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77 itens encontrados para ""

  • 'Mata das Bruxas': livro reúne entrevistas e textos de Silvia Federici

    De acordo com Silvia Federici, a primeira edição de 'Mata das Bruxas', publicado pelo coletivo Plataforma9, traz diálogos e artigos que discutem o papel da mulher na sociedade capitalista. O coletivo jornalístico Plataforma9 publicou em 2021 a primeira edição do projeto "MATA das Bruxas", com a apresentação e introdução do trabalho da pesquisadora marxista Silvia Federici, pensadora italiana especialista no tema da exploração do capital sobre o corpo e o trabalho de mulheres, especialmente mulheres pobres. Para Mirna Wabi-Sabi, editora do coletivo, "a leitura, diferentemente de afiliação ou título, revela um compromisso ao conhecimento que não se permite abrir mão da liberdade e da criatividade pessoal". Por Camila Araújo Continue lendo na Opera Mundi

  • O que significa Justiça no caso do linchamento de Moïse Kabagambe

    Artigo publicado na Le Monde Diplomatique Brasil. FOTOS: Manifestação por Justiça no caso Moïse Kabagambe na Barra, Rio de Janeiro (Crédito Fabio Teixeira) Sábado, 5 de fevereiro, manifestantes foram às ruas de grandes cidades brasileiras pedindo Justiça. Um jovem africano foi linchado – torturado até a morte – em uma praia no Rio de Janeiro. Os perpetradores, também pessoas trabalhadoras, estão sob custódia e alegam que não houve intenção de matar; que eles estavam reagindo ao comportamento errático e irresponsável do imigrante. A família da vítima, por outro lado, alega que ele só estava pedindo para ser remunerado por dois dias de trabalho. Nenhuma narrativa, no entanto, justifica o que aconteceu, uma barbárie que foi filmada em vídeo. A prisão dos homens que amarraram outro homem e o espancaram é o que consideramos Justiça? Moïse Kabagambe foi um refugiado congolês que morou no Brasil uma década. Na praia onde foi brutalmente assassinado, era conhecido como “angolano”. Isso é como apelidar um estadunidense de “mexicano” ou um brasileiro de “venezuelano”, porque são países vizinhos no mesmo continente. A falta de entendimento de sua comunidade sobre as circunstâncias que o trouxeram ao Brasil em primeiro lugar já é uma injustiça – que não será revertida com a prisão de ninguém. Em 2008, a Segunda Guerra do Congo, que começou em 1998, matou mais de 5 milhões de pessoas e é considerada a mais mortal desde a Segunda Guerra Mundial. A primeira aconteceu logo antes, também na década de 1990, e foi resultado direto de forças coloniais e imperialistas se intrometendo com líderes africanos e explorando as diferenças étnicas na região. O Zaire, que hoje é conhecido como República Democrática do Congo, foi feito de corda em cabo de guerra entre forças comunistas e anticomunistas, até a dissolução da URSS e do interesse dos EUA em endossar seu líder. Moïse nasceu no ano em que uma guerra terminou e outra começou, um período em que mais de 5 milhões de crianças não receberam educação devido à turbulência política – os níveis de alfabetização estavam em seu nível mais baixo e o trabalho infantil e a exploração em seus níveis mais altos. Ao longo de sua juventude, seu país esteve sob uma operação das Nações Unidas de “manutenção da paz” (Monusco), que fez mais para criar uma indústria clandestina de armas do que evitar conflitos. Entre os países envolvidos nessa operação estava o Brasil, com seus militares e policiais. Hoje, um general brasileiro é Comandante da Força da Monusco, e é o quarto comandante do Brasil a ocupar o cargo, tornando-o o país mais representado no projeto em termos de liderança. Muito antes de tudo isso, a região do Congo já havia passado por atrocidades sob o regime belga e sua indústria da borracha. Na virada do século passado, entre a última década de 1800 e a primeira de 1900, africanos sob o regime colonial do rei belga foram escravizados, mutilados e mortos a taxas bárbaras. Fome, doenças e exploração perpetuada pelo colonialismo e suas indústrias com fins lucrativos foram responsáveis ​​pela morte de mais da metade da população local; incontáveis ​​vidas. Mas a intromissão estrangeira não é tudo o que há a se dizer sobre este país da África Central. (Crédito Fabio Teixeira) Cultura e resistência Apesar do incessante oportunismo geopolítico, o Congo sobreviveu geograficamente e prosperou culturalmente. De acordo com o WWF, “a Bacia do Congo é habitada por humanos há mais de 50.000 anos e fornece comida, água fresca e abrigo para mais de 75 milhões de pessoas”. O rio Congo é o maior em volume depois do rio Amazonas. Sua floresta tropical também é a maior depois da Amazônia. Como pessoas brasileiras, nossa paixão pela preservação do nosso bem mais magnífico e precioso deve ser estendida ao nosso vizinho ecológico, já que, juntos, nossos países são os detentores das mais “importantes áreas selvagens que restam na Terra”. Música e literatura congolesa também encontram na expressão artística uma ferramenta de autoestima e poder. Kolinga, um grupo congolês, hoje faz hinos feministas decoloniais. No século passado, hits de soukous e rumba congolesa tornaram-se clássicos internacionais, bem representados na compilação Congo Revolution “Revolutionary and Evolutionary Sounds From The Two Congos 1955-62”. A literatura, que merece tradução e distribuição ampla, é ainda mais comovente e representativa da maré artística da nação. O poema “Segunda Dimensão” do escritor congolês Rais Neza Boneza, em seu livro “Nômade, sons do exílio”, é particularmente perspicaz, talvez até especificamente para a situação de Moïse e sua comunidade imigrante no Brasil. Que ele fale por si: Perto de sua mesa está um copo de água; Pela janela ele olha para o transeunte: Ele observa e sempre espera, espera, espera. A amargura nutre seu ser; Sujeito a mal-entendidos E falsos ares de ‘gente’ Ele é um prisioneiro. Ele se senta, as mãos em volta do queixo Pensando solenemente Em seus sonhos, seus espíritos escapam O mundo das dificuldades E viajar nas extensões do Céu azul selvagem Ele se inclina sobre a mesa, meio preocupado, meio satisfeito. Neste lugar dele não há compaixão; O mal ronda sua presa; Rancor canta sua melodia da manhã, Um estranho à sua terra, Ele bebe melancolicamente de seu copo… Um gole de liberdade. Marginalizado e carente, Muito longe está soprando para ele o vento da liberdade Ele é um clandestino, sempre sem endereço, Não um nômade, mas um recluso no meio da humanidade. Em sua clausura de cristal imbatido* Ele segue os ecos de seus gritos silenciosos. Uma rocha de loucura, só a solidão lhe responde. Ele se assusta! Seu coração bate rápido! Ele se levanta da cama! Ah! É apenas um pesadelo! Este é um pesadelo do qual Moïse Kabagambe e sua família não vão acordar, nem a diáspora africana será protegida da desumanidade de tais atos. Mas podemos, como sociedade, começar a interpretar a Justiça como um conceito abrangente – não apenas como algo que o sistema judicial pode fornecer. Justiça significa ver, respeitar e apreciar o valor de acolher pessoas diferentes de nós em nossas comunidades. Justiça significa fazer o que pudermos para aprender, entender e lutar contra um paradigma geopolítico alimentado pelo abuso e pela exploração (por exemplo, exigindo reparações). Justiça significa pensar, perguntar e sentir a Humanidade em todos nós. Manifestação por Justiça no caso Moïse em São Paulo, MASP, 5 de fevereiro — Foto e vídeo, (Crédito Mirna Wabi-Sabi) _____ *Nota de tradução: ‘Imbatido’ como o particípio passado de ‘imbatível’, do original ‘unbroken’. _____ Mirna Wabi-Sabi é escritora, editora e tradutora. É fundadora e editora chefe da Plataforma9 e autora do livro de bolso bilíngue Anarco-Transcriação.

