tomada”, afirma o morador. Em um áudio recebido por este jornal, outra pessoa relata a seguinte cena: “Entramos numa casa aqui com pedaço de massa encefálica. Invadiram a casa de uma senhora e torturaram o cara aqui dentro, a casa está toda suja de sangue”. Outra também relatou que em uma residência havia quatro mortos em uma laje e que os agentes não deixavam ninguém entrar. Há também denúncias de que agentes confiscaram telefones de moradores, sob o argumento de que mandavam informações para traficantes. (06/05/2021).” A operação de maior letalidade em periferias aconteceu em 2005 entre Nova Iguaçu e Queimados, municípios do Rio de Janeiro, quando policiais mataram 29 pessoas. Antes disso, em 1993, uma operação na favela carioca de Vigário Geral terminou com a morte de 21 pessoas. Em 2022, 23 pessoas morreram em decorrência de uma operação policial na Vila Cruzeiro, Zona Norte do Rio de Janeiro. E em 2007, 19 pessoas morreram em uma operação no Complexo do Alemão. (EL PAÍS, 06/05/2021; G1, (01/06/2021). De acordo com uma reportagem do G1 (01/06/2022), o estado do Rio de Janeiro teve em 14 anos 593 chacinas provocadas por operações policiais. Entre 2007 e 2021 houve 17.929 operações policiais nas quais houve a morte de 2.374 civis. As comunidades periféricas de grandes centros urbanos parecem viver um ininterrupto momento Carandiru em que as forças policiais agem como se o extermínio daqueles classificados como criminosos fosse a única forma de controle do estado sobre as populações em quadros de crise social. Uma crise, vale ressaltar, criada pelo próprio Estado. Pois a maioria das operações policiais resultantes em chacinas são operações de combate ao tráfico de drogas. Haveria operações contra traficantes se os psicoativos deixassem de ser vendidos em bocas de fumo e fossem vendidos em farmácias? Ou se o consumidor pudesse cultivar seu próprio psicoativo? Estas chacinas não são apenas evidências de políticas antidrogas fracassadas. Elas expõem o modo como a vida é organizada sob um estado de exceção reformulado. Observemos na notícia referente ao maio de 21 de Jacarezinho, os confiscos, as invasões de domicílio, as buscas sem mandato judicial, as mortes de suspeitos. Observemos com atenção a palavra “suspeito”, um rótulo suficiente para produzir um alvo. Sob um estado de exceção não é necessário a manutenção dos direitos individuais. Por isso a polícia abate suspeitos. Mata-se 29 pessoas em benefício de uma sociedade mais segura. Aqui o Estado faz morrer o possível criminoso ou deixa viver o insuspeito. Nos termos de Foucault (1999), tem direito de vida e de morte. A morte desse outro indesejável sanitiza a vida em geral. É o Estado absolutista que, tal qual Creonte, decide que Antígona deve morrer por ter violado suas leis. E o corpo criminoso precisa ficar exposto como forma de admoestação. O que são as chacinas policiais senão formas de disciplinar a favela por meio da exposição de seus cadáveres? De acordo com o G1, as operações policiais no Estado do Rio de Janeiro nos últimos 15 anos provocaram 4,7 vezes mais mortes de negros e pardos em comparação com brancos. “Dados do Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio mostram ainda que os negros e pardos representam 72% de todos os óbitos causados por intervenção de agentes do Estado nesse período” (20/11/2021). É esse tipo de evidência que nos mostra em detalhes o que Foucault (1999) define como um racismo de Estado. O racismo aqui se desenha de forma clara contra uma periferia favelada, pobre e negra. Não se trata de aleatoriedade na geografia das chacinas e dos sujeitos abatidos nas ações policiais violentas. Trata-se de uma seleção que constrói a figura do criminoso a partir do que Sinhoretto (2020) define como filtragem racial. O suspeito é sempre de pele não-clara, jeito de malandro e cara de bandido. O olhar policial é treinado para fazer uma varredura visual, branco passa, preto fica. Essas políticas utilizadas por instituições policiais não são feitas para o controle pacífico do ambiente social das periferias. Elas são ferramentas de seleção de corpos a ser rastreados e abatidos. É uma política eficiente na produção de mortos. Todas estas operações policiais têm respaldo do Estado, pretende-se com elas combater os crimes periféricos. Ou seja, a polícia promotora de chacinas nas favelas é a entidade a materializar o efeito do dispositivo de estado de exceção aplicado a um determinado setor populacional. Neste caso, o favelado está sempre com a vida por um fio, caminhando ad eternum na corda bamba do Estado regida pelas forças policiais. Temos, portanto, uma ação direta do estado que promove o extermínio de uma população marginalizada. E mais do que isso, temos a institucionalização do marginalizado, a criação do que denomino por uma vulnerabilidade negro-periférica. Isso nos mostra que a máquina de fazer vulneráveis é uma ferramenta para viabilizar as chacinas policiais. Os casos dessas comunidades as quais eu trouxe como exemplo nos mostra como o Estado distribui vulnerabilidades entre seus cidadãos. Judith Butler (2020, p.10) apresenta alguns argumentos sobre essa questão no livro Vidas precárias. Afirma ela que “existem meios de distribuir vulnerabilidades, formas diferenciadas de alocação que tornam algumas populações mais suscetíveis à violência arbitrária do que outras”. É o que vemos nas periferias brasileiras. As favelas cariocas são historicamente suscetíveis à violência arbitrária do Estado. Embora haja uma ampla discussão pública sobre este problema, ele é recorrente, vai dos anos 1990 a 2022. Ao analisarmos o estado de exceção como paradigma de governo observamos como as políticas de segurança pública selecionam e matam sujeitos periféricos. No entanto, a violência de estado não está localizada apenas nas bordas das metrópoles. A mesma máquina que produz corpos vulneráveis nas favelas também os produz pelo interior do país, em regiões rurais. Por isso é importante discutirmos a institucionalização da violência em outras localidades. É o caso do aumento da precarização da vida dos povos originários em face das políticas do governo Bolsonaro. Neste contexto, a violência institucional não opera de acordo com os mesmos mecanismos que estruturam o manejo violento das comunidades cariocas. Se naquelas apontamos para um fazer morrer, aqui vigora um deixar morrer. Há uma mão do Estado que empunha a arma discretamente, não diretamente. Trata-se de uma política que preza pelo descaso. No primeiro semestre de 2021 a imagem de uma criança Yanomami de oito anos pesando apenas doze quilos (o peso considerado normal para esta faixa etária é vinte quilos) gerou uma comoção no país. A criança, além do quadro de desnutrição, estava com malária. O El País (17/05/2021) veiculou a seguinte manchete sobre esse caso: “etnia enfrenta crises sanitária e ambiental com escalada de violência por garimpos ilegais. Povo denuncia novo ataque neste domingo. Imagem expõe o grave e crônico problema da assistência à saúde em várias aldeias”. A violência de Estado nesse caso tem um caráter de biopolítica. Pois aqui houve um estímulo do governo federal para a garimpagem e a dissolução do modo indígena de viver. É a isso que eu classifico de ecovulnerabilidade. Isto é, degrada-se um ambiente ao ponto de tornar a vida das populações que dele dependem insustentável. Há uma ligação estreita entre ecovulnerabilidade e políticas governamentais. Em 2019 o diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) foi exonerado do cargo por divulgar dados referentes ao desmatamento da Amazônia. Na Amazônia, vale lembrar, é onde estão a maior parte dos povos originários brasileiros, especialmente aqueles considerados isolados, como os Mashco. Na ocasião, o presidente Bolsonaro questionou os dados dizendo que “com toda a devastação de que vocês nos acusam de estar fazendo e ter feito no passado, a Amazônia já teria se extinguido”. Para o presidente não só os dados do Inpe eram falsos, mas o diretor do órgão poderia estar a “serviço de alguma ONG.” (FOLHA DE SP, 02/08/2019). Para entender este tipo de ataque contra um órgão de fiscalização ambiental é necessário convidar Hannah Arendt (1989) para a discussão. Pois este é o exemplo de uma negação da realidade, característica de um líder autoritário que coloca seu projeto de poder acima da vida de seus governados. “O possuir poder significa o confronto direto com a realidade, e o totalitarismo no poder procura constantemente evitar esse confronto, mantendo seu desprezo pelos fatos” (p. 442). Na imagem fictícia de Brasil do presidente, não existe desmatamento em grande escala na Amazônia. É essa imagem que ele precisa vender e é nela que acredita, apesar de não ter relação direta com fatos estabelecidos por pesquisadores do cenário amazônico e instituições como o INPE que monitora o desmatamento no Brasil. Já em uma transmissão via rede social em 2020, o presidente Bolsonaro afirmou que “o índio mudou, tá evol... Cada vez mais, o índio é um ser humano igual a nós. Então, vamos fazer com que o índio se integre à sociedade e seja realmente dono da sua terra indígena, isso é o que a gente quer aqui” (G1, 24/01/2020). No seu governo não cabe o desenvolvimento econômico sustentável, tampouco modos de vida alternativos ao ocidental. Tudo se resume ao modo de vida do branco. É uma tentativa de eliminação de uma realidade rival ao seu projeto de governo (ARENDT, 1989). O presidente Bolsonaro prefere colocar seu projeto de país acima das necessidades dos povos amazônicos. Será que os Mashco que se organizam pelo espaço amazônico transitando entre espaços múltiplos e mantendo uma política de isolamento completo em relação a outros povos, como mostrou os estudos de Peter Gow (2011), desejaria uma integração à essa sociedade branca? Será que todos os próprios brancos querem estar inseridos nesse modelo insustentável de sociedade que insistimos em construir desde a invasão europeia? No primeiro semestre de 2022, quando a Rússia declarou guerra à Ucrânia, Bolsonaro, então presidente, afirmou (CORREIO BRASILIENSE, 2022) que a dependência brasileira de fertilizantes russos poderia ser suprimida com a exploração mineral em reservas, como na foz do Rio madeira. Na época desta discussão tramitava na câmara com apoio do Palácio do Planalto o Projeto de Lei 191/2020 que liberava garimpagem em reservas indígenas. Para a especialista em meio ambiente e urbanismo Suely Araújo (CORREIO BRASILIENSE, 2022) o PL viabilizava uma mineração em larga escala, com falta de cuidados ambientais e a prioridade era o garimpo de ouro. Obviamente, não se trata de desenvolvimento sustentável, mas de produção de vulnerabilidades de populações consideradas um entrave à exploração deletéria do meio ambiente e seus recursos. Um Yanomami em denúncia ao Correio Braziliense (03/03/2022) disse o seguinte: “Desde 2019, relato as necessidades e pedimos socorro ao Governo. Agora está pior. Aumentou muito a desnutrição. Onde tem garimpo forte tem o problema da fome. E na pandemia aumentaram as invasões. Como eu vou explicar a fome dos Yanomami? Eles [os garimpeiros] sujam os rios, destroem a floresta, acabam a caça. Nós nos alimentamos da natureza.” É impossível não retornar à Arendt (1989) como fonte explicativa para a invasão do garimpo às reservas indígenas. É uma ação que decorre do discurso presidencial. Faz parte de seu projeto de governo a eliminação da cultura indígena, a ecovulnerabilidade, a pilhagem das reservas. “Como um conquistador estrangeiro, o ditador totalitário vê as riquezas naturais e industriais de cada país, inclusive o seu, como fonte de pilhagem” (p. 472). Para Arendt (1989) “o motivo pelo qual os regimes totalitários podem ir tão longe na realização de um mundo invertido e ficcional é que o mundo exterior não-totalitário também só acredita naquilo que quer e foge à realidade ante a verdadeira loucura, tanto quanto as massas diante do mundo normal. (p. 487).” O Brasil de 2018-2022 viveu sob um regime que se parece, em grande medida, com um governo totalitário. O apagamento das diferenças entre povos não é uma característica totalitária mascarada de integração? O racismo de Estado não é uma característica do totalitarismo? Que é a miséria dos Yanomami senão uma biopolítica na qual se produz “um corte entre o que deve viver e o que deve morrer”? (FOUCAULT, 1999). Quem deve viver nesse caso é o branco que garimpa. Assim como as comunidades periféricas vivem às voltas com um Estado que viola seus direitos individuais, os povos originários vivem às voltas com um Estado que viola tanto seus direitos individuais, quanto seus direitos coletivos. A partir dessa discussão, aponto para uma de nossas maiores contradições enquanto Nação. Uma contradição que faz habitar no mesmo cenário a democracia e o absolutismo. Povos indígenas e negros favelados vivem sob um estado de exceção constante dentro de um Estado democrático de Direito. Parece que estes sujeitos estão presos dentro de um Brasil-Carandiru do qual não podem escapar. Um lugar no qual aguardam a chegada inexorável do carrasco com seus distintivos ou seus garimpos e boiadas. É Estado democrático de Direito ou permanente Estado de exceção? Referências bibliográficas AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção: Homo sacer, II, I. São Paulo: Boitempo, 2004. ARENDT. Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. CORREIO BRAZILIENSE. Politica. Bolsonaro usa guerra como alegação para defender mineração em terra indígena. Online. Março de 2022. BUTLER, Judith. Vidas precárias: os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. G1. Profissão Repórter. Rio de Janeiro tem 593 chacinas policiais em 14 anos aponta levantamento. Online. 01 de junho de 2022. ———. Política. Cada vez mais o índio e um ser humano igual a nós, diz Bolsonaro em transmissão nas redes sociais. 24 de janeiro de 2020. ———. RJ. Pessoas negras e pardas morreram 47 vezes mais do que brancas em ações da polícia no RJ nos últimos 15 anos. Online. 21 de novembro de 2020. GOW, Peter. “Me deixa em paz!”. Um relato etnográfico preliminar sobre o isolamento voluntário dos Mashco. Revista de Antropologia. [S. l.], v. 54, n. 1, 2012. EL PAÍS. Brasil. Operação policial mata 25 pessoas no jacarezinho em segunda maior chacina da história do Rio. Online. 06 de maio de 2021. ———. Brasil. 8 anos e 12 quilos: a criança com malária e desnutrição que simboliza o descaso com os Yanomami no Brasil. 17 de maio de 2021. FOLHA DE SP. Ambiente. Diretor do Inpe será exonerado após críticas do governo à dados de desmate. Online. 02 de agosto de 2019. FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège du France (1975-1976. São Paulo: Martins Fontes, 1999. SINHORETTO, Jaqueline. et al. Policiamento e relações raciais em perspectiva comparada SP e RS. In: 44º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 44, 2020. S/L. Anais. 2020. SÓFOCLES. Antígona. Porto Alegre: LP&M Pocket, 2019. _________ Eduardo Barbosa Bacharel em Ciências sociais, mestre em Sociologia, doutorando em Sociologia e membro do NAMCULT – Núcleo de Estudos em Ambiente, Cultura e tecnologia – do Departamento de Sociologia/UFSCar. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de financiamento 001.