  • A narrativa desumanizante em torno dos assassinatos policiais no Rio de Janeiro

    Essa publicação foi vencedora do 39.º Prêmio de Direitos Humanos de Jornalismo na categoria fotografia — troféu paulo dias. E recebeu menção honrosa no 44.º Prêmio Vladimir Herzog. Aviso de gatilho: violência e morte. Fotos por Fabio Teixeira, tiradas no dia 11 de fevereiro de 2022 na Vila Cruzeiro. O conteúdo dessa série fotojornalística representa um enigma ético para mim como escritora e merece um aviso de gatilho severo. O termo “aviso de gatilho” é frequentemente associado à chamada cultura "Woke", de “guerreiros da justiça social”, mas, aqui, eu o uso literalmente. Gatilhos reais foram acionados e você como audiência está preparada para ver evidências fotográficas das consequências? Por um lado, reproduzir essas imagens é, também, reproduzir a violência bárbara nelas retratada. Por outro lado, talvez, estar exposta a ela, como pessoa leitora e cidadã, possa fornecer a dose de realidade necessária para despertar uma consciência combativa, que pode ser usada para provocar mudanças reais. Mudança não apenas em quais gatilhos estão sendo acionados, onde e quando. Mudança na forma como falamos uns sobre os outros e uns com os outros. As palavras usadas para descrever o que aconteceu no Rio de Janeiro dia 11 de fevereiro de 2022 foram baseadas principalmente no que a Polícia Militar teve a relatar. “Criminosos” foram mortos numa favela. São não-identificados, sem nome, mas eram 8, e eram “marginais”. Segundo o porta-voz da polícia, eles estavam atrás de Chico Bento, um líder de quadrilha que fugiu e usou jovens, pobres e negros como escudo. Em outras palavras, o homem procurado fugiu porque a polícia estava ciente da estratégia e não estava disposta a sacrificar vidas inocentes. Vidas foram sacrificadas mesmo assim, sem vergonha, inteligência ou escrúpulo. Os cadáveres foram tratados de forma desumana, talvez apenas como um reflexo final de como os corpos eram tratados quando estavam vivos — e a brutalidade continua na disseminação da retórica em torno de quem eram essas pessoas. Assassinatos policiais Neste descanso sem paz, não apenas os mortos são as vítimas. Toda uma comunidade é submetida à narrativa desumanizante usada pela polícia, e perpetuada pelos meios de comunicação de massa, para justificar ações injustificáveis. Então, ao invés de repetir o que já foi dito sobre esse caso — qual favela, qual líder de quadrilha, quantas armas, quantas drogas — devemos discutir quais são as consequências dessas operações, ou assassinatos policiais. Não há evidências de que as operações da Polícia Militar ou a presença da Unidade de Polícia Pacificadora nas favelas cariocas tenham alcançado algum sucesso no controle da indústria de drogas e armas ilegais. Comunidades marginalizadas são aterrorizadas tanto pela polícia quanto pelos traficantes locais. De fato, comunidades negras marginalizadas são aterrorizadas pelas autoridades desde antes da existência do crime organizado, antes mesmo da existência da polícia ou do Estado que ela protege. O que é 'crime organizado'? Em primeiro lugar, deve haver o conceito de crime, definido por lei e respaldado por instituições governamentais. E para que seja organizado, deve ser maior que uma única infração, grande o suficiente para se tornar uma indústria paralela e lucrativa. As favelas se organizaram o suficiente para suportar um legado de terror que persistiu por meio milênio. A força policial que realiza operações de “pacificação” nas favelas foi criada antes da formação do Estado brasileiro, para 'caçar' pessoas escravizadas em fuga. Em outras palavras, a instituição policial precede a constituição e o estabelecimento de direitos humanos básicos. O que distingue o crime organizado das operações fracassadas de inteligência policial é o apoio das autoridades, sejam elas quais forem. Ao longo da história, testemunhamos mudanças na autoridade institucional, da Monarquia, para a República, para uma moderna Constituição Liberal. Por toda parte, a Polícia persiste, comete crimes, às vezes auxilia organizações criminosas organizadas, mas, mesmo assim, segue controlando a narrativa. O direcionar o discurso público é a ferramenta mais valiosa de uma instituição. Sua capacidade de convocar apoio é o segredo de sua longevidade. Quando se trata da polícia e do exército, a narrativa de que “marginais”, “criminosos”, "terroristas" não são nada mais do que apenas isso não só sustentou como agravou a sede de sangue em grande parte da população. Os apoiadores de Bolsonaro, amantes de armas, anseiam pela punição brutal de criminosos, adoram vídeos online de roubos que deram errado. O slogan dos anos 80, criado por um Delegado de Polícia do Rio de Janeiro, ainda é alarmantemente popular: “Bandido bom é bandido morto." Não há dúvida de que o Brasil vive sob uma estratégia política de extermínio, a questão é qual narrativa um cidadão compra. Uma que propaga a ideia de que algumas pessoas merecem morrer porque não passam de criminosos marginais. E outra, que acredita que todas as pessoas merecem dignidade. Não existem criminosos, existem pessoas que cometem crimes. Não existem marginais, existem pessoas que foram marginalizadas. Não existiram escravos, existiram pessoas que foram escravizadas. Quando deixamos de ver a humanidade nos outros, falhamos ela em nós mesmos. Talvez, ao sermos confrontados com imagens de dignidade sendo maliciosamente negada aos outros, possamos lutar pela dignidade deles tanto quanto lutamos pela nossa. _______ Mirna Wabi-Sabi é escritora, editora e tradutora. É fundadora e editora chefe da Plataforma9 e autora do livro de bolso bilíngue Anarco-Transcriação.

  • Proteção ambiental da Mata Atlântica

    SOS Mata Atlântica Das estratégias políticas para combater o desmatamento localmente, devemos nos perguntar qual é a mais eficaz e adequada para nós como indivíduos: o voto, o lobby ou a conscientização da comunidade? Para aqueles que optam por evitar se envolver na política eleitoral, não é tarefa simples continuar essa prática diante das posturas e políticas grotescas do atual presidente. Por um lado, me parece que presidentes fazem menos em termos de política real e mais em termos de ‘vender’ ao público em geral e fabricar apoio para qualquer política que já esteja a caminho — o que é do interesse de um sistema econômico capitalista global em oposição aos interesses de eleitores. Por outro lado, os princípios sustentados por esses indivíduos em funções administrativas importantes têm o poder de direcionar o discurso e comportamentos em massa, normalizando valores retrógrados que têm repercussões concretas na sociedade. Engajar-se em iniciativas locais de lobby, no entanto, coloca em perspectiva quais são os resultados reais da votação em nosso ambiente imediato. Escrito por Mirna Wabi-Sabi "Eu moro em uma área única do Brasil com vegetação rochosa da Mata Atlântica — única o suficiente para conceder a demarcação de uma reserva de proteção natural chamada Serra da Tiririca. Essa demarcação veio depois de muitos danos terem sido causados ​​pela rápida e massiva indústria imobiliária dos últimos 40 anos. O terreno onde minha casa foi construída era um brejo, onde viviam jacarés e pássaros, além de plantas raras. Infelizmente, minha casa é uma das poucas, senão a única no bairro onde o crescimento espontâneo de plantas é permitido, e os animais são bem-vindos ao invés de espantados ou mortos." Leia na Le Monde Diplomatique