  • O ponto de discórdia nas eleições presidenciais de 2022

    Escrito por Mirna Wabi-Sabi e fotografado por Fabio Teixeira. Lula venceu as eleições presidenciais este ano, mas os partidários de Bolsonaro estão nas ruas exigindo “intervenção federal” para impedir a “instalação do comunismo” no país. Hoje, porém, Lula defende uma economia mista, e os principais argumentos contra ele são que ele é corrupto, e que vai fomentar o crime organizado e o caos. O comunismo aqui é usado como cortina de fumaça para esconder fantasias de retorno da ditadura militar e de genocídio de pobres e negros – a demografia que Lula busca incluir na economia de mercado. Após questionar os resultados das eleições, Gustavo Gayer, político, influenciador e youtuber, removeu vários vídeos que postou semana passada no YouTube, e teve sua conta no Twitter suspensa. No vídeo chamado “Urgente! Eleitores do LULA já começaram a aterrorizar o Brasil. Cenas fortes”, a cena mais forte, segundo ele, foi a gravação de uma mulher de um prédio sendo invadido do outro lado da rua de seu apartamento, onde ela estava claramente aterrorizada. Gayer deixa de indicar o contexto de tal invasão, como é costume em seu trabalho. Ele já foi condenado por propagar Fake News duas vezes este ano, ambas envolvendo outros políticos e políticas públicas durante a pandemia de Covid-19. O que o eleitorado brasileiro considera aterrorizante está no cerne da polarização política que estamos presenciando. Enquanto uma moradora (representando ideologicamente cerca de metade da população votante brasileira) fica horrorizada ao ver um grande grupo de pessoas pobres invadir um prédio e colocar lona nas janelas – a outra metade fica horrorizada ao ver miséria generalizada e falta de moradia. A ocupação deste prédio em especial foi obra de um grupo chamado Frente de Luta por Moradia – FLM, que existe há 2 décadas e defende o direito à moradia digna em São Paulo. O prédio estava vazio, ninguém foi agredido ou retirado de sua casa além dos próprios ocupantes. E o grupo publicou um ofício do Tribunal de Justiça de São Paulo afirmando que a polícia é quem age criminalmente se 1) impõe violência física ou psicológica contra os ocupantes, 2) restringe o acesso à água, comida, eletricidade, advogados e defensores públicos. O que justifica um comportamento criminoso parece ser o ponto de discórdia aqui, e não uma postura anticrime por cidadãos cristãos de bem, em face de comunistas criminosos e profanos. A divulgação de fake news e brutalidade policial, embora ilegal, é tolerada ou até mesmo aplaudida pelos apoiadores de Bolsonaro, enquanto a luta por moradia digna é descrita da seguinte forma: “O crime venceu. A nossa vida será um inferno. O homicídio vai aumentar. O tráfico [de drogas] vai aumentar. Os criminosos vão reinar. Mesmo porque o chefe deles agora senta, sentará, na cadeira presidencial. O Brasil não é um lugar mais amigável para pessoas de bem, pessoas patriotas, cristãs... Eu não sei mais o que falar. Eles conseguiram e vão destruir o nosso país.” — Gustavo Gayer, no vídeo (desde então removido), “Urgente! Eleitores do LULA já começaram a aterrorizar o Brasil. Cenas fortes” no YouTube. Do dia 31 de outubro, com 462 mil visualizações em 6 horas. Num artigo recente de Eduardo Barbosa intitulado “Entre balas e garimpos: a vida de povos indígenas e negros favelados sob o estado de exceção”, essa tolerância a certas condutas criminosas dos defensores do Estado de Direito é descrita como um Estado de Exceção. O regime de Bolsonaro é, ou foi, uma extensão e exacerbação de décadas de “políticas perversas” que decretaram “recorrentes chacinas em favelas e o extermínio em série dos povos originários”. Essas demografias são um alvo porque minam o poder que o Estado tem sobre determinados territórios. Nesse sentido, eles são uma ameaça ao Estado, e o desejo de erradicá-los supera a retórica cumpridora da lei do patriota e se torna um mecanismo estabelecido. Há uma classe massiva de brasileiros que sentem repulsa aos pobres e marginalizados. Essa classe pode pensar em maneiras de tirar as pessoas da pobreza com incentivos econômicos e caridade, enquanto outros defendem a erradicação literal, pelo cano de uma arma. Há muito a ser questionado sobre o uso de ferramentas capitalistas para resolver um problema que o capitalismo não apenas cria, mas precisa para prosperar – a disparidade de classe. O apoio ao assassinato em massa, no entanto, é intragável, é o abismo intransponível na paisagem política binária em que estamos vivendo. Lula será incapaz de erradicar sozinho o ódio da nação aos pobres, ou mudar o curso da humanidade para longe do desespero econômico e do colapso global. As expectativas de seu potencial de mudança são altas, mas irreais. O que precisamos é de uma mudança de cultura. A narrativa normalizada por Bolsonaro foi rejeitada não apenas pelo eleitorado brasileiro, mas também pelas comunidades internacionais. Ainda assim, a vitória foi estreita, e os apoiadores têm convicções firmes de ambos os lados. Nesse sentido, a urna não é um instrumento que produz legitimidade. Legitimidade e dignidade são ideais que precisamos defender e lutar para conquistar todos os dias, não apenas a cada 4 anos. ____ Escrito por Mirna Wabi-Sabi e fotografado por Fabio Teixeira.