  • Os ultra ricos sonham com unicórnios da Fintech

    “A América Latina é conhecida por seus estilos de dança mambo e salsa, porém, há algo mais agitando a região”… (Salas, 2022) Alguma coisa boa poderia vir depois dessa abertura? FINTECH. Fintech é a abreviação de Tecnologia Financeira, e os investidores afirmam que será a solução para a desigualdade econômica. Inclui serviços bancários online, criptomoedas, crowdfunding, aplicativos de compras de ações, pagamentos móveis e assim por diante, como ferramentas para “inclusão financeira” de pessoas economicamente marginalizadas. Os ultra ricos têm a capacidade de convencer a si mesmos, e aos que os cercam, de que o que as pessoas pobres precisam para sair da pobreza é algo que um empreendedor pode oferecer. E o que é mais agitado na área de empreendedorismo do que gigantes da tecnologia no Silicone Valley? Novos aplicativos e invenções bancárias online estão sendo vendidos na América Latina como a solução para todos os nossos problemas financeiros — tornando as transações mais rápidas e baratas — como se o problema nas finanças de pessoas pobres fosse a falta de ferramentas para administrar o dinheiro, e não a falta de dinheiro. Este mês, a Forbes.com publicou um artigo esperançoso sobre como a fintech pode ser uma solução para a desigualdade de renda chamado “Fintech avança na América Latina” (Fintech Leaps Forward In Latin America), escrito por Sean Salas, CEO de uma empresa de serviços financeiros online com sede em Los Angeles. A Camino Financial, sua empresa, tem um site que proíbe visitas da minha região do Brasil — meu endereço IP está bloqueado, mas uma VPN anula a proibição. De acordo com o Departamento do Tesouro dos EUA, empresas de serviços financeiros na Internet, como a dele, “desenvolveram procedimentos de bloqueio de endereço de protocolo de Internet (IP)” para abordar sem sucesso os “riscos de conformidade da empresa.” A proibição de endereços IP de certas regiões geográficas pode ser feita se eles quiserem cumprir políticas de sanção dos EUA ou “satisfazer seus requisitos de diligência prévia” (Departamento do Tesouro dos EUA, 2004). Ou seja, o homem que escreveu para o site da Forbes sobre o potencial revolucionário da fintech na América Latina também é CEO de uma empresa financeira que proíbe visitantes online de determinados locais da América Latina. De todas as pessoas, ele sabe de primeira mão como a internet, especificamente os serviços financeiros baseados na internet, tem um potencial severo de se tornar inacessível, restritivo e caro – assim como os bancos já são. “Cinco bancos controlam mais de 80% de todos os produtos financeiros do Brasil. Juntos, esses bancos se tornaram os mais lucrativos do mundo. Se você ver as taxas de juros e taxas que os consumidores pagam por esses produtos, é extremamente caro.” (Salas, 2022) O que podemos fazer para garantir que estamos realmente resolvendo o problema dos Bancos, e não apenas transferindo o problema para a internet? Exigindo dignidade a todas as pessoas em primeiro lugar. O seu empreendedor local está pagando um salário digno a todos os seus trabalhadores? Essas novas gadgets brilhantes nos manterão entretidos e distraídos por algum tempo, mas certamente não resolverão o problema real com o qual lidamos: pessoas trabalhadoras pelo mundo inteiro não estão sendo pagas o suficiente. Os ultra ricos acumulam suas riquezas ao não pagarem seus trabalhadores um salário digno e, até que isso mude, essa crença na meritocracia continuará a decepcionar. Estar “na vanguarda da inclusão financeira” é remunerar adequadamente os trabalhadores e fornecer a todos os cidadãos necessidades básicas de saúde e educação – não fornecer maneiras modernas para que os pobres se sintam ainda mais quebrados e inadequados. Nesse sentido, “Unicórnios” da Fintech é um termo adequado para esses empreendimentos, pois estão claramente fora de contato com a realidade. Certamente, eles são úteis, pois podem ser usados (especialmente durante uma pandemia que exige distanciamento social), mas não devemos exagerar suas capacidades de mitigar a desigualdade. Inquestionavelmente, ainda temos um problema muito maior em mãos: há pessoas desabrigadas, famintas e morrendo enquanto oligarcas fazem guerra, destroem florestas e vão para o Espaço. Na verdade, alguns desses oligarcas provavelmente têm os pés na piscina das fintechs. A América Latina é conhecida por muito mais do que apenas ritmos e danças. É conhecida pela sua biodiversidade magnífica, natureza deslumbrante, resiliência indígena diante da exploração colonialista e o poder espiritual da diáspora africana. Se os empreendedores de fintech não reconhecerem a necessidade de venerar e proteger esse legado, suas contribuições para o cenário latino-americano serão mesquinhas. Fontes: Salas, Sean. (2022) “Fintech Leaps Forward In Latin America” US Department of the Treasury. (2004) “Compliance For Internet, Web Based Activities, And Personal Communications” Mirna Wabi-Sabi é escritora, editora e tradutora. É fundadora e editora chefe da iniciativa Plataforma9 e autora do livro de bolso bilíngue Anarco-Transcriação.

  • Um Guia para Publicação Online

    É evidente que fakenews, ou publicações online falsas, têm repercussões políticas seríssimas. Cenas de videogames foram compartilhadas nas redes sociais como cenas reais da guerra na Ucrânia. Situações como essas refletem as limitações da nossa atenção online. Será que tomamos o tempo de refletir e procurar fontes dos conteúdos midiáticos que consumimos? Produzir conteúdo midiático é esclarecedor para consumidores de mídia. Quem publica um artigo online tende a ter instituições e pessoas profissionais que se responsabilizam por esse conteúdo — Uma editora de um jornal, o criador de um blog, etc. Essas instituições têm sites, elas pagam pelo espaço que elas ocupam na internet (como um aluguel), e nesse contrato ha nomes de pessoas responsáveis pelo conteúdo que está sendo divulgado ali. Esses sites, nos melhores casos, dizem "quem somos", "de onde somos", "como somos financiados", "quais são os nossos princípios", etc. É importante não só saber como procurar essas informações, como também reconhecer o que significa quanto elas não estão disponíveis. Coisas postadas nas mídias sociais (facebook/instagram) são publicações e deixam de ser inéditas para outros sites de notícias que republicarem depois. Por isso, não se cobra ou paga por elas, pois a publicação original pertence à mídia social. Para coisas inéditas, a ideia é postar no site da instituição que se propõe a publicar o conteúdo, e depois postar nas mídias sociais com o link do site original. O ideal é que as mídias sociais sejam usadas para promover uma publicação, e não ser a fonte da publicação — Já que a mídia social é uma fonte com pouca credibilidade, é instável, e fora do campo de influência direta dos autores e autoras (O site do facebook não é seu, ou da organização que se propõe a publicar o seu conteúdo). Para Publicadores: Garanta que todas as pessoas que aparecem nos vídeos e fotos deram permissão para serem gravadas e publicadas. Crianças precisam da permissão dos pais. Essa permissão pode ser enviada em poucas palavras no corpo de um email, por exemplo. (Se o conteúdo for importante, borre ou cubra rostos de pessoas não identificadas, ou que não tiveram a oportunidade de dar permissão.) Imagens devem ter data, lugar, e crédito; uma descrição é bom, mas opcional. O conteúdo textual deve mostrar: Onde/Quando algo está acontecendo, O que está acontecendo, Por que isso está acontecendo, Por que isso importa para quem está consumindo esse conteúdo? OU Onde você está? O que você está fazendo? Qual a relevância/importância disso? Quando tomamos essas práticas de ética jornalística a sério na nossa produção de conteúdo, também esperamos o mesmo dos produtores de conteúdo que consumimos. E assim, nos tornamos consumidores de mídia mais responsáveis, e fazemos a nossa parte para combater as fakenews ao torna-las ineficazes. ___ Por Mirna Wabi-Sabi, professora de alfabetização midiática e editora.