  • As conexões entre apoiadores de Bolsonaro, QAnon, satanismo e alienígenas

    FOTOS DE FABIO TEIXEIRA, tiradas no Rio de Janeiro. 02 DE NOVEMBRO: Bolsonaristas protestam contra o resultado da eleição em frente ao Comando Militar do Leste. Desde o final das eleições desse ano, apoiadores do candidato derrotado acampam em frente a quartéis militares pelo país pedindo uma intervenção contra os resultados. Alegam fraude, e invocam um artigo da constituição que, segundo a sua interpretação, confere às Forças Armadas o poder de “garantir a ordem” e “manter a lei” quando “há o esgotamento das forças tradicionais de segurança pública”. Esse esgotamento das forças tradicionais seria, para eles, o fato de o presidente eleito ser um criminoso condenado auxiliado por forças de uma nova ordem mundial, contra a qual os alienígenas devem intervir. Como vimos, alguns desses apoiadores chegaram a enviar sinais de ajuda a um general alienígena com as lanternas de seus smartphones. Apoiadores de Bolsonaro Não é tarefa fácil rastrear as origens da relação entre os apoiadores de Bolsonaro e a crença de que seres extraterrestres estão ativamente envolvidos na política partidária. Em 2018, o The Guardian publicou um artigo chamando Bolsonaro de “líder de culto” que alegou ter tido contato com alienígenas. No entanto, o artigo não fornece fontes em referência a quando, como ou por que Bolsonaro fez a alegação de contato com alienígenas. O autor desse artigo no The Guardian foi Dom Phillips, morto este ano em um caso de assassinato de grande repercussão, ao lado de outro jornalista, Bruno Pereira, enquanto investigava corrupção na região amazônica. 28 DE OUTUBRO: Bolsonaro no debate entre os candidatos presidenciais de 2022. Satanismo Outras conexões mais sinistras e conspiratórias foram feitas envolvendo um culto satânico dos anos 80, acusado de assassinatos horríveis de meninos pobres. A mulher que fundou o culto, Valentina de Andrade, escreveu um livro chamado 'Deus, a grande farsa', onde foram feitas alegações de que não apenas os alienígenas estão entre nós, mas que eles influenciariam os nascimentos humanos, e que um general alienígena e uma nave em particular estariam para vir à terra e pedir ajuda aos cidadãos de bem para realizar uma tarefa muito importante, possivelmente de natureza política. De alguma forma, o nome do advogado da família de Bolsonaro, Frederick Wassef, aparece em documentos sobre o processo judicial contra Valentina. Ele testemunhou sobre como comprou o livro de Valentina em 1988, onde ela descreve sua experiência de contato com alienígenas e como Deus não é o Criador do Universo, mas sim uma espécie de Diabo. Isso despertou o interesse de Wassef, levando-o a escrever uma carta a ela e, a convite dela, viajar por várias cidades para visitar alguns espaços associados ao culto, incluindo a sede do culto em Buenos Aires. Nessas viagens, ele conheceu Valentina e várias pessoas de seu círculo, e participou de vários cursos e palestras, nenhum dos quais, segundo ele, discutia-se nada além dos princípios básicos do grupo — proibição de drogas, prostituição, abuso de confiança e desrespeito. Toda essa saga termina com tudo sendo atribuído ao Satanic Panic, um período entre os anos 80 e 90 em que houve um alto índice de casos não verificados envolvendo rituais satânicos com abuso e assassinato de crianças. É amplamente conhecido por ter acontecido nos EUA, mas o Brasil, ao que parece, também se viu vítima. Ambos os países têm laços políticos inesperados — os anos 80, marcando o fim de uma ditadura militar brasileira financiada pela CIA, e os anos 2020, marcados pela simbiose entre Bolsonaro, Trump e seus apoiadores. Agora, a conexão entre esses políticos, satanismo e alienígenas fica mais difícil de analisar sem entrar em assuntos conspiratórios como QAnon. 15 DE NOVEMBRO: Milhares de apoiadores de Jair Bolsonaro se reuniram em protesto contra os resultados das eleições de outubro. QAnon Numa paisagem ideológica atormentada por teorias conspiratórias, não é difícil imaginar uma progressão natural das ideias de QAnon para as sobre OVNIs. Em 2019, a Vice publicou um artigo dizendo que, na ausência das postagens de Q, “muitos de seus seguidores se voltaram para a narrativa sobre OVNI para satisfazer um vício conspiratório”, especialmente porque o próprio Q fez algumas postagens sobre OVNIs e várias sobre satanismo — motivo pelo qual QAnon tem a reputação de ter trazido o Satanic Panic de volta. No entanto, atribuir a relação entre extraterrestres e QAnon a um “vício” conspiratório é insuficiente. O paralelo entre satanismo e alienígenas precede o QAnon, e alguns pesquisadores do final dos anos 90 e início dos anos 2000 exploraram uma semelhança “impressionante” entre os relatos de abuso satanista e abduções alienígenas, conforme compartilhado em seus respectivos grupos de apoio. Curiosamente, o estudo que faz a pergunta 'Quem são os abduzidos por OVNIs e sobreviventes de abuso ritualístico?' responde a isso dizendo que ambos são predominantemente brancos. Essa resposta levanta outra questão: por que uma parte da população branca é susceptível a explicações como essas para o tumulto político e social no mundo? Em sua pesquisa de 1997 intitulada “Abuso satanista e abdução alienígena: uma análise comparativa[…]”, John Paley especula sobre outra explicação — um espectro de epilepsia do lobo temporal e terapia malfeita. Considerando que a grande maioria daqueles que se identificam como sobreviventes de abuso ritualístico ou abduções são mulheres, a categorização desses relatos como delírios (página 47) precisa ser visto através de uma lente interseccional mais moderna. A verdade é que ninguém entende completamente ou pode fornecer uma explicação científica sólida para esses fenômenos sociais. [ESQUERDA] 28 DE OUTUBRO: Bolsonaro no debate presidencial. [DIREITA] 30 DE OUTUBRO: O presidente do Brasil e candidato à reeleição Jair Messias Bolsonaro, falando à imprensa logo após a votação. O Exército e a Marinha dos EUA Há, no entanto, uma explicação mais conservadora, ou menos peculiar, para o fato de os apoiadores de Bolsonaro estarem usando celulares para se comunicar com uma nave extraterrestre e seu general. O governo dos EUA tem se esforçado para desestigmatizar a crença em OVNIs (ou FANIs — fenômenos aéreos não identificados). Em maio, os EUA realizaram uma audiência no Congresso com o objetivo de incentivar o público em geral, e especificamente membros da Marinha, a coletar dados e informar sobre objetos voadores (e subaquáticos) não identificados. É do interesse do Exército dos EUA que suas novas tecnologias permaneçam classificadas. Após avistamentos inexplicáveis, é de seu interesse que o público os associe a alienígenas e não a tecnologia militar secreta sendo testada. Por exemplo, seria justo supor que quando o drone “Predator” foi introduzido, no início dos anos 2000, o mesmo já estava em teste durante a maior parte da década anterior (talvez não por acaso durante a era do X-Files). De fato, na audiência, foi declarado que drones foram utilizados para ver se serviam como uma explicação para relatos recentes de avistamentos inexplicáveis e os dados entregues ao Centro de Inteligência da Marinha. Alguns dados se tornaram públicos. Alguns foram discutidos numa audiência confidencial. E alguns continuam sem explicação, por insuficiência de dados ou falta de compreensão desses dados. No entanto, o Exército dos EUA está numa linha tênue entre a necessidade de manter em sigilo sua própria tecnologia militar, e a necessidade de contar com informação entregue pela população e por membros da Marinha sobre o que poderia ser tecnologia secreta de forças “não aliadas”. 15 DE NOVEMBRO. Protesto em frente ao Comando Militar do Leste. Tecnologia Existe um segmento significativo da população brasileira que acredita que certas tecnologias que temos hoje, como internet, Inteligência Artificial, motocicletas que não caem e assim por diante, vêm de alienígenas. Alguém me disse recentemente, “o ser humano é inteligente, mas não tão inteligente”. Isso se relaciona com a teoria de que as pirâmides não poderiam ter sido construídas por humanos, então elas devem ter sido construídas por alienígenas da antiguidade, e assim por diante. Curiosamente, nós vivemos hoje na era dos smartphones, que podem ser usados ​​para coletar mais dados do que nunca sobre OVNIs (ou FANIs), expor tecnologia militar classificada e sabe-se lá o que mais. No entanto, há dúvidas se o próprio objeto que temos em mãos para coletar esses dados é deste mundo. A experiência humana é marcada pela angústia de perceber o número exorbitante de coisas que não entendemos sobre o universo, e tudo o que não podemos controlar ou prever. Nem mesmo esta afirmação pode ser dita com muita certeza, razão pela qual procuramos significado nos mais variados e inesperados lugares. Isso por si só pode ser um mecanismo de apoio psicológico saudável para o absurdo e a fragilidade de toda a vida na Terra. Dito isto, uma vez que defendemos os princípios democráticos, ou qualquer modo básico de coexistência num planeta com 8 bilhões de pessoas, estamos suscetíveis a ter de enfrentar situações em que certos grupos levam suas teorias a um nível ditatorial. Quando se trata dessas pessoas acampadas em frente aos quartéis militares brasileiros, pedindo a regressão da Democracia para a Ditadura Militar, nossa estratégia tem sido de esperar passar, para que o pânico se amenize; porque uma linha de raciocínio político entendível ou administrável está até menos em vista do que essa nave extraterrestre com a qual eles estão tentando se comunicar. ___ Escrito por Mirna Wabi-Sabi Fotografado por Fabio Teixeira Editado por Nox Morningstar