  • Guerra na Ucrânia: “Se render não é uma opção”

    Este artigo vem acompanhado de entrevistas legendadas no YouTube, que também podem ser ouvidas no nosso podcast ou lidas como transcrição aqui. Enquanto milhões de pessoas escapam da guerra na Ucrânia, este mês, Kseniia Tomchyk voltou para a cidade onde nasceu, Berehove, perto da fronteira com a Hungria. Depois de ter passado 7 anos no Brasil, o conflito a motivou a retornar ao seu país natal para ajudar sua família. Além do amor e preocupação pelos pais, ela também é motivada por valores humanos. De acordo com Tomchyk, Putin é um “ditador psicopata” que não aceita a independência de seu país, e muito menos a tendência de seu povo de ir em direção aos valores europeus. O debate que circula esse acontecimento geopolítico trágico tende a focar na relação entre a OTAN e a Rússia, e políticas internacionais dos Estados Unidos. Mas, para Kseniia, “usar a ‘OTAN’ como explicação é uma desculpa esfarrapada”. Na intimidade da família, onde há sonhos de um futuro melhor, Kseniia mostra como os princípios éticos e morais de seu povo podem chegar mais perto da verdadeira razão deste conflito. Na entrevista acima, Kseniia se apresenta, e nos conta por que está voltando para a Ucrânia. O que são valores europeus, e como eles diferem dos valores russos? Kseniia descreve a Rússia como um país autoritário, onde não há democracia, a imprensa não é livre, e não ha liberdade em geral. Por outro lado, a Europa prega valores “democráticos: vida, liberdade e respeito”. Eles são formalizados num artigo do Tratado da União Europeia, e visam garantir que a população tenha a liberdade de “expressar opiniões”, inclusive através do voto. A Rússia, em teoria, também tinha eleições. Putin sempre ganhou, e quando ele chegou no limite de termos consecutivos, Medvedev entrou no poder, mas nunca se candidatou novamente. A Rússia Unida, o partido hegemônico do país, tem valores que existem em simbiose com os de seu líder. Esses princípios são denominados “conservadores”, “pragmáticos”, e “anti-radicais”. “Conservadorismo” pode ser visto como associado aos valores da igreja russa ortodoxa. Entre outras coisas, ela formaliza a categoria de Patriarcado, já que um indivíduo no papel denominado Patriarca exerce poder político e trabalha em proximidade com o partido. “Pragmatismo” pode ser visto como a priorização de assegurar a ordem, acima de qualquer outra motivação moral e ética (como liberdade de expressão). E “anti-radicalismo” representa a rejeição do paradigma político binário de esquerda e direita, favorizando a centralização ideológica e governamental. O ‘anti-radicalismo’, em particular, tem relação direta com o estado precário do jornalismo independente na Rússia — O que, recentemente, se tornou um problema global. A Rússia é notória por ser um lugar perigoso para jornalistas, com centenas de mortes e desaparições registradas. Desde os anos 90, após a queda da União Soviética, a constituição do país inclui a liberdade de imprensa, mas, na prática, jornalistas são coagidos a praticar a autocensura. Hoje, a Rússia se torna uma ameaça a jornalistas internacionais. Desde que a guerra na Ucrânia começou, pelo menos 12 jornalistas foram mortos. Uma ameaça à mídia, é uma ameaça à democracia, pois o povo precisa estar informado, ou ter acesso a perspectivas plurais para tomar uma decisão informada sobre suas posições políticas. Por esse motivo, dentre outros, Putin não é um líder que conceitualmente representa os valores da Democracia, mas ele tem o apoio de muitas pessoas na Rússia, assim como ha muitas pessoas que aderem aos princípios de seu partido. Se houvesse eleições, ele teria altas chances de ganhar. Kseniia acredita que "não podemos culpar isso apenas na falta de informação ou manipulação midiática. A população russa tinha acesso à internet antes deste conflito começar" e, em teoria, um mundo de informação estava ao seu alcance. O governo pode formalizar valores grandiosos e belos, e colocar eles no papel, mas cada pessoa também tem a responsabilidade de colocar esses valores em prática, no dia-a-dia. Agora, há uma oportunidade para essas pessoas repensarem essa posição complacente com valores duvidosos, já que a Rússia está com sua reputação abalada, e sanções estão causando desconforto em toda a população. Na entrevista acima, Kseniia nos conta o que tem feito na Ucrânia e sua perspectiva sobre situação política de seu país. [Transcrição disponível abaixo] A Europa tem suas contradições, ela acumulou riqueza através da ocupação e exploração de países colonizados, ainda tem Monarquias, e em muitos casos, pelo menos até recentemente, leis que proíbem “injúria à majestade” na mídia (Lèse-majesté). Portanto, quanto falamos de liberdade de imprensa, a coerção de jornalistas independentes não é uma prática exclusiva da Rússia. Nos EUA, alguns 'whistleblowers' famosos (e.g. Assange) também se exilaram, alguns até na Rússia, como é o caso de Snowden. No Brasil, temos políticos, pesquisadoras e escritoras que receberam ameaças ao ponto de se exilarem na Europa (Jean Wyllys, Larissa Bombardi, Marcia Tiburi, por exemplo). E também assassinatos políticos, como no caso de Marielle. Ir em direção a um valor europeu como a liberdade jornalística não necessariamente significa acreditar que a civilização europeia ou democrática seja superior, pois ela está longe de ser perfeita e de colocar seus valores propriamente em prática. No caso da Ucrânia, como descrito pela Kseniia, preferir um conjunto de valores, mesmo que ainda não sejam perfeitamente praticados, significa acreditar numa jornada em direção a um horizonte, um potencial desejável para o futuro. Isso existe em oposição a uma sociedade cujas autoridades oferecem um horizonte, um objetivo final para o povo, que apesar de visar a igualdade social e minimizar a desigualdade econômica — valores registrados no manifesto do partido Rússia Unida — também visa uma existência confinada no paradigma do Patriarcado cristão. E mais, onde autoridades têm o propósito de centralizar o poder através da erradicação de ideologias divergentes, em prol da ‘ordem’ através do controle social. Isso não quer dizer que alguns ucranianos não adotam valores russos e preferem escolher esse caminho. Considerando o histórico de coerção, corrupção e reportagens pouco verdadeiras, julgar a autenticidade dessas posições pode ser tentador. Mas no final, todos nós lidamos com desinformação que alimenta a polarização política. O que garante a existência de um Estado é o consentimento da população, e criar e manter esse consentimento é um grande desafio, tanto quanto é essencial para a eficácia de suas políticas. Em outras palavras, a população de um país democrata, em teoria, ativamente permite a existência do Estado e viabiliza suas ações. Porém, é comum que esse consentimento seja adquirido através da coerção e da manipulação midiática. Isso não é apenas verdade na Rússia. É comum, numa democracia, que indivíduos votem para um candidato “menos pior” — cujos valores não os representam robustamente — porque sabem que o político (geralmente um homem) tem mais chances de ganhar. Especialmente numa nação como os EUA, que, apesar de se considerar politicamente descentralizada e livre, as eleições são centralizadas em 2 partidos (Republican e Democrat). No Brasil, muitas pessoas que tinham críticas ao regime político do Lula e da Dilma, também se posicionaram contra o impeachment de 2016, e estão mais que dispostas a colocar o PT de volta no poder, se isso significar a remoção do Bolsonaro de seu cargo. Nenhuma opção é perfeita, mas é uma alternativa preferível, quando não enxergamos outra. Certas opções são preferíveis o suficiente ao ponto de arriscarmos nossas vidas para garantir que iremos em direção a elas. Na Ucrânia, “nenhuma pessoa ferida na guerra, que está no hospital agora em Berehove, pretende voltar para casa depois de se recuperar. Todos vão voltar à guerra. Queremos ser livres, e não existir para satisfazer os desejos e ambições de um indivíduo [Putin]” (Kseniia Tomchyk). O terror e a urgência desse paradigma global da democracia e da luta pela liberdade é que ele ameaça a sobrevivência de pessoas vulneráveis. Kseniia se arriscou ao voltar a sua cidade natal para defender seus valores, e apoiar sua família. “Grandes organizações ajudam, mas cada um fazendo a sua parte nos leva muito mais longe, e alcançamos muito mais.” Todos em seu vilarejo com espaço em casa estão abrigando alguma família refugiada. Doações de roupas, remédios e comida não param de chegar. “Me perguntam como eu posso voltar para a Ucrânia nessa situação, e eu respondo ‘como posso não voltar!’ Se render é dizer que concordamos. Preferimos morrer do que nos render a isso. Não é uma opção viver sob o controle do Putin. Ucranianos não querem ser escravos de um psicopata com ambições, e viver para satisfazer essas ambições. É até difícil responder à pergunta ‘por que não se render?’, essa possibilidade nem passou pela nossa cabeça. Se render não é uma opção.” ________ Mirna Wabi-Sabi é escritora, editora e tradutora. É fundadora e editora chefe da iniciativa Plataforma9 e autora do livro de bolso bilíngue Anarco-Transcriação.

  • Universidad de Costa Rica: Uma 'quimera' se tornando realidade

    Universidad de Costa Rica Lendas, mitos e história se unem para resgatar sonhos e ilusões de antigas culturas ao redor do mundo para criar novas quimeras e persegui-las até que se tornem realidade. Isso é possível graças a uma publicação que é, por si só, um ideal de um grupo de estudantes da Universidade da Costa Rica (UCR) que foi alcançado: a revista virtual Quimera. Segundo Ivannia Victoria Marín Fallas, diretora da revista, Quimera é um projeto cultural e educacional independente, gerado a partir da iniciativa de um grupo de estudantes da UCR, que visa difundir arte e conhecimento; não apenas virtualmente ou impresso, mas também por meio de atividades que envolvem membros da comunidade. Os eixos da publicação são a literatura, a história, o folclore e, em geral, o patrimônio das culturas antigas e sua sobrevivência . A revista é publicada semestralmente e é virtual, embora alguns exemplares também sejam impressos. De acordo com Marín, que é filólogo clássico e atual aluno do Mestrado Acadêmico em Literatura Clássica, os lucros obtidos com a venda de cada número são direcionados a uma organização não governamental social ou de bem-estar animal diferente em cada ocasião. “Desde a fundação deste projeto, trabalhamos constantemente, sem fins lucrativos, para incentivar e divulgar a criação literária e o conhecimento de diversas culturas por meio de nossas publicações digitais. Também organizamos atividades como o III Concurso Literário AFL de Mitologia Greco-Romana, em colaboração com a Associação de Estudantes de Filologia da UCR, entre outras”, explicou Marín. O diretor garante que a revista já chegou a 88 países e ultrapassa 45 mil visualizações. Os artigos foram lidos em países como Rússia, Itália, China, Brasil, Nova Zelândia e Espanha, país com maior número de visualizações seguido por Costa Rica e México. O quarto volume da revista será apresentado no próximo dia 15 de junho no Centro Cultural da Espanha na Costa Rica, a partir das 18h, e contará com a participação da equipe editorial composta por Félix Alejandro Cristiá, Victoria Marín Fallas e Masiel Coroa Santos. Da mesma forma, estarão presentes Penélope Gamboa, Xochipilli Hernández, Ulises Paniagua e Xóchitl Cuauhtémoc Xicoténcatl, que geraram conteúdo para a revista. Para mais informações você pode visitar o site da revista virtual Chimera clicando AQUI. O quarto volume de Quimera, nas palavras do editor Félix Cristiá: Em virtude das letras que acompanham este volume, entramos no misterioso mundo das plantas, graças a essa tentativa de entender a Linguagem Arborescente que Josué Rodríguez Calderón invoca em seu poema, talvez com o desejo de percorrer as leis que criaram os seres humanos e alcançar a simplicidade ao mesmo tempo tão complexa a que alude Xochipilli Hernández. Ao longo deste caminho pudemos perceber as mudanças naturais como um batimento cardíaco – insinua Xóchitl Cuauhtémoc – que se torna uma memória, uma Oferenda. Há muitas maneiras de se aproximar. Não é esse o segredo guardado pelo sábio avô mencionado por Hubert Malina? Esses segredos, visíveis apenas para aqueles que usam seus sentidos acima da razão, repousam entre as árvores recitadas para nós por Alberto Arecchi e Carlos Belziti, nos Lírios de Pablo Guisado, na chuva de Masiel Corona Santos, no milho. Falamos de um ser que se metamorfoseia. Nossos ancestrais tiveram a coragem de tentar decifrar a síntese entre o visível e o inexperiente, mas não puderam fazer mais do que observar atentamente. Através do mito, e talvez o que mais nos anima neste momento, a história, eles interpretaram e ensinaram as mudanças da natureza, como nos lembra Angélica Santa Olaya em Frutos do amor, ou Aldo Vicente Favero com sua lendária semente. Assim como aqueles mestres das letras universais, que encontraram na história a forma de abordar o mundo fantástico, Ulises Paniagua nos conta sobre as mandrágoras, e Ricardo Evangelista sobre um menino da floresta que olha com horror para o machado do homem civilizado. Da mesma forma, Eduardo Honey Escandón lembra a magia dos manguezais, veios da terra que moldaram uma estrutura que se renova, ora tão forte e teimosa como o tronco determinado de que nos fala Penélope Gamboa, ora tão frágil quanto a margarita de Maria Pérez Yglesias. Relembrando a paixão de escrever para aprender, aprender a investigar e pesquisar para difundir, Patricia Zanatta conta um pouco sobre os segredos medicinais das plantas andinas, que por sua vez é a história de toda uma população. Através de um retorno à floresta para a qual o ensaio de Carlos Guzmán (Gani) nos convida, onde não governam as regras humanas, mas a incessante maravilha das crianças, chegamos finalmente a deixar de lado o pensamento ousado de que só podemos aprender com os especialistas e cientistas; passamos a prestar mais atenção nas folhas, nas pétalas, ou nas lagoas, como Mirna Wabi-Sabi nos apresenta, pois apesar dos incríveis avanços da ciência, o ser humano ainda não é capaz de replicar e prever todas as facetas do reino da natureza. Esses textos (escritos em espanhol, português, Mè'phàà, Nahuatl e Bribri) juntos dão conta das diferentes manifestações de conhecimento e imaginação , transmitidas através de vários estilos e linguagens, inspiradas por sua vez por todo um mundo que, se adotarmos as crenças de os autores com os quais tratamos, poderia ser uma única, enorme, exaltada entidade que, no entanto, se manifesta de inúmeras formas para que o ser humano possa compreendê-la de várias maneiras, e assim, talvez, também possa se perceber como parte do mesmo esplêndido todo. "Quimera procura conciliar os valores da universalidade e da diversidade através do mito, da história e da arte em geral." (Ivannia Victoria Marín Fallas, diretora da revista Chimera) ________ Universidad de Costa Rica

  • Jornais anarquistas para Além das Fronteiras da Arte

    Quebrando Limites: O Jornal de Borda Além das Fronteiras da Arte Uma publicação sobre jornais anarquistas PDF Disponível aqui. Resumo: As publicações dos artistas são frequentemente utilizadas em estudos de arte contemporânea nas discussões sobre publicações impressas. No entanto, estas publicações vão para além das suas nomenclaturas e do seu lugar nas instituições de arte. As fronteiras das artes visuais estão cada vez mais difusas, e as discussões sobre as obras de arte tornam-se mais potentes quando vistas dentro do espectro mais amplo da cultura visual. A estética tem o poder de produzir conhecimento e de estabelecer relações com as formas de viver e de estar no mundo e através da história. As publicações, como tal, são lugares sociais que podem mediar as relações entre as pessoas, especialmente quando envolvem questões como o feminismo, o capitalismo e a descolonização. O Jornal de Borda, um de muitos jornais anarquistas, de cultura visual que circulou na América Latina em português e espanhol entre 2015 e 2021, é um exemplo de expressão artística em publicação impressa. Estabelece estrategicamente o nome de corpos dissidentes — referidos como "corpas" — no contexto da arte dentro da cultura visual; estabelece as relações entre estes corpos e o anarquismo dentro do contexto latino-americano;e a estética relaciona-se diretamente com outros jornais do século passado, tais como A Plebe, honrando a história e, simultaneamente, fazendo história. PDF Disponível aqui. Leia por completo no site da Vista. Disponível em inglês e português. ___________ Fernanda Grigolin Pós-Graduação de Cultura Visual e Arte Latino-Americana, Universidade Católica de Pernambuco, Recife, Brasil Mirna Wabi-Sabi Plataforma9p9, Brasil