  • Bolsonarismo, nacionalismo como religião

    Escrito por Felipe Lott Fotografado por Fabio Teixeira Edição e produção por Mirna Wabi-Sabi Com o desenvolvimento da Modernidade, o nacionalismo passou a ganhar cada vez mais relevo e a dominar corações e mentes por todo o globo, principalmente a partir da Revolução Estadunidense (1776) e da Revolução Francesa (1789). Antagonizando com o modelo social da Igreja, a Modernidade foi sendo estabelecida a partir de uma concepção naturalista e materialista, isto é, negava-se a instância divina e se afirmava a realidade unicamente por critérios que fossem próprios a esse e exclusivos desse mundo, e não frutos de um além-mundo. Na esteira da decadência das monarquias e da Igreja Católica como as principais instituições a estruturar a vida social europeia em termos políticos e de construção do sentido da realidade, o nacionalismo se tornou a proposta de organização social mais expressiva no mundo ocidental durante o século XIX e XX. Mais próximo da religião e dos laços familiares do que da ideologia (ANDERSON), o sucesso do nacionalismo nos últimos dois séculos pode ser atribuído a sua maior capacidade em conciliar e sintetizar os valores tradicionais e modernos em uma unidade social coesa. Ao despontar com mais intensidade no século XIX, o nacionalismo se apresentou como a melhor possibilidade de construção de estados viáveis (economia integrada, administração política centralizada e cultura padronizada) para o desenvolvimento do capitalismo (HOBSBAWM 2016; ANDERSON). Localizado especialmente como fenômeno europeu, que, servindo como modelo universal, espraiou-se para o resto do planeta, o nacionalismo serviu como mestre de obra para a construção de um novo mundo talhado para atender as necessidades da grande indústria (HOBSBAWM 2016; BAUER; GELLNER). Nesse sentido, o nacionalismo se mostra como um amálgama entre religião, laços familiares e ideologia, que definiremos aqui como religião civil (HOBSBAWM 2016; ANDERSON). Como fenômeno eminentemente social, a religião representa estados mentais de uma coletividade e desempenha uma função etiológica que opera como padronizador lógico de determinado grupo, e pode ser vista como a origem do nacionalismo como fenômeno. Ela classifica e divide todo o universo, real e/ou ideal, em dois domínios absolutamente diferentes, separados e excludentes: sagrado e profano. Nesse mundo inteiramente partido, o religioso deve se preocupar em se aproximar do e proteger o domínio do sagrado e se afastar e se defender do reino do profano. Instituindo-se como guardiã e sentinela do sagrado, a religião se configura como a síntese dos ideais de um determinado grupo. Para alcançar o ideal, o religioso dispõe de duas ferramentas fundamentais, o mito e o rito, que funcionam em conjunto. O primeiro se relaciona com o sentido, enquanto o segundo com a prática. O mito explica o mundo e o rito e aponta um caminho, enquanto o rito representa e relembra o mito e oferece uma técnica de atingir o ideal coletivo. Ao ritualizar o mito em momentos e circunstâncias estabelecidos socialmente, o religioso pode transcender as suas fraquezas e se conectar com uma força que lhe permite superar os desafios do cotidiano (DURKHEIM). Por civil, compreendemos a esfera política a partir de um sentido laico, que se preocupa com as necessidades de pessoas definidas juridicamente como cidadãs — apartada do domínio religioso. Portanto, a religião civil se apresenta como ferramenta do Estado para se instituir como um ideal, permitindo, por meio da formação e fixação dessas ideias nas mentes dos membros do grupo, garantir a ordem e a harmonia políticas. Longe de ser uma novidade da Modernidade, a religião civil possui profundas raízes na política, especialmente no republicanismo, a ideologia em que o civil (mito) e a cidadania (rito) são figuras centrais. Para criar a sua religião civil, e destronar esse papel da Igreja Católica, a Modernidade se inspirou na cultura da Grécia e da Roma Antigas, principalmente esta última. Uma das principais referências na construção da religião civil moderna, Cícero já fazia grandes elogios a promoção da religião em Roma realizada por Numa Pompílio, segundo rei da cidade eterna, por favorecer o estabelecimento da paz, da calma, da doçura e da amizade entre os romanos, sequiosos de guerra, utilizando-se de artifícios laicos como os mercados, os jogos, as festas e toda sorte de reuniões para unir os homens em harmonia (capítulos XIII e XIV do livro II de sua Da República, do último século a.C). O ideal greco-latino como fundamento da religião civil moderna retornou com força a partir do Renascimento, encontrando em Maquiavel o seu principal teórico e defensor. Porém, foi necessário mais alguns séculos para que o golpe definitivo fosse dado pela Revolução Francesa, que conseguiu escantear de vez a Igreja do papel de religião civil por excelência do Ocidente. Influenciada principalmente pelas ideias de Rousseau, presentes no capítulo VIII do livro IV Do contrato social, a religião civil passou a ser concebida como a religião do cidadão, que preconizava o sacrifício pela pátria e o amor as leis sem os vícios da religião (leis simples, em pequeno número, enunciadas com precisão, sem explicações nem comentários). Fundamentado nessas ideias, o nacionalismo do século XIX era pensado como uma forma de organização social própria para a Europa e os Estados Unidos. Conforme Espanha e Portugal entravam em decadência, Inglaterra, França e Estados Unidos fomentaram intensamente o surgimento do nacionalismo nos territórios coloniais da América Latina, acabando por provocar lutas por independência em toda a região. Ao destronar as colônias das antigas potências ibéricas, Inglaterra, França e Estados Unidos passaram a disputar o posto de nova metrópole desses territórios recém-independentes. O Brasil não foi diferente e se transformou em uma colônia econômica da Inglaterra, cultural da França e um pouco dos dois dos Estados Unidos. Adentrando velozmente no Brasil, a cultura francesa foi se apropriando do país, configurando-se em cultura legítima. Não apenas as ideias republicanas francesas deitaram profundas raízes em solo nacional, como o próprio positivismo — tratada como uma religião laica — obteve grande êxito em se arraigar na cultura brasileira. Entre os agentes brasileiros a receber mais forte influência da França nessa era, destaca-se o Exército. Alcançando o proscênio político do Brasil com a Proclamação da República (1889), o Exército se tornou um dos principais agentes a produzir a nova religião civil brasileira que se desenhava com o despojamento da Monarquia em 1889 (CARVALHO 2017). Influenciado pelo positivismo e o republicanismo francês, o Exército representou um braço da França na promoção de sua cultura no Brasil, competindo principalmente com os partidários do liberalismo estadunidense. Principalmente por meio do Exército nacional e da escola pública, o nacionalismo do século XIX infundiu e enraizou a nova religião civil no povo brasileiro. Como fenômeno religioso, a religião civil também partilha de três elementos fundamentais: (1) a dádiva ou a reciprocidade, (2) o sacrifício e (3) a dívida. A dádiva ou a reciprocidade representa uma relação econômica baseada na moral. Todos os membros de um grupo precisam trocar bens, materiais ou espirituais, na mesma proporção, produzindo uma dinâmica de igualdade percebida como dádiva em uma sociedade religiosa (MAUSS; SAHLINS). O sacrífico representa uma relação social em que todos os membros do grupo oferecem voluntariamente em um ritual o que possuem de melhor à coletividade, objetivando com esta ação conservar a paz e a harmonia sociais e proteger o grupo do mal e do caos (MAUSS & HURBERT). Por fim, a dívida representa uma relação em que pessoas iguais, de fato ou em potencial, fazem trocas que produzem uma desigualdade momentânea entre elas. A dívida existe nesse intervalo de desigualdade entre pessoas iguais de fato ou em potencial. Na religião, os membros de um grupo possuem certa igualdade e/ou semelhança com o plano cósmico, contraindo uma dívida original com o divino ao nascerem (GRAEBER). Observando o nacionalismo como fenômeno religioso no século XIX e XX, constatamos todo o seu apelo a uma reciprocidade entre cidadãos juridicamente iguais, o que implicava em uma homogeneidade étnica e racial, que deviam realizar constantes sacrifícios pela nação em razão de uma dívida primordial impagável com a sua sociedade de origem. O entendimento da obrigação inalienável dos indivíduos com as suas sociedades de origem, fruto de uma dívida primordial contraída ao nascerem e cobrada pelo Estado, transformou-se em prática corrente e corriqueira, quando não na maior preocupação social na Modernidade. Essa dívida era cobrada frequentemente por meio do sacrifício da própria vida, dinâmica e mecanismo que se intensificaram vertiginosamente no século XX com a emergência das guerras totais, modalidade de guerra que tinha por objetivo a liquidação total e completa do inimigo (PALACIOS JUNIOR; ANDERSON; HOBSBAWM 1995). Já na Guerra Fria, a possibilidade de destruição total nuclear reconfigurou o processo de mobilização geral para a liquidação de um inimigo, o que implicou na intensificação da estruturação do nacionalismo em sua forma religiosa. No histórico conflito, tradicionalistas e modernistas (os conservadores e os liberais) encontraram um inimigo em comum, capaz de uni-los contra um mesmo oponente — o socialismo — que começou a ameaçar a partir do século XIX e a assustar de fato a partir da Revolução de Bolchevique de Outubro de 1917. Nesta aliança tática entre tradicionalistas e modernistas contra o socialismo, o nacionalismo se sobressaiu como forma de organização política e cultural durante o século XIX e XX. Longe de ser um raio em céu azul, o bolsonarismo é um fenômeno recorrente na história do século XIX ao XXI, mudando apenas as suas coordenadas geográficas e especificidades histórico-culturais. Uma das principais fundamentações do bolsonarismo se encontra no militarismo. Para conseguir reverter a imagem negativa que tinha ao longo do século XIX e início do XX, o Exército brasileiro empenhou grandes esforços em uma campanha pela valorização das Forças Armadas e pela infusão de um espírito militarista na sociedade. Entre outras ações, o Exército fundou a Confederação Brasileira de Tiro em 1896, voltada principalmente para aproximar os civis da vida militar, ação que se assemelha a realizada pelo bolsonarismo na última década. No início da República Brasileira, o principal objetivo dos militares era aprovar o serviço militar obrigatório nas Forças Armadas. Até 1918, o alistamento foi monopolizado pela Guarda Nacional, uma espécie de polícia a serviço do Ministério da Justiça, que alistava os melhores quadros disponíveis para a sua força, principalmente de membros da elite e das classes médias. A partir daquele ano, a Guarda Nacional passou a estar subordinada ao Exército (CARVALHO 2006). Junto a isso, o alto comando do Exército iniciou uma campanha para seduzir a classe operária a ingressar na corporação. Para obter êxito nessa meta, o Exército investiu o quartel de uma imagem familiar, em que oficiais virtuosos e paternais ensinariam lições de moral, de virilidade e de civismo ao filho do operário. Por meio dessa campanha de repaginação da imagem social do Exército, a corporação conseguiu aproximar a classe operária dos quartéis (CASTRO 2012). Mais do que um apelo a um sacrifício espontâneo e voluntário, o Estado cobrava uma dívida a seu povo no combate ao comunismo. Mais do que uma concordância de princípios, a luta contra o comunismo exigia o cumprimento de um dever a seus cidadãos. Com o golpe de 1964 e a Ditadura que se seguiu, o Brasil, argumentam os seus defensores, conseguiu se livrar do comunismo. Por meio da ação “redentora” dos militares e a obediência religiosa do povo ao regime, o Brasil, novamente segundo seus apoiadores, conquistou a paz e a harmonia sociais e o desenvolvimento econômico. Com o fim da Ditadura em 1985, a religião civil brasileira do século XX perdeu gradualmente cada vez mais viço ao longo do desenvolvimento da Novíssima República (1985-). Porém, com o estouro da crise capitalista de 2008, que estourou no Brasil em 2013, o apelo religioso da religião civil brasileira do século XX retornou nesse início de século XXI. Com a revitalização do nacionalismo em sua forma religiosa, os seus elementos do passado voltaram com tudo, especialmente a luta contra o comunismo (que de resto se encontra em baixa em todo mundo), protagonizada pelos militares, profissionais de segurança pública e cristãos conservadores. Rediviva, a religião civil brasileira do século XX volta a exigir sacrifícios diários de seus adeptos no século XXI. Ao se sacrificarem, os bolsonaristas estariam lutando para salvar a pátria ameaçada pela corrupção e dissolução comunistas. A adesão a esse movimento não acontece por mera escolha voluntarista e opcional. Ao participarem dessa luta, os bolsonaristas estariam pagando a sua dívida com a Pátria e, assim, também estariam contribuindo para garantirem as prometidas paz e prosperidade sociais e a prosperidade econômica. Nesse momento, o apelo a dívida possuí estímulos de diferentes tipos. As dívidas com a família, com Deus, com o Estado, com a Pátria e/ou com o Mercado são mobilizadas de acordo com o público-alvo específico da propaganda bolsonarista. Mobilizando intensamente essa religião civil atualizada, os principais nomes do bolsonarismo conseguem levar grandes massas às ruas em verdadeiras manifestações religiosas, em que o suposto povo confere um poder absoluto, praticamente divino, ao seu “líder supremo”, caracterizado e aclamado como “messias”. Afetados por uma propaganda ininterrupta com esse conteúdo da religião civil há pelos menos uma década, a eleição presidencial de 2022 foi ainda mais carregada com um verniz religioso do que a de 2018. Apelos a supostos fechamentos de igrejas, da suposta relação do candidato vencedor da eleição com Satanás e outras alegações moralistas de cunho religioso rechearam a campanha presidencial de Bolsonaro, que seria a representação do “salvador”, do “templário”, do “cruzado”. Com a derrota de Bolsonaro no pleito, a massa bolsonarista passou a se ver diante dos portões do inferno, percepção que vem sendo alimentada pela propaganda bolsonarista. Como último recurso diante do desespero, essa massa se joga e acampa na frente dos quartéis clamando por alguém que desempenhe o papel de salvador por meio das armas. Como na religião civil brasileira do século XX, a do século XXI alardeia sem tréguas o caráter corruptor do comunismo, que supostamente já teria se infiltrado nas instituições da República. A única solução para esse suposto apocalipse seria a ação violenta dos militares por meio de uma “intervenção federal” que sanearia a República. Ao contrário do que querem acreditar os otimistas, esta é uma situação que vai durar ainda por um bom tempo. Ao se desenvolver, a Modernidade inevitavelmente abriu espaço para projetos que buscavam a sua superação, como o socialismo. Para vencer a disputa pelo poder, o bolsonarismo resgata e ressuscita a religião civil brasileira do século XX. Mesmo que não faça sentido para quem se guia por uma concepção de mundo racionalista, a atualização da religião civil brasileira do século XX no XXI tem demonstrado grande eficácia em mobilizar grupos de cidadãos. Referências ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. trad. Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. BAUER, Otto. A nação. In: Gopal Balakrishnan (org.). Um mapa da questão nacional. introd. Benedict Anderson. trad. Vera Ribeiro. revis. trad. César Benjamin. 1.ed. 1.reimp. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008. CARVALHO, José Murilo. As Forças Armadas na Primeira República: O Poder Desestabilizador. In: CARVALHO, José Murilo. Forças Armadas e política no Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. CASTRO, Celso. A luta pela implantação do serviço militar obrigatório no Brasil. In: CASTRO, C. Exército e nação: estudos sobre a história do exército brasileiro. Rio de Janeiro: FGV, 2012. CÍCERO, Marco Túlio. Da República. trad. e notas Amador Cisneiros. 2.ed. São Paulo: EDIPRO, 2011. DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. trad. Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1996. GELLNER, Ernst. O advento do nacionalismo e sua intepretação: os mitos da nação e da classe. In: Gopal Balakrishnan (org.). Um mapa da questão nacional. introd. Benedict Anderson. trad. Vera Ribeiro. revis. trad. César Benjamin. 1.ed. 1.reimp. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008. GRAEBER, David. Dívida: os primeiros 5.000 anos. trad. Rogério Bettoni. São Paulo: Três Estrelas, 2016. HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). trad. Marcos Santarrita. rev. técn. Maria Célia Paoli. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. HOBSBAWM, Eric. Nações e nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. 7.ed. trad. Maria Celia Paoli e Anna Maria Quirino. São Paulo: Paz & Terra, 2016. MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. glossário e revisão técnica Patrícia Fontoura Aranovich. trad. 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  • Estaria A Esquerda Brasileira Anestesiada?

    Escrito por Renato Libardi Bittencourt Fotografado por Fabio Teixeira Existia e ainda existe certo ar de “promessa” e de “esperança” aqui no Brasil de que, após a vitória eleitoral de Lula, reestabeleceríamos a “normalidade” da vida na frágil Democracia Liberal. O que se tem dito por aí (ver nota do MST sobre os bloqueios nas estradas) é que bastaria esperar passiva e ordeiramente a posse do recém-eleito presidente e deixar a extrema-direita agonizar no que seria seu último suspiro. Entretanto, desde o dia em que o resultado das urnas foi definido, a extrema-direita tem tomado as ruas numa clara tentativa de Golpe e demonstração de força, evidenciando, dessa forma que, longe de estarem respirando por aparelhos, estão unidos, articulados, fortes e coesos. Desde 30 de outubro tivemos: fechamento de estradas por boa parte do território nacional, pedidos por intervenção militar nas ruas e quartéis (que perduram até agora e sem previsão de fim), ônibus invadido por bolsonaristas que na ocasião agrediram estudantes, reitor de uma Universidade Federal protocolando documento em apoio ao Locaute golpista, apoio e conivência das forças de segurança do Estado às manifestações golpistas e antidemocráticas, manifestações de xenofobia e racismo contra nordestinos, suásticas e incêndio criminoso na sede do MST em Pernambuco, fora as birras do “Deus Mercado”. (Veja, por exemplo, essa matéria no Brasil de Fato PR.) O curioso (ou trágico) nesse absurdo todo é o absoluto imobilismo da esquerda brasileira majoritária, hegemônica e institucional que, diante de tais absurdos, foi incapaz de reagir. Não, não se trata de conclamar uma guerra civil. Sabemos que as forças de segurança e a justiça brasileira não estão do nosso lado (bastaria muito menos para um “banho de sangue” contra nós por parte da polícia). Mas, desde quando precisamos de um respaldo do Estado ou uma situação favorável para ocupar o que historicamente sempre foi nosso, as ruas? É bem verdade que qualquer tipo de manifestação acarreta seus próprios riscos e que a conjuntura atual inspira em muitos de nós o temor. Entretanto, aquela velha máxima de Marighella continua atual: “Não tive tempo para ter medo”. RIO DE JANEIRO, 30 de outubro. Fotos por Fabio Teixeira. Do lado da esquerda revolucionária, autônoma e combativa a história já foi bem diferente. No dia 1 de novembro, a página “Antifa Hooligans Brasil” emitiu um comunicado convocando as torcidas organizadas para barrar a tentativa de golpe, desbloquear as estradas e defender a limitada democracia que ainda nos resta. Nessa mesma ocasião, o MTST também emitiu um comunicado a sua militância para frustrar os golpistas e seus financiadores. Diferentemente e em desacordo estratégico com o MTST, o Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem Terra (MST) lançou uma nota apelando para que a esquerda mantivesse a calma, confiasse nas instituições e aguardasse a posse de Lula. Ora, temos aí um evidente conflito teórico e estratégico dentro das esquerdas. Afinal, devemos ou não ocupar as ruas nesse momento? É seguro? O que fazer diante disso tudo? A posse de Lula será o início de tempos melhores? São perguntas complexas e que não possuem uma resposta simples ou uma receita mágica que possa nos orientar objetivamente diante de tantos desafios. Contudo, a boa e velha tradição filosófica nos ensina que, diante de perguntas difíceis, é sensato e prudente fazermos questionamentos mais refinados em cima das questões originais. Por exemplo: “Faz sentido um temor por uma guerra civil quando, para quem é preto e periférico, a guerra e o genocídio acontecem todos os dias”? Essa indagação refletiria o recorte de classe e raça dentro da própria esquerda? O argumento da “guerra civil”, isto é, de que as militâncias e o povo nas ruas poderiam verdadeiramente provocar uma guerra de verdade, um banho de sangue e uma grande ruptura sistêmica, só revela os privilégios ou certo grau de alienação social daqueles que o utilizam para justificar uma esquerda cada vez mais com a cara do Sistema o qual um dia se opuseram de forma mais radical e honesta. Sejamos francos, não se morre apenas de bala no Brasil. Se morre de fome, de desamparo, do sucateamento da saúde pública e, até de indiferença política, como é o caso em questão. O argumento da “guerra civil” me evoca a lembrança da letra da música “Estamos Mortos” do Rapper Eduardo Taddeo (ex Facção Central) que se inicia dizendo: “Ninguém pode ser considerado vivo; Comendo sobras de lixeiras; Erguendo mãos para pedir esmolas; Fumando crack; Perdendo a saúde puxando carroças de papelão (...)” e termina ressaltando que: “Enquanto não pudermos impedir o genocídio; O racismo; A alienação; O aprisionamento em massa; A pobreza extrema e a anulação social; Não passaremos de cadáveres que respiram; Meus pêsames para todos nós que vegetamos; No necrotério dos vivos”. RIO DE JANEIRO, 20 de outubro. Fotos por Fabio Teixeira. A pergunta que me faço no momento é: estamos anestesiados? Essa anestesia decorre de tanta porrada que levamos nos últimos anos dos liberais e da extrema-direita? O estrago foi tamanho que perdemos a capacidade de reagir à altura? Ficamos mansos como cordeiros? Deixamos a justa cólera de nossos corações se metamorfosear em um estado depressivo, letárgico? Não, mais uma vez, não estou evocando aquelas cenas plásticas e estereotipadas de militantes jogando molotovs na tropa de choque da PM e “tocando o terror” (por mais que essa visão onírica me agrade). Estou falando de pessoas comuns em massa ocupando as ruas. Mesmo que haja quem diga que isso só traria mais confusão e daria mais visibilidade para a extrema-direita e os bolsonaristas, trata-se aqui de uma urgência, de um dever caro à tradição antifascista: “nenhum palco para fascista”. É bem verdade que os liberais e a extrema-direita tiveram ampla e esmagadora vitória nas últimas eleições, mas continuar desocupando a avenida para a extrema-direita passar no lugar de fincar o pé na rua e gritar “não passarão!” possui resultados históricos catastróficos. Todas as vezes que, na história, ignoramos a ascensão do fascismo e não os desarticulamos com estratégias combativas de ação direta, adivinha: eles triunfaram, cresceram, frutificaram e impulsionaram ainda mais seu alcance social no meio das massas.

  • Lula e os Yanomami: alvoroço por fotos no Brasil

    Duas situações causaram grande alvoroço no Brasil esse mês, ambas envolvendo fotos. A primeira é uma imagem de dupla exposição de Lula com vidro quebrado apontando para seu coração. A outra de uma mulher Yanomami que morreu de desnutrição grave. Debates que costumavam ser direcionados à dicotomia Lula/Bolsonaro voltaram-se para dentro, dentre os esquerdistas, sobre como lidar com as crises políticas pós-vitória. Muitas pessoas ficaram horrorizadas com a foto de Lula na capa da Folha de São Paulo, alegando que incita a violência contra ele. O vidro estilhaçado era do ataque de 8 de janeiro, e a composição artística de uma renomada fotógrafa de esquerda foi duramente criticada por ser muito duvidosa em uma paisagem onde a maioria sente não haver espaço para nuança. Para mim, a foto retrata uma cena à prova de balas, onde houve uma tentativa frustrada de destruir sua presidência, e ele sai sorrindo vitorioso entre as ruínas. Mas para outros, a possibilidade de promover violência contra o presidente, como se alguém devesse atirar em seu coração, era suficiente para promover violência contra a própria fotógrafa. Ela foi alvo de uma multidão online até que uma cena mais problemática surgiu. Sinceramente, desde as primeiras notícias do que aconteceu com o povo do território Yanomami, não consegui ler nada a respeito porque não aguentava olhar as fotos que acompanhavam os textos. As mídias ficaram infestadas de imagens não apenas de um crime, mas de vítimas do que está à beira do genocídio. O compartilhamento dessas imagens foi justificado como evidência necessária, mas isso nunca me convenceu. Em processos judiciais envolvendo crianças, a evidência visual não é divulgada (está em sigilo). Na maioria das vezes, os testemunhos são suficientes. Desde o início, utilizar as imagens me parecia desumano. Agora que uma das mulheres dessa comunidade morreu de desnutrição, lideranças Yanomami estão pedindo que as pessoas parem de compartilhar sua imagem em uma demonstração de respeito à tradição Yanomami. Ainda assim, certas pessoas argumentam contra, dizendo que essa imagem tem que ser compartilhada na internet como prova, como se a internet fosse o grande fórum onde a justiça é feita através da exposição de pessoas marginalizadas violentadas. As imagens de crianças Yanomami desnutridas nunca foram toleráveis ​​para mim, e é intolerável que para alguns, a essa altura, elas ainda sejam necessárias como prova do que o governo brasileiro faz esses povos passarem. Isso ressoa muito com o que a brilhante professora e jornalista Allissa V. Richardson diz sobre pessoas pretas e a necessidade de evidências midiáticas para a violência racista perpetrada contra afro-americanos. Ela diz: “Gostaria de chegar ao ponto em que não precisamos dos vídeos para acreditar nos negros [...] Por que os negros são solicitados a produzir essas filmagens para meio que pré-litigar o fato de que eles não mereciam suas próprias mortes?” Quando se trata do tema 'dar testemunho' da brutalidade racista, negros e nativos encontram um terreno comum no uso da mídia. Considerando as centenas de anos de colonização, o que as pessoas achavam que os ativistas dos direitos indígenas têm lutado contra? Acharam que não era tão ruim assim, então eles precisavam de evidências fotográficas de quão ruim tem realmente sido? Será que acham que isso é o ápice? Ou, será que só precisam de mais um motivo para continuar culpando Bolsonaro por tudo de ruim que já aconteceu no Brasil? Os povos indígenas sofrem ataques atrozes, lidam com fome e assassinato por centenas de anos, a fração que sobreviveu ainda está suportando esse paradigma, e os últimos 4 anos não são os únicos responsáveis ​​pelas injustiças que esses povos enfrentam — são responsáveis por permitir que negócios continuem como de costume. Os Yanomami lidam com a questão do número absurdo de garimpeiros invadindo suas terras desde pelo menos a década de 70. Há doença, desnutrição e massacres desde então, até mesmo um genocídio declarado em 1993... Se foram necessárias essas imagens em 2023 para que alguém percebesse as condições de vida desumanas e indignas a que os nativos são submetidos, não prestaram atenção. E certamente não é responsabilidade dos Yanomami abrir uma exceção em seu modo de viver (ao lidar com a morte) para atender à necessidade de um tapa na cara de pessoas não nativas. Se assim fosse, não seria apenas uma extensão da desumanização imposta a eles? Também me pergunto qual é o objetivo de justapor imagens dos Yanomami com imagens históricas de sobreviventes do Holocausto. Se isso é uma tentativa de enfatizar o quão violento é o que está acontecendo com os nativos, é totalmente inadequado e anacrônico, porque o que está acontecendo no Brasil está acontecendo há muito mais tempo e com muito mais pessoas do que aconteceu na Alemanha nazista. E o mesmo vale para fazer o paralelo com as crianças desnutridas da África subsaariana, como se o Brasil devesse estar acima disso, quando, na verdade, é uma tragédia que isso esteja acontecendo em qualquer lugar por qualquer motivo. Será que quando pensamos nas centenas de anos de genocídio perpetrado contra indígenas e africanos no Brasil, isso não tem o mesmo peso do que aconteceu na Europa, com os europeus? Então, pegamos algo muito mais antigo e maior, como o genocídio colonial, e tentamos encaixá-lo em uma narrativa eurocêntrica. Dessa forma, talvez, as pessoas o vejam como mais inaceitável e, portanto, garantam que nunca mais aconteça. Sim, queremos que o genocídio dos indígenas acabe e que nunca mais aconteça. Os indígenas têm lutado por isso pelo menos desde um século antes da Segunda Guerra Mundial. Se isso não é resiliência, não sei o que é. Talvez seja por isso que não suporto essas imagens sendo usadas como prova. Porque elas são usadas ​​como evidência de um grupo de pessoas frágil e derrotado, quando na realidade não poderiam estar mais longe disso. Os Yanomami suportaram o inimaginável por centenas de anos — essa não é uma história de fraqueza, é uma história de poder, e devemos nos sentir muito honrados em estar ao lado deles e lutar por sua dignidade. Diante desse cenário, Lula não parece tão vulnerável, duplamente exposto a vidros estilhaçados, sorrindo, ajeitando a gravata, não é? Ele está protegido por muito mais do que vidros à prova de balas, carros, coletes e ternos. Ele está protegido pela branquitude passageira, pelos mercados globais e seus superpoderes. No que diz respeito à sua carne, sangue e consciência, serão os Yanomami que o salvarão, e não o contrário, e eles merecem o mundo em troca disso. _______ Mirna Wabi-Sabi é escritora, editora do site Gods and Radicals e fundadora da Plataforma9. Ela é a autora do livro Anarco-transcriação e produtora de outros títulos sob a imprensa P9.