  • Desperdício alimentar e emissões de metano

    Versão original disponível na Modefica: "Desperdício Alimentar e Crise Climática: Estima-se que 8 a 10% das Emissões Estão Associadas a Alimentos Não Consumidos". Reciclagem e plásticos de uso único são frequentemente debatidos na grande mídia no contexto de sustentabilidade ambiental. Enquanto isso, os combustíveis fósseis e a indústria da carne são apontados como fontes de emissões de gases de efeito estufa. O desperdício de alimentos parece ter ficado em segundo plano em ambas as discussões e, quando é abordado, é mais dentro da estrutura da moralidade do que do dano ambiental mensurável. Crianças são convencidas a terminar suas refeições com o argumento de que “há crianças morrendo de fome na África”, ou que não deve haver desperdício por causa do custo ambiental de produzir e transportar comida para a mesa. A pegada de carbono do desperdício alimentar está associada a outras indústrias insustentáveis, como embalagens, transporte e agricultura industrial – mas não só. A diferença entre desperdício e perda alimentares é que a perda ocorre antes do alimento chegar à mesa do consumidor; em fazendas, armazenamento e transporte. O desperdício, por outro lado, está em nossos lixos. Porém, ainda não há bastante incentivo para coletar dados sobre ele. De acordo com o relatório de 2021 do Índice de Desperdício Alimentar da ONU: “Estima-se que 8 a 10% das emissões globais de gases de efeito estufa estão associadas a alimentos que não são consumidos (Mbow et al., 2019, p. 200) – e, no entanto, nenhuma das Contribuições Nacionalmente Determinadas para o Acordo de Paris menciona o desperdício alimentar (e apenas 11 mencionam perda de alimentos) (Schulte et al., 2020).” (PNUMA, 2021, página 20.) O desperdício alimentar é tão significativo para a discussão sobre sustentabilidade quanto a perda de alimentos – mais significativo se considerarmos que mitigar seus danos está ao alcance de qualquer pessoa com uma cozinha. Emissões de metano: Alimentos em decomposição em aterros liberam metano na atmosfera, totalizando 4,4 bilhões de toneladas de dióxido de carbono (GtCO2 eq) anualmente (PNUMA, 2021). Isso significa mais de 4 vezes as emissões globais de voos em 2018 (1,04 GtCO2, Our World in Data, 2020), 87% das “emissões globais de transporte em rodovias” (FAO, 2015) ou “32,6 milhões de carros em emissões de gases de efeito estufa” só nos EUA (WWF). De todas as etapas da produção de alimentos que contribuem para as emissões de gases de efeito estufa, o consumo doméstico é a que tem a maior pegada de carbono. Quando adicionados, os resíduos da produção e armazenamento emitem aproximadamente a mesma quantidade de gases de efeito estufa que os do consumo sozinho. E nem todos os alimentos contribuem igualmente para essa pegada. Embora a carne, por exemplo, represente menos de 5% do desperdício total de alimentos, contribui com mais de 20% da pegada. Os vegetais ricos em amido (raízes), por outro lado, têm o efeito inverso, onde representam quase 20% do desperdício total, mas apenas 5% da pegada (FAO, 2015). Não é surpreendente que as regiões de alta renda do mundo desperdiçam mais alimentos do que as regiões de baixa renda, mesmo que os dados não sejam coletados sistematicamente em alguns países. Em países europeus e nos Estados Unidos, acontecia de supermercados jogarem água sanitária em mercadorias vencidas, levando a França a ser a primeira nação a proibir a prática em 2015, aprovando por unanimidade uma lei destinada a reduzir o desperdício de alimentos (Time, 2015). No entanto, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação assumiu, razoavelmente, uma “margem de progresso maior” para os países “em desenvolvimento” sobre o que pode ser alcançado na mitigação do desperdício alimentar até 2030 (FAO, 2015). Poucas mudanças de comportamento necessárias para lidar com as mudanças climáticas sobrepõem a questão da pobreza e da pegada de carbono de forma tão flagrante. Uma mudança na forma como os alimentos são vendidos e consumidos pode combater a insegurança alimentar e reduzir as emissões de gases de efeito estufa ao mesmo tempo. Deveria ser inimaginável escolher o desperdício alimentar em vez de distribuir alimentos gratuitamente e compartilhar recursos de necessidades básicas. Se não temos influência significativa no comportamento da indústria alimentícia corporativa, pelo menos podemos fazer algo no âmbito de nossas próprias cozinhas (aqueles de nós que têm cozinhas). O que podemos fazer para garantir que comida não acabe no lixo? Algumas das sugestões mais intuitivas são: evitar comprar demais, evitar cozinhar demais, armazenar adequadamente, congelar, priorizar conscientemente suas refeições com base no que vai expirar primeiro, compartilhar refeições com outras famílias/sua comunidade e compostar. Descartar restos de comida no ralo não é uma solução, porque além de afetar negativamente a vida selvagem, o material orgânico que sobra do tratamento de água pode acabar em aterros de qualquer maneira (Cary Institute, 2016). A compostagem é a melhor solução para descartar alimentos não comestíveis porque o metano é produzido “por micróbios na ausência de oxigênio”, e o processo de compostagem é aeróbico, ou seja, envolve/exige oxigênio (Government of Western Australia, 2021). Muitos acreditam que a compostagem não é possível num ambiente urbano, mas esse não é o caso. Quando executado corretamente, o processo pode ser feito em locais pequenos com o mínimo de odor (isto é, quando uma iniciativa comunitária não é realista). Pode até ser feito com papelão, o que reduz consideravelmente a quantidade de lixo produzido numa casa ao descartar resíduos orgânicos e reciclar papel ao mesmo tempo (Conserve Energy Future). Viver e lidar com os próprios resíduos ajuda a incentivar os membros de uma família a produzir menos resíduos em primeiro lugar. E não estaríamos descrevendo uma imagem realista da questão da gestão do desperdício de alimentos se não reconhecêssemos a natureza interseccional de como muitas famílias ​​operam. Os papéis de gênero ainda são um fator na maioria das famílias, e as tarefas domésticas caem desproporcionalmente sobre as mulheres, assim como trabalhadoras domésticas são majoritariamente mulheres (OIT). Um estudo recente do Reino Unido revela que a pandemia exacerbou a desigualdade de gênero nas tarefas domésticas, pois as mulheres mantiveram seu nível de “envolvimento no trabalho doméstico e nos cuidados com as crianças” do período de isolamento social depois que voltaram ao trabalho, enquanto os pais não (Pesquisa Demográfica, 2022). Nesse sentido, qualquer solução para minimizar o desperdício alimentar deve envolver o interesse, a compreensão e as ações de todos os indivíduos do domicílio após seus anos pré-escolares. “Resolver problemas, ser criativo e obter resultados por … esforços” é algo que pessoas tão jovens quanto alunos do ensino fundamental devem experienciar (Crianças Saudáveis), especialmente quando se envolve uma prática humana tão indispensável e habitual – comer. “Vários estudos destacam que, se as tendências alimentares atuais forem mantidas, isso pode levar a emissões significativas de mudanças climáticas da agricultura de aproximadamente 20 GtCO2-eq por ano até 2050.” (FOA, 2020) Claramente, há um problema a ser resolvido, níveis mínimos de criatividade são necessários para a solução, e nossos esforços podem não apenas ter resultados mensuráveis, mas também podem melhorar a saúde de nossas famílias, das nossas comunidades e do nosso planeta. Glossário CO2: Dióxido de carbono. CO2e: Todos os gases de efeito estufa. Desperdício Alimentar: Ocorre após o alimento chegar ao consumidor, quando é descartado. Gases de efeito estufa: Dióxido de carbono (CO2); Metano (CH4); Óxido nitroso (N2O); Gases industriais — Hidrofluorocarbonetos (HFCs) Perfluorocarbonos (PFCs) Hexafluoreto de enxofre (SF6) Trifluoreto de nitrogênio (NF3). (EIA, 2021) GtCO2 eq: Dióxido de carbono equivalente (CO2eq) significa uma unidade baseada no potencial de aquecimento global (GWP) de diferentes gases de efeito estufa (Climate Policy Info Hub). GtCO2: Um bilhão de toneladas de dióxido de carbono. (Law insider) GWP 1 (Ecométrica). GWP: Potencial de aquecimento global. Metano: “1kg de metano causa 25 vezes mais aquecimento ao longo de um período de 100 anos em comparação com 1kg de CO2 e, portanto, metano [tem] um GWP de 25”. (Ecometria). “O metano é emitido durante a produção e transporte de carvão, gás natural e petróleo. As emissões de metano também resultam da pecuária e outras práticas agrícolas, uso da terra e pela decomposição de resíduos orgânicos em aterros municipais de resíduos sólidos” [ênfase da autora] (EPA, 2022). Pegada de carbono: A quantidade total de gases de efeito estufa emitidos por uma ação (Nature Conservancy). Perda Alimentar: Ocorre na etapa de produção da indústria alimentícia; nas fazendas, no processamento e no transporte. Bibliografia Cary Institute (2016) “Stop putting food waste down the drain” . Climate Policy Info Hub . Conserve Energy Future. “Is Cardboard Compostable?” . Crianças Saudáveis, Healthy Children . Ecometrica . EIA, U.S. Energy Information Administration (2021) . EPA, U.S. Environmental Protection Agency (2022) . FAO, Food and Agriculture Organization of the United Nations (2015) . FAO, Food and Agriculture Organization of the United Nations (2020) . Government of Western Australia, Department of Primary Industries and Regional Development (2021) . Law Insider . Nature Conservancy . OIT, International Labour Organization, ILO . Our World in Data (2020) . Pesquisa Demográfica, Demographic Research (2022) “Gender inequality in domestic chores over ten months of the UK COVID-19 pandemic: Heterogeneous adjustments to partners’ changes in working hours” . PNUMA. United Nations Environment Programme, UNEP (2021) Food Waste Index report . Time (2015) “French Parliament Unanimously Approves Law to Cut Food Waste” . WWF . Bios PLATAFORMA9 é um coletivo de mídia e editora de livros — com sede em Niterói — que publica artigos, traduz, oferece cursos de alfabetização midiática e publica livros de bolso bilíngues. MIRNA WABI-SABI é escritora, editora, e tradutora. Ela é editora na Gods and Radicals Press e editora-chefe da Plataforma9. FABIO TEIXEIRA é fotojornalista e documentarista no Rio de Janeiro. Já trabalhou para The Guardian, Folha de São Paulo, Cruz Vermelha internacional, UNICEF, entre outros.