  • Minilagos podem influenciar microclimas na cidade?

    Por Mirna Wabi-Sabi [1] Durante o isolamento da pandemia, tive mais tempo de observar meu jardim, seus movimentos, crescimentos e seres. Isso me levou a começar um experimento com o desenvolvimento de minilagos sem bomba, para acomodar sapos, libélulas etc. No processo, não só aprendi muito sobre as vidas e os comportamentos de diversos seres, descobri da existência de diversos seres vivos, incluindo plantas, e suas funções para um ecossistema equilibrado. A cidade, hoje, não é um ecossistema equilibrado. Assim como o nosso conhecimento sobre os animais e plantas em nossa volta, ou que não estão mais em nossa volta por causa do desequilíbrio urbano, é insuficiente. Será que minilagos não só podem remediar nossa falta de conhecimento ao nos expor à certos aspectos da natureza de forma acessível e diária, mas também podem influenciar o habitat urbano para mitigar o efeito estufa e os danos causados pelo aquecimento global? Cidades e vilarejos Weizi Um estudo recente, de julho de 2022, chamado ‘Impactos dos Corpos de Água nos Microclimas e no Conforto Térmico Externo’ descreve como pequenos lagos artificiais se relacionam à revitalização ambiental sustentável num assentamento humano. Usando como referência um vilarejo chinês de tradição Weizi (Wei zi) chamado Xufan, uma análise é feita sobre a influência que características urbanas, como asfalto e prédios altos, têm sobre microclimas, em contraste com as características de habitats humanos que utilizam recursos aquáticos. Um vilarejo Weizi “é um modelo típico de assentamento humano tradicional chinês que combina habitat humano com terras agrícolas e conservação de água”. Ele se adapta, transforma e utiliza um ambiente aquático através da interseção de condições climáticas, recursos naturais locais, cultura rural e Fengshui — onde a ancestralidade e a ciência ambiental se fundem. Xufan, no vilarejo Guanweizi, no município de Guangshan em Henan (China), foi listado como um desses assentamentos tradicionais em 2017. Lá, foi possível analisar como os corpos de água afetam a temperatura e umidade do ambiente, e influenciam as convivências e produções humanas. O estudo revela que corpos de água absorvem calor durante o dia, e liberam calor durante a noite, mantendo estabilidade de seus microclimas. Eles também afetam a umidade do ar, que por ventos e brisas se conectam com microclimas de outros corpos de água em certos raios de distância. Isso densifica a vegetação da região, regula o clima e sustenta a agricultura local. Esses efeitos são interrompidos ao se aproximar do centro urbano. Nas cidades, edifícios blindam o vento e as brisas, interrompendo o fluxo de umidade entre diferentes corpos de água e seu efeito de resfriamento da temperatura local. Pode ser instintivo entender o asfalto e os motores dos carros como coisas que aquecem um ambiente, e prédios que por sua vez amparam o clima criado em suas ruas. A principal função do asfalto é impermeabilizar, e o motor opera na base de pequenas explosões queimando combustíveis. A elevação da temperatura e diminuição da umidade são microclimas em si — urbanos. Imagens: “Research on the Forms and Changes of Jianghuai Shuiwei Settlements — Take the Western Jianghuai Area as an Example". O que são Microclimas? A água não só satisfaz necessidades de agroecossistemas, mas também regula o conforto térmico, o que é um efeito específico do microclima. O PET (Physiological Equivalent Temperature) “é um índice baseado no balanço térmico do corpo”, e representa o conforto ou desconforto térmicos em microclimas urbanos ou não. Como tal, microclimas são nada mais do que condições atmosféricas de um certo ambiente, resultantes de certos elementos desse ambiente. Vegetação, corpos de água, asfalto e prédios são exemplos de elementos geomorfológicos que influenciam microclimas. O microclima urbano é às vezes chamado de “ilha de calor”, como resultado do que eu chamaria de agentes exógenos de relevo. As infraestruturas da cidade são, de certa forma, elementos geomorfológicos exógenos que alteram significativamente a superfície da Terra, entre outras coisas. Com o inegável dano que a revolução industrial causou no planeta e nos níveis de poluição de centros urbanos a partir da metade do século 19, muitas estratégias de mitigação de danos foram desenvolvidas, com resultados talvez medíocres. Combate à poluição urbana A indústria de carvão, que é responsável por grande parte da poluição industrial desde o meio do século 19 e também por diminuir a expectava de vida humana, está em declínio nos EUA, assim como as mortes associadas à sua mineração. Por outro lado, na China, a produção de carvão se encontra em ascensão. Outra estratégia de combate à poluição nas cidades tem sido tornar carros mais eficazes. A injeção eletrônica, por exemplo, é eficaz na redução da poluição ao misturar o ar e o combustível de forma mais econômica do que a regulagem manual. O catalisador neutraliza os gases nocivos que entram na atmosfera ao sair pelo escapamento, com efeito em até 98% deles. O Manual de Formação de Condutores (Edição 2022) afirma que o Brasil “passou a produzir um dos melhores combustíveis do mundo no ponto de vista ambiental”. Ao adicionar etanol à gasolina, emissões de monóxido de carbono (CO) e outros gases nocivos são reduzidas. Diz-se que, comparado com 1986, a média de emissões de CO por veículo hoje é 0,05% do que costumava ser (de 54g/km para 0,3g/km). Isso tudo soa bem, porém, ao inspecionar mais detalhadamente, problemas pontuais parecem ser parcialmente resolvidos enquanto outros surgem simultaneamente. CO é apenas um dos gases nocivos emitidos por automóveis, muitos deles que não diminuíram em tal escala. Os números diferem dependendo da fonte porque variam com o ano de fabricação do carro, região e regulamentações. As regulamentações não são propriamente fiscalizadas. E mesmo se as leis fossem impostas e seguidas, a adaptação da legislação visa proteger o meio ambiente quando também é do interesse do “desenvolvimento da indústria automobilística” (Art. 2°: I—Vetado). Portanto, dizer que a poluição nas cidades melhorou em comparação com 100 anos atrás, por meio da tecnologia, não é dizer muito. Uma visão holística de como lidar com a nocividade ambiental da urbanização superaria as limitações das leis nacionais e da indústria de carros, já que a camada de ozônio e o efeito estufa não operam de acordo com a lógica financeira e jurídica. As lógicas financeira e jurídica, na verdade, operam de acordo com o conjunto de crenças da população, mesmo que elas muitas vezes sejam manufaturadas pelos próprios setores financeiro e jurídico. Será que moradores da cidade querem viver em lugares como São Paulo, onde o trânsito e a grana nunca param de pulsar? Imagens: “Vernacular Ecological Architecture — Weizi Folk Houses in the Southeast Henan". Será que a ilha de calor é inescapável? Os microclimas da cidade alienam animais e plantas. Mas, com uma reconfiguração dos conjuntos de crenças sobre o que pode ou deve ser a vida na cidade, criar microclimas urbanos que convidam animais e plantas a prosperar é viável. Terraços verdes reduzem os efeitos das ilhas de calor urbanas, e vegetação se concentra em torno de corpos de água naturalmente. Portanto, corpos de água podem e devem ser introduzidos em jardins urbanos, hortas comunitárias e terraços onde já haja interesse em paisagismo. Para usufruir do efeito de resfriamento de plantas e lagos em contextos urbanos, uma estrutura autossuficiente que minimiza o uso de recursos como água e eletricidade públicas é não só acessível, mas também ancestral. Como vilarejos Weizi são descritos, “o espaço adaptável à água apresenta a sabedoria dos ancestrais para se adaptar e transformar moderadamente o ambiente aquático e utilizar os recursos hídricos de maneira sustentável, com baixa tecnologia, baixo custo e baixa manutenção.” Wei, além de ter sido um território ilustre na China antiga, também significa habitação que utiliza trincheiras aquáticas para satisfazer uma variedade de necessidades comunitárias como irrigação, escoamento, lavagem, conforto térmico e proteção. Prédios viabilizam a passagem de brisa, trincheiras servem como muros de defesa, água e animais nutrem a agricultura e, em geral, a arquitetura e urbanismo vernaculares expressam conhecimentos valiosos ancestrais e científicos. No contexto urbano moderno, adaptar à água pode significar a coleta de água da chuva, que por sua vez incentiva a consciência sobre a frequência de chuvas e qualidade do ar (que influencia a condição da água da chuva), além de minimizar o uso de água do abastecimento da cidade. O aumento da umidade do microclima, com a presença de brisa entre cada corpo de água, pode auxiliar na regularização da frequência das chuvas (pois sabemos que a umidade e chuva se favorecem). Para controle de proliferação de mosquitos, peixes pequenos podem ser introduzidos no corpo de água. Um laguinho bem plantado, e com uma quantidade e tipo de peixes adequados, não precisa de bomba ou filtro. Uma troca parcial de água é suficiente, e a água do lago, rica em nutrientes, pode ser usada para regar plantas. Animais como lagartos, besouros, libélulas, formigas e pássaros contribuem para a manutenção desses elementos naturais e minimizam a necessidade de manutenção humana. Ao convidar esses seres, os observamos e os entendemos melhor. Parte de entender melhor, significa entender que a prosperidade desses seres significa a nossa prosperidade, o futuro humano. O conhecimento sobre a natureza nos ensina a apreciar, respeitar e, por sua via, proteger. E nos ensina sobre os contextos microclimáticos urbanos, cujas afrontas à existência humana nós muitas vezes falhamos em identificar, denunciar e modificar. Os pesquisadores do artigo ‘Impactos dos Corpos de Água’ afirmam que o impacto de diferentes formatos de corpos de água será o foco de suas próximas pesquisas, indicando uma deficiência de dados referentes à diversidade de possibilidades para mitigar os efeitos de “superfícies subjacentes feitas pelo homem” através do uso de corpos de água. Portanto, há muito ainda a ser explorado. A execução dessa proposta apresenta uma curva aguda de aprendizado e adaptação de conjuntos de crenças da população, fora uma reconfiguração do que significa o espaço privado ou individual no contexto da relação entre microclimas urbanos e o futuro do planeta. Aos poucos, a consciência sobre como cada indivíduo lida com seu espaço privado, e age em relação à natureza em coesão, tem o poder de reconfigurar o status quo da urbanização. Quem sabe, o micro em efeito cascata se torna macro, e a ilha de calor aos poucos é ressignificada por vários oásis. [1] Fundadora e diretora da Plataforma9, autora do livro Anarco-transcriação.