  • As ineficiências da democracia e das operações policiais nas favelas

    Publicado na Le Monde Brasil. Instrumentalizar [Verbo]: dar instrumentos ou condições para que algo aconteça. Instrumental [substantivo]: que serve de instrumento; que ajuda a ação. Houve outro massacre numa favela brasileira. Quase 20 pessoas foram mortas no Complexo do Alemão. Um relatório recente do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos, da Universidade Federal Fluminense (UFF), financiado pela Heinrich Böll, afirma que entre 2007 e 2021 “foram realizadas 17.929 operações pela polícia no Rio de Janeiro. Desse total, 593 operações policiais resultaram em massacres, totalizando 2.374 mortes”. Essas mortes não são inevitáveis, razão pela qual o relatório também propõe uma solução – desenvolver ainda mais um “regime democrático”, a fim de limitar legalmente as ações do setor de aplicação da lei. Essa solução, no entanto, desconsidera que, embora evitáveis, essas mortes não são indesejadas, e é justamente por meio do sistema democrático que essas políticas de extermínio e esquemas de impunidade foram implantados. Desde os anos 1960, o Brasil vive uma dicotomia entre ditadura militar e democracia. Passamos de um regime de direita apoiado pelos EUA para um líder da esquerda carismático, de origem operária, oprimido por esse mesmo regime ditatorial. Agora, para espanto dos que aderiram a essa abordagem política binária, foi o sistema democrático que deu voz e elegeu apoiadores da ditadura. Hoje em dia, acreditar que uma democracia “mais forte” é a solução para a violência policial é como crer que prédios mais altos são a solução para o aumento do nível do mar. Queremos realmente continuar subindo uma estrutura sem abordar as questões fundamentais do racismo, classismo e desrespeito pela vida humana quando ela não beneficia o capitalismo? As ineficiências da democracia têm sido discutidas desde seu surgimento na Grécia Antiga. Também seria seguro dizer que o exercício filosófico em torno da “democracia” tem sido um empreendimento ocidental. Uma das minhas citações favoritas sobre isso é: “a caracterização geral mais segura da tradição filosófica europeia é que ela consiste em uma série de notas de rodapé sobre Platão” (Alfred North Whitehead em Processo e Realidade). Essas notas de rodapé intermináveis ​​são um esforço de colocar os valores europeus, como a democracia, na vanguarda de qualquer leitura sobre a condição humana. Na academia, falar de filosofia é realmente se referir a um grupo específico de pensadores, de uma época específica – homens brancos do século XIX. Da demografia de pessoas pensadoras mais bem equipadas para teorizar sobre as condições sociopolíticas a que as – moradoras das favelas estão sujeitas, esses homens europeus do século XIX estão no final da lista. E a realidade é que o grupo demográfico que está no topo desta listagem é exatamente aquele que acaba morto, vítima da violência policial. Isso não é por coincidência. Marielle Franco foi uma pensadora ativa no governo. Sua tese na UFF foi sobre a violência policial nas favelas e como suas operações não funcionam. A solução apresentada no capítulo “Organização popular e possíveis resistências” inclui a palavra “instrumentalização”. Especificamente, para tornar os moradores de favelas instrumentais. Segundo Franco, a solução para combater a violência policial nas favelas está no fortalecimento da consciência de que “a favela deve ser respeitada” pelo governo e seus “agentes de segurança”. Mas não a consciência desses agentes e funcionários do governo — a consciência dos moradores. Não é do interesse daqueles que estão no poder (o governo e aqueles que o financiam) que os povos marginalizados (moradores de favelas) se tornem instrumentais na sociedade, perseguindo seus próprios objetivos e influenciando políticas. Para a ordem estabelecida, que no Brasil hoje é uma espécie de democracia, é melhor massacrar do que instrumentalizar a favela. Custa menos matar do que reestruturar a sociedade para erradicar a miséria, a pobreza, o racismo e a exploração. A única “justificativa” para esse massacre é que essas pessoas “mereciam” morrer porque eram criminosos ou estavam no lugar errado na hora errada. Obviamente, isso é inaceitável. Uma das coisas mais inaceitáveis ​​da democracia, porém, é quando ela serve como meio para um segmento instrumentalizado da população buscar o extermínio do “outro”. Os super-representados usam seu poder para erradicar os sub-representados, iniciando um ciclo democrático vicioso onde a cada eleição a oposição fica menor e mais enterrada. E uma coisa é certa, o fim da ditadura militar brasileira não significou o fim da militarização da sociedade brasileira. Isso porque, segundo Marielle Franco, a militarização é representativa de como ganhar dinheiro ainda é mais importante do que proteger vidas humanas. “A luta pela desmilitarização da sociedade, do Estado […] tornou-se prioridade para quem sonha com um mundo onde a vida está acima do lucro.” (UPP, página 135, edição n-1, 2018). O relatório de massacres policiais de 2022 argumenta que o “volume e a forma de realizar chacinas apontam para um horizonte contrário à democratização”. No entanto, nada sobre o regime democrático “aponta para um horizonte oposto” à militarização. Não é apenas no setor de segurança pública que se observam vestígios da ditadura militar. Enquanto os valores capitalistas persistirem na sociedade, o mesmo acontecerá com a militarização – haverá a necessidade dela para realizar o extermínio de um segmento pouco “lucrativo” da população. Além disso, esses valores também serão representados na urna. O ‘lucro’ como um conceito abrangente não teria que ser demonizado se não viesse às custas das vidas de tantas pessoas, e não estou convencida de que as eleições estejam equipadas ou projetadas para impedir que isso aconteça. Será através do voto que podemos garantir dignidade a todos? Haverá um político que fará o que precisa ser feito para garantir que cada pessoa tenha um teto sobre a cabeça, comida na barriga e a consciência fortalecida para se tornar “instrumental” na sociedade? ______ Mirna Wabi-Sabi é escritora, editora e tradutora. Ela é editora na Gods and Radicals Press e editora-chefe da Plataforma9. Fabio Teixeira é fotojornalista e documentarista no Rio de Janeiro. Já trabalhou para The Guardian, Folha de São Paulo, Cruz Vermelha internacional, Unicef, entre outros AVISO DE GATILHO: AS IMAGENS ABAIXO PODEM RETRATAR CORPOS MORTOS. Fotos de Fábio Teixeira. 21 de julho, Complexo do Alemão, Rio de Janeiro, Brasil.

  • Políticas de armas no Brasil imitam as dos EUA, mas têm maiores divisões de classe

    Originalmente publicado na OpenDemocracy Implementar um princípio político estrangeiro sobre armas pode acentuar ainda mais as desigualdades econômicas. O ano de 2021 foi marcado por incentivos legais do governo Bolsonaro para afrouxar as restrições à posse e porte de armas no Brasil. Em um esforço para imitar a abordagem dos Estados Unidos em relação às armas, o presidente fez sua campanha eleitoral nessa plataforma, popularizando o gesto de arminha com as mãos e, eventualmente, introduzindo 30 decretos sobre o assunto. Dos decretos de flexibilização do “registro e aquisição de armas e munições por caçadores, colecionadores e atiradores” (entre outras coisas), alguns depois enfrentaram resistência do Senado. Essa resistência não surpreende, pois, segundo um censo de 2019 (seu primeiro ano no cargo), a maioria da população brasileira discordava fortemente da ideia de que o afrouxamento das leis de armas se traduziria em mais segurança pública. Há também concordância entre pesquisadores e ONGs de que regulamentos frouxos em torno da posse e porte de armas exacerbarão a violência e incentivarão o comércio ilegal de armas já existente no país a crescer e baratear. O desvio das armas legais para a ilegalidade já era um problema antes desses decretos, com quase 20 mil armas nos 10 anos que antecederam 2016, quando o relatório foi publicado por uma comissão parlamentar de inquérito (CPI). Isso significa que popularizar a cultura das armas no Brasil não é combater o crime organizado, muito pelo contrário – vai aumentar sua oferta de armas. O problema de implementar um princípio político dos Estados Unidos sobre armas no Brasil, além de nem mesmo funcionar em seu país de origem, é que a sociedade brasileira tem uma desigualdade econômica mais acentuada. Essa disparidade de classes está representada na demografia que se posiciona sobre a questão das armas. De acordo com o relatório de 2019, “dos entrevistados que se disseram favoráveis à flexibilização da posse de arma de fogo, a maioria ganha mais de cinco salários-mínimos”. Enquanto isso, “sete em cada dez moradores de periferias brasileiras discordaram da flexibilização da posse”. Em outras palavras, a grande maioria daqueles que apoiam o controle estrito de armas vive mais perto de onde o crime organizado opera. Enquanto uma parcela mais rica da população que pode se dar ao luxo de viver nos chamados bairros mais seguros tende a apoiar o afrouxamento das restrições. Nos Estados Unidos, a questão da classe permeia o debate sobre o controle de armas de um lugar um pouco diferente. Um estudo de 2017 descreve “contratempos econômicos” como a principal fonte de apego emocional à posse de armas, um direito que já é amplamente concedido no país. Isso significa que, nos EUA, a insegurança financeira pode motivar a posse de armas – como fonte de empoderamento. A demografia dos brasileiros que ganham pelo menos cinco vezes mais que um salário-mínimo pode não estar tão distante da demografia dos Estados Unidos de pessoas que se sentem economicamente desprivilegiadas. O contexto social e histórico, no entanto, informa não apenas como essa demografia é descrita, mas também como esses indivíduos se descrevem. Alguém que se considera classe média alta no Brasil pode ser considerado classe média baixa nos Estados Unidos. No entanto, uma aversão à pobreza e aos pobres é um terreno comum. Gênero e raça também marcam sentimentos em volta do controle de armas em ambos os países. Nos EUA, aqueles “que têm expectativas sobre o que significa ser um homem branco nos Estados Unidos hoje que não estão sendo atendidas” têm maior probabilidade de se interessar pela posse de armas. No Brasil, raça é mais difícil de dicotomizar devido a uma história colonial que encorajou a miscigenação em oposição à segregação. No entanto, raça tende a seguir as linhas de classe, uma vez que os brasileiros negros representam mais de 70% do segmento mais pobre da população, e os brancos representam 70% dos mais ricos. Considerando esses números, deve-se notar que, em ambos os países, pessoas negras e pobres são mais propensas a se tornarem vítimas de violência armada. Outra grande preocupação com o afrouxamento das leis sobre armas, talvez mais no Brasil do que nos Estados Unidos, é o potencial de aumento do feminicídio. “O termo ‘feminicídio’ foi particularmente adotado na América Latina”, mas isso não significa que seja mais difundido nessa região. O nível chocante de violência contra as mulheres no Brasil é resultado direto do fato de que houve um esforço para nomear a questão. Nos Estados Unidos, categorizar os feminicídios como qualquer outro homicídio pode mascarar o fato de que 92% deles são perpetrados por homens que as mulheres conheciam. A apreensão em afirmar que esses homicídios aconteceram porque essas vítimas são mulheres não muda o fato de que a maioria dos agressores são seus namorados ou maridos. Também não muda o fato de que “a pobreza está associada ao abuso doméstico”. Tornar mais fácil a posse de armas e mantê-las nas casas de famílias provavelmente exacerbará a questão já existente da violência doméstica e a vulnerabilidade das mulheres que enfrentam insegurança financeira. Para cada situação em que uma arma pode ser usada para proteger uma família de um assalto, existem várias outras situações em que essa arma pode ser usada para infligir danos irreparáveis a essa mesma família, seja inflamando a violência doméstica, a expansão do comércio ilegal de armas por organizações criminosas, ou pela vitimização desproporcional de famílias marginalizadas. Aviso de gatilho — as fotos abaixo são perturbadoras e mostram a morte. Operação da Polícia Militar e Civil, em 21 de julho, deixa 19 mortos no Complexo do Alemão | Fabio Teixeira O papel da polícia As operações policiais nas periferias brasileiras são notoriamente mortais, e os mortos muitas vezes não estão envolvidos em atividades criminosas. Eles estão apenas no lugar errado na hora errada. Se as instituições de aplicação da lei fossem excelentes em exercer seu trabalho, não haveria necessidade de o Estado transferir a responsabilidade de fornecer segurança aos civis. No entanto, o incentivo de Bolsonaro ao uso da força, à violência, repercute bem com os policiais militares – que muitas vezes se tornam seus ávidos apoiadores. Como coloca um pesquisador de segurança pública, para um indivíduo apoiar um político que incentiva amadores a assumir um papel que é de sua responsabilidade profissional é uma "questão meramente ideológica, não prática". Essa ideologia, que vagamente significa valores familiares tradicionais, princípios religiosos e papéis de gênero conservadores, não tem nenhuma influência prática na redução das taxas de crimes violentos, no combate ao crime organizado ou na proteção das famílias em suas casas. No mês passado, cerca de 20 pessoas foram mortas em um tiroteio entre policiais e supostos traficantes de drogas no Complexo do Alemão. Menos da metade dos mortos tinha antecedentes criminais, pelo menos dois deles não eram suspeitos e um era policial. Este cenário é recorrente; um relatório recente da UFF, financiado pela fundação política alemã Heinrich Böll, afirma que entre 2007 e 2021, “foram realizadas 17.929 operações pela polícia no Rio de Janeiro. Desse total, 593 operações policiais resultaram em massacres, totalizando 2.374 mortes.” Não há evidências que demonstrem que essas operações tenham sido eficazes no combate ou impedimento das organizações do crime organizado, mas certamente elas foram eficazes em sustentar um reinado prolongado de terror em comunidades marginalizadas. A única coisa com a qual todos parecem concordar é que a desigualdade econômica está se tornando progressivamente intolerável. A pobreza, o crime e a necessidade de uma sociedade mais segura são preocupações que possivelmente transcendem todas essas divisões ideológicas. A questão é quais são os passos práticos para melhorar uma condição social que leva à violência brutal de norte a sul do globo. A solução poderia ser mais armas ou mais dignidade humana? _____ Mirna Wabi-sabi

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