  • Como editar a escrita de pessoas no espectro do autismo

    Por Mirna Wabi-Sabi Para aqueles de nós que trabalham editando a escrita dos outros, uma das primeiras lições é que cada pessoa que escreve lida com as edições de maneira diferente e é útil ser flexível na abordagem do feedback. Na minha carreira, já aconteceu que a escrita de alguém e a resposta às edições me fizeram suspeitar que a pessoa poderia estar no espectro do autismo, mas nunca há necessidade de confirmar um diagnóstico leigo, apenas de adaptar sua abordagem como seria feito com qualquer outro indivíduo escritor. Recentemente, no entanto, alguns escritores me procuraram com textos sobre estar no espectro, e isso me levou a identificar alguns padrões e a organizar algumas das minhas ferramentas de edição. Esta informação pode ser útil para aqueles que já sentiram vontade de abandonar um projeto porque observaram esses sinais, mas os interpretaram como confusão, hostilidade ou inexperiência. Espectro do autismo: Sinal 1–Prolixo Quando uma passagem curta não é clara e um editor pede uma explicação, o texto volta com algumas páginas extras, que não necessariamente abordam o problema original. Possível causa: A prolixidade extrema como resposta a um pedido de clareza pode ser um sinal de que a pessoa escritora está insegura sobre a sua capacidade de se fazer entender, muitas vezes até para si mesmo. Ferramenta: Nesse caso, não há necessidade de abandonar o projeto porque ficou muito longo e ainda mais confuso do que o primeiro rascunho. Converse com o indivíduo escritor e chegue a um acordo sobre qual é o ponto principal do artigo. Com isso em mente, remova as passagens, frases ou parágrafos que fogem do ponto principal. Ao retirar essas camadas, você verá que há uma narrativa por baixo. Sinal 2–Recuar Às vezes, em resposta a uma editora pedindo uma explicação, um escritor recua, dizendo “deixa pra lá, não quero mais escrever ou publicar”. Possível causa: A frustração com os desafios de tentar se conectar com um público pode levar qualquer escritor a um caminho de dúvida misturada com aborrecimento. Para alguém no espectro, esse sentimento pode ser amplificado, fazendo o indivíduo querer desaparecer. Ferramenta: Assegure ao escritor que essa frustração é uma resposta natural ao processo de escrita e que seu trabalho como editor é ajudar a construir uma ponte entre o trabalho e o público. Em seguida, forneça exemplos de explicações (seja tão criativo quanto quiser em suas sugestões). Dessa forma, você inicia uma sessão de brainstorming, inspirando o indivíduo escritor a apresentar sua própria explicação. Sinal 3–Diário Alguns textos soam como páginas de um diário. É quando um indivíduo que escreve começa muitas frases com a palavra “eu”, a narrativa dos eventos é muito linear e há dificuldade em dar o salto de sua experiência pessoal para uma mais universal. Possível causa: O estilo narrativo de “Eu fiz isso, depois fiz aquilo. Portanto, isso é o que eu fiz” pode ser um sinal de que o indivíduo está tendo dificuldade em se colocar no lugar de outra pessoa. Nesse caso, na pele da pessoa leitora que pode estar se perguntando: “e daí, o que isso tem a ver comigo?” Ferramenta: Incentive o escritor a evitar iniciar frases/parágrafos com a palavra “eu” ou “isso”. Dê exemplos de como fazer isso, tornando o objeto o sujeito da frase. Faça a pergunta: “para uma pessoa leitora que não tem essa experiência específica, como isso se aplicaria a ela?” Sinal 4–Prosa Talvez a escrita esteja estruturada de maneira incomum – parágrafos extremamente longos, incapacidade de separar temas e organizar esses parágrafos, ou quebras de linha e pontuação estranhas. Possível causa: Visão geral do texto confusa e falta de estrutura são sinais de que a escrita está acontecendo como um fluxo de consciência que não prioriza a compreensão da pessoa leitora ou o acesso ao conteúdo. Esse tipo de escrita está associado aos já mencionados sinais Prolixo e Diário, e mostra que o indivíduo escritor está tentando esclarecer o conteúdo para si mesmo. Ferramenta: As mesmas ferramentas usadas para Prolixo e Diário podem ser usadas aqui, com a adição de abertura para abordagens inovadoras de estrutura. Se o ponto principal do artigo for claro, ser flexível para acomodar o uso instintivo da estrutura da pessoa escritora pode ser útil. Tais como, poesia em prosa, quebras de linha rítmica e assim por diante (eu, pessoalmente, encorajaria a academia e seus profissionais a serem mais flexíveis quando se trata disso). Claro que nem todo mundo que é propenso a alguns desses comportamentos como pessoas que escrevem está no espectro do autismo. Mas entender que esses comportamentos podem ser abordados de maneira eficiente é útil para todos nós. Habilidades de comunicação são coisas que todos nós temos que aprender, e muitas vezes temos dificuldade nisso.

  • ChatGPT só é uma ameaça para quem educa ou escreve mal

    Por Mirna Wabi-Sabi ChatGPT é um assunto que provoca muito debate sobre o futuro da educação no mundo da escrita. A Inteligência Artificial que escreve esses textos, corretos e bem pesquisados, são uma ameaça apenas para educadores e escritores que esperam que uma boa escrita seja mecânica e inautêntica. Raramente descrevo textos como “mal” escritos, porque geralmente os problemas de escrita tem mais a ver com fracassar em alcançar um propósito do que com a qualidade da agrupação das palavras. Se o seu propósito como pessoa escritora é alcançar uma certa audiência com uma certa mensagem, mas sua escrita não está satisfazendo esse objetivo, isso não é um texto mal escrito, é um texto ineficaz. Por outro lado, um texto cheio de “erro” gramatical pode ser extremamente eficaz, portanto muito bem escrito. Toda pessoa que escreve já criou textos que fracassaram em seu propósito. Ninguém nasce sabendo escrever de forma eficaz, e o grande desafio do trabalho de escrita é ter disposição de afinar a mensagem que você quer passar para uma audiência e afiar as ferramentas que você usa para entregar essa mensagem. O ChatGPT é um robô. Quando um robô for autêntico, usar a escrita dele como se fosse sua seria plagio. Mas não é essa a realidade em que vivemos. Um texto gerado por Inteligência Artificial é nada mais do que uma máquina automática de venda de texto. E o valor nutricional do que sai dela é aquilo — uma coisa ultra processada, industrializada, que sai igual de todas as máquinas, é eficaz em momentos de escassez, mas se você só viver disso provavelmente vai morrer cedo. O que estamos fazendo, como escritores e educadores, para estimular a autenticidade? Se na sala de aula a autenticidade não existe, a aula é medíocre e estimula estudantes a serem medíocres. Se um teste é facilmente hackeado por um robô, ele não é eficaz, e quem passa nele não fará um trabalho eficaz. Isso sem mencionar que já existem ferramentas como GPTZero que visam revelar se um texto foi majoritariamente escrito por Inteligência Artificial, assim como já existem, há muito tempo, diversas ferramentas que visam detectar plagio. O ChatGPT não é uma ameaça, a ameaça é um sistema educacional de longa data que fracassa ano após ano em formar pessoas jovens para produzir conteúdo intelectual verdadeiro e impactante. Se estamos preocupados com o ChatGPT, na realidade, deveríamos estar em pânico sobre como o sistema educacional encoraja a imitação e a insinceridade.

  • Mulheres à luz do Ramadã

    Por Mirna Wabi-Sabi A procissão de Arbaeen, observada principalmente pelos xiitas, que representam cerca de 15% dos quase 2 bilhões de muçulmanos do mundo. Foto de Mostafa Meraji em Mehran, Irã (2019). À luz do Ramadã, há algumas considerações das quais qualquer não-muçulmano pode se beneficiar enormemente. Tive muito pouca experiência com muçulmanos crescendo no Brasil, nos Estados Unidos e nos Países Baixos, e aprender sobre o Islã iluminou vários comportamentos que eu nunca enxerguei como cristãos. No ocidente, incluindo lugares fortemente colonizados e aspiram à ocidentalização, como o Brasil, o cristianismo é onipresente. Frequentemente, não prestamos atenção para como são religiosas todas as nossas instituições e normas, desde a maneira como nos vestimos até os calendários e alfabetos que usamos (pág. 418-421). Reconhecer as raízes religiosas dessas normas é útil para qualquer pessoa que queira melhorar as condições sociais de suas comunidades em países ocidentais não-muçulmanos, porque essas normas cristãs geralmente são tão opressivas quanto imaginamos que as islâmicas sejam. “Tão opressivo quanto” é complicado. A opressão assume muitas formas, e há pouca utilidade em classificá-las. Mas é possível que algo que vemos diariamente pareça menos opressivo do que algo que raramente vemos ao vivo. Há uma opressão que se normaliza, e nós confundimos isso com uma indicação de que a norma é “menos opressiva”. O hijab, por exemplo. No Brasil é uma raridade. Muitos dos brasileiros não sabem a diferença entre hijab e burca, e vê todas as vestimentas do tipo como um símbolo de opressão feminina. Isso se aplica para pessoas em todo o espectro político entre direita e esquerda. É difícil imaginar essas opiniões sendo sustentadas por pessoas que convivem com ou já conheceram mulheres felizes e bem ajustadas que usam o hijab no Brasil. Sim, é possível, essas mulheres existem. E após uma inspeção mínima, pode-se perceber que os sentimentos de infelicidade ou alienação decorrem principalmente da insegurança econômica, que muitas vezes decorre de reações islamofóbicas aos seus hijabs – e não da religião ou do próprio hijab. Mariam Chami, uma muçulmana brasileira que agregou mais de meio milhão de seguidores no Instagram ao combater a islamofobia com o humor. De qualquer forma, todas as mulheres às vezes se sentem infelizes e mal ajustadas. Em um momento ou outro, lidamos com relacionamentos difíceis com os outros, com nossa espiritualidade, com nosso trabalho ou com nosso senso de independência. Temos muito mais em comum com as mulheres muçulmanas do que imaginamos e muito a aprender umas com as outras. A discussão sobre cobrir a cabeça e a vestimenta modesta pode importar para qualquer mulher, em qualquer lugar. Como mulher num contexto ocidentalizado, é impossível evitar considerar o nível de modéstia de nossas roupas sempre que nos vestimos. Consideramos constante e automaticamente, sem perceber. Há uma consideração cuidadosa sobre onde estaremos, como chegaremos lá e quanta pele é “apropriado” expor em cada etapa do caminho. E por apropriado, quero dizer, quanto cobrir e em qual contexto, literalmente devido ao medo por nossa segurança física (ou como declarações de desafio). No Ocidente, a maioria das mulheres oscila de um ponto ao outro num espectro entre ser sexualizada demais e não se sentir desejável o suficiente. Muito do valor de uma mulher no Ocidente é baseado em quão sexualmente desejável ela é, porque nosso valor costuma ser proporcional ao dos homens com os quais nos associamos. Este é um paradigma opressivo do qual não estamos conscientes, ou pelo menos não tão conscientes quanto estamos dos hijabs e outras vestimentas modestas quando as vemos. Pode bem ser nós que somos a influência tóxica, já que as obsessões opressivas do ocidente com a objetificação dos corpos das mulheres, a hipersexualização de meninas, e as luxuosas cirurgias plásticas (em particular) estão se infiltrando no mundo muçulmano. Quando penso nos valores e práticas de adoração do povo muçulmano em geral, penso no comportamento inescrupuloso dos chamados homens cristãos que encontro diariamente e em como é hipócrita para as mulheres ocidentais julgar um mais duramente do que o outro. Uma vez, notei um motorista do Uber olhando para o meu decote e começando a me fazer perguntas para ver o quão bêbada eu estava. A resposta das pessoas a essa história, inclusive a minha, foi nunca entrar num Uber sozinha, bêbada, com muita pele à mostra. Fazemos isso porque é mais fácil controlar nosso próprio comportamento do que o comportamento de homens desconhecidos (quando não assumir o controle não é uma opção). A consideração da modéstia vai além das roupas, é também sobre a obsessão com o álcool. Tantas interações sociais de alguma forma giram em torno de bebidas alcoólicas. E requer contato com músicas desagradáveis, se não totalmente ofensivas. O carnaval brasileiro é o máximo em indecência, álcool e música provocativa. Na teoria religiosa, o Carnaval é uma celebração pré-quaresma, que deve ser seguida pela observância de como Jesus jejuou no deserto e resistiu a todos os tipos de tentação. Comemoramos isso fazendo muito de tudo que Jesus assumidamente não fez. Até a palavra Carnaval vem do latim Carnis levare, que significa “afastar-se da carne”. Claramente, nós pegamos isso e fazemos exatamente o oposto. A última Globeleza, tradição que não sobreviveu à pandemia devido às acusações de machismo e racismo na tentativa de retorno esse ano. Há algo de especial em abster-se de música e álcool e começar a se vestir com modéstia. Impõe uma mudança de paradigma e pode nos obrigar a olhar para coisas que talvez sejam mais autênticas em nós mesmas. Como estamos realmente nos sentindo? Queremos estar neste lugar, com essas pessoas? O que queremos da vida e quais são nossos valores? Há poder na música, nas drogas e roupas – poder espiritual. Há uma razão para a oração e os cânticos. Há uma razão para restrições alimentares religiosas e substâncias alucinógenas sagradas. Há significado nas vestimentas religiosas. Isso pode não ter significado para todos igualmente, mas perdurou como prática por milênios em praticamente todos os cantos do planeta ocupados por humanos. Se passarmos um momento jejuando e orando, ou nos abstendo de música, drogas e álcool, esse momento pode nos conectar a algo um pouco mais verdadeiro sobre nós mesmos – ao que veneramos. Todos nós veneramos alguma coisa, estejamos conscientes de sua natureza divina ou não. Afirmar amplamente que o Islã é opressivo implica não haver espaço para os muçulmanos num mundo visto como justo. Essa retórica visa implicitamente legitimar o extermínio de um grande segmento não-ocidental da população mundial, em sentido literal ou epistemológico. E o extermínio étnico ou religioso é um elemento central do fascismo. Os muçulmanos são tão diversos quanto os cristãos e têm tanto direito de praticar sua fé quanto nós temos o direito de reprimir atos vis e abusos de poder que permeiam todos os segmentos da sociedade (tanto as sociedades cristãs quanto as muçulmanas). Talvez devêssemos nos perguntar como podemos criar espaço para a comunidades muçulmanas em sociedades igualitárias. Como criar espaço para que todas as tradições epistemológicas floresçam em novas eras. _____

  • Será que o PL das Fake News realmente combate a desinformação?

    O PL das Fake News é um assunto polarizante. Desinformação permeia o universo digital, e as opiniões tendem a ser a favor da lei na esquerda, ou contra na direita. Para ir além da política binária e ao mesmo tempo não acabar no ‘centrão’, podemos afirmar que fake news é um problema sério e podemos questionar até que ponto essa lei é eficaz, aplicável, e duradoura para combatê-las. Será que ela realmente resolve o problema de desinformação nas redes? Vale lembrar que muitas vezes a lei é deliberadamente vaga para que sua interpretação possa ser flexível. Isso coloca bastante poder nas mãos de advogados e advogadas, e em suas habilidades argumentativas. Portanto, pessoas que não tem acesso a profissionais jurídicos com vasta experiência, conhecimento e tempo, saem em desvantagem. Questões que o PL das Fake News aborda vagamente — Como identificar contas inautênticas “sem prejuízo da garantia à privacidade” e sem coletar ainda mais dados dos usuários? Quais critérios são usados para identificar se uma conta foi “criada ou usada com o propósito de disseminar desinformação”? Definir propósito pode ser extremamente arbitrário, e requer uma investigação detalhada e motivo para provocar essa investigação. Um ativista que usa pseudônimo pode ser impossível de distinguir de um troll bolsonarista sem julgar apenas a natureza da opinião que cada um compartilha nas redes. Distinguir uma opinião de desinformação requer senso crítico de todas as pessoas, não só de profissionais jurídicos ou funcionários de empresas de tecnologia. — Quais ferramentas serão usadas para garantir que não haverá “restrição ao livre desenvolvimento da personalidade individual, à manifestação artística, intelectual, de conteúdo satírico, religioso, ficcional, literário ou qualquer outra forma de manifestação cultural”? Se houvesse uma lista de coisas que distinguisse uma conta ‘inautêntica’ de uma conta satírica, ou ‘desenvolvimento intelectual’ de descarada disseminação de desinformação, os inautênticos e descarados teriam um manual de como se comportar, enquanto ‘satíricos’ e ‘intelectuais’ migrariam para outras plataformas de disseminação de informação. Talvez por isso uma lei raramente consegue ser específica o suficiente para ser eficaz, e vaga o suficiente para ser interpretada em diversos contextos. — Quais são os métodos de “verificações provenientes dos verificadores de fatos independentes com ênfase nos fatos”? Como se executa “uma verificação criteriosa de fatos” e como serão selecionadas as pessoas jurídicas com a função de verificar os fatos? O uso excessivo da palavra fato não te aproxima dele, possivelmente até te afasta. Na ciência se entende que um fato existe num contexto, e ele pode e deve ser a qualquer momento questionado. Um fato provavelmente se resume a uma evidência que encontra um certo nível de consenso, um consenso que pode ser a qualquer momento revogado, porque como contextualizamos e interpretamos esses fatos é passível de erro humano. Não existe um grupo de pessoas jurídicas que possa exercer a função de definir fatos no universo da internet. O que podemos fazer é ter o senso crítico para identificar ferramentas de manipulação, ausência de fontes, especulação, conflitos de interesse, etc. — O que constitui um uso das plataformas incompatível com o uso humano? Qualquer ferramenta de agendamento de postagens é considerada um ‘disseminador artificial’? Disseminadores artificiais podem facilitar o trabalho de profissionais de comunicação e mídia. Um dos truques de empreendedorismo é “ache o que funciona, e o automatize”. Se você, por exemplo, entrou numa loja virtual, colocou algo no carrinho e saiu sem comprar, uma mensagem automática da loja pode aparecer na sua caixa de entrada te lembrando do produto que você deixou lá. E-mails e posts automatizados são normas na indústria virtual, e é existencial se perguntar qual é o número que desenha a linha entre uma automatização humana e desumana. O custo para os “provedores de aplicação” De acordo com essa lei, nós não poderemos participar de grupos de WhatsApp ou Telegram com mais de 256 pessoas, ou encaminhar alguma mensagem para mais do que 5 pessoas. Em período eleitoral, o encaminhamento se limita uma pessoa ou grupo. Isso porque o WhatsApp e o Telegram têm mais de 2 milhões de usuários no Brasil. Em resposta, o Telegram enviou uma mensagem bilíngue aos seus usuários anteontem acusando o Projeto de Lei de censura, entre outras coisas. Ontem, eles comunicaram que receberam “uma ordem do Supremo Tribunal Federal que obriga o Telegram a remover [a] mensagem anterior sobre o PL 2630/2020 e a enviar uma nova mensagem aos usuários” dizendo que ela “caracterizou FLAGRANTE e ILÍCITA DESINFORMAÇÃO”. Ao analisar o primeiro comunicado do Telegram, nada mais vejo do que uma empresa tentando se proteger financeiramente, apesar de não mencionar isso diretamente. O tribunal também não menciona o âmbito financeiro desse debate, mesmo sendo claro que a grande motivação dessas empresas é o lucro – o debate político-eleitoral só se enquadra como prioridade quando afeta essa motivação econômica primordial. Não tem como essa lei não custar esses “provedores de aplicação” muito dinheiro, em termos de mão de obra de programação e monitoramento, e de potencial perda de usuários. A realidade é que, quem sair dessas plataformas de mídia social por não poder amplamente disseminar conteúdo duvidoso achará outro veículo – qualquer outro veículo, como vemos acontecer em toda a história das grandes mídias. O comunicado não é desinformação, é uma interpretação da lei da perspectiva de um agente com um óbvio conflito de interesse. É uma coisa muito séria nós não conseguirmos distinguir entre opiniões divergentes, desinformação, e fake news. Nem toda desinformação é fake news, e nem toda a opinião de pessoas e instituições que disseminam certas narrativas por interesse próprio se iguala a desinformação. Se o governo começar a usar esse termo para descrever tudo que se opõe a ele, provavelmente encontraremos algo parecido com o totalitarismo. O que precisamos não é de um governo ou conjunto de profissionais jurídicos com o poder de decisão sobre o que é verdade e fato. O que precisamos é de uma população com acesso a recursos de saúde e educação para desenvolver um senso crítico. Será que essa lei realmente estimula o senso crítico da população, ou visa apenas tomar parte do poder que empresas de tecnologia têm sobre a população? Ou pior, nada mais é do que a politicagem de um governo querendo demonstrar grandes esforços sem intensão de mudanças estruturais? Sempre que nos deparamos com conteúdos online, temos a oportunidade de analisar esse conteúdo, fazer questionamentos e refletir. Esse processo requer estímulo, treinamento e acesso a conhecimentos diversos, que vão além de posts em particular, como fake news. Conhecimento sobre como fontes de informação são acessadas, como estratégias de comunicação são desenvolvidas, e até como websites funcionam, pode fazer toda a diferença para uma pessoa desenvolver um senso crítico sobre o que ela vê online. Uma lei não consegue preencher o abismo causado pela desigualdade milenar entre a minoria que controla a narrativa, e a maioria que a consome. A democratização do controle da narrativa será conquistada por meio de uma completa reestruturação da distribuição de recursos na sociedade, e não por meio de uma disputa entre agentes que já detém poderes monumentais. ____ Escrito por Mirna Wabi-Sabi, diretora e editora-chefe da Plataforma9.

